sábado, 29 de maio de 2010

RESUMO DO CAPÍTULO I DO LIVRO "A FÍSICA DA POLÍTICA: HOBBES CONTRA ARISTÓTELES" DE YARA FRATESCHI




O FUNDAMENTO DA VIDA POLÍTICA 

Fábio Coimbra[1]

A política é um assunto que todo mundo se julga apto a falar sem, no entanto, se dá o trabalho de investir a fundo o que, na essência, constitui essa ciência assim chamada. No decorrer da história humana, muitos cérebros se dispuseram à realização dessa árdua tarefa objetivando essencialmente a construção de bases a partir das quais se pudesse erigir todo um conjunto teórico de reflexões que deveria se materializar no campo da ação prática. Na civilização ocidental, especialmente, na Grécia antiga, é digno de destaque nomes como o de Platão, e sua célebre obra “A República” e Aristóteles, com a sua magnífica “Política”. No decorrer da idade média, destaca-se santo Agostinho e a sua “Cidade de Deus”. Na modernidade, por sua vez, abre-se um leque para uma reflexão política mais ampla. O ponto de partida da modernidade, diga-se de passagem, se deu essencialmente com os humanistas cívicos, dos quais o ilustre florentino autor de “O Príncipe” foi herdeiro direto e, portanto, um dos primeiros, dentre os modernos, a tratar da política em sua profundidade. Foi também nesse contexto (modernidade) que veio a lume aquela corrente da filosofia que prezou, sobretudo, por temas referentes à liberdade do homem (fazendo um contraponto ao ideal grego de liberdade); a origem do estado e da sociedade civil; o princípio do direito político etc. Essa corrente, razoavelmente discutida, estudada e investigada, sobretudo no âmbito acadêmico-científico, chama-se contratualismo, que se estruturou sobre o tripé Rousseau, Loock e Hobbes. É importante Lembrar que, no geral, embora voltem suas atenções para duas coisas especificas, a saber, o estado de natureza e o estado de sociedade, esses autores não deixam de criticar-se mutuamente. Dentre esses o principal embate se dá entre Rousseau e Hobbes, sobretudo, no que diz respeito às suas concepções de homem enquanto habitantes do primeiro estado. Enquanto Rousseau vê no estado de natureza um homem bom, Hobbes, por sua vez, visualiza um homem mal, feroz como um leão, a todo o momento apto para atacar o outro, buscando, acima de tudo, sua satisfação e benefícios individuais. Esse tipo de duelo, cabe ressaltar, não se observa somente entre os contratualistas, mas também se dá entre eles e outros, como por exemplo, entre Hobbes e Aristóteles, assunto que aqui será enfatizado com precisão à luz de Yara Frateschi.
Intitulada “A física da política: Hobbes contra Aristóteles”, a obra de Yara Frateschi pode ser considerada fidedigna em matéria de teoria política, especialmente por trazer a tona dois clássicos da filosofia que, embora muito distantes cronologicamente, estão muito próximos quando o assunto se volta a uma reflexão política e “antropológica”.
Nessa obra a autora objetiva demonstrar primordialmente a ruptura que Hobbes faz com a tradição aristotélica, que via no homem um impulso natural para a vida coletiva. Esse rompimento à luz da autora se dá especialmente a partir da crítica que Hobbes faz à concepção de Aristóteles de que o homem é por natureza um anima político. Com a sua crítica, Hobbes desfaz a concepção do estagirita mostrando que a principal razão pela qual os homens se unem está pautada sobretudo na busca de benefícios individuais, a que a autora denomina de “princípio do benéfico próprio”.ou seja, o que empurra o homem para a união com os demais não é o fato de que ele está preocupado com os outros, mas sim, porque ele vê nisso a oportunidade para a realização de um desejo que lhe compraz e que sozinho ele não tem como realizar. Nesse sentido, a vida social já não seria mais uma condição de fim que, na reflexão de Aristóteles, seria a continuidade da espécie e a sua preservação. Seria, portanto, um meio tendo como fim – para o homem – a sua auto-preservação. De acordo com a autora

Hobbes não nega que a solidão seja inimiga dos homens e que estes procurem reunir-se com os demais para satisfazer seus desejos e necessidades. No entanto, isso não é suficiente para que se conclua a naturalidade da cidade, pois as sociedades civis não são meras reuniões, mas se erguem pela instituição de um poder comum, capaz de obrigar os homens a cumprir pactos e leis. (FRATESCHI, 2008, p. 14-15)

Aristóteles, diferentemente de Hobbes e dos demais contratualistas não pensou a sociedade a partir do estado de natureza. Não viu ele que nesse a liberdade do homem era ilimitada. Se ele não teve essa percepção, isso se deveu, sobretudo, às condições do seu contexto histórico que não lhe permitiu o acesso a tal reflexão, em vista de outras preocupações. Uma das varias diferencias que há entre o estagirita e os contratualistas é que aquele reflete uma sociedade já constituída, onde o direito dos homens já era limitado, onde uns eram escravos e, portanto, submisso e outros livres e senhores. Hobbes vê a sociedade civil como superação do estado de natureza, estado no qual na alegria da liberdade estava implícito o medo da morte violenta e da barbárie. O estado de sociedade surge justamente para dizer a cada um aquilo que é seu e aquilo que não é. Ela surge como uma forma de instituição superior dotada de lei e força para travar aquelas pretensões que optarem pela desordem e pela prática da violência. Hobbes quer mostra que é esse o sentido primeiro da constituição da sociedade, e que, portanto, não é verdade que exista no homem uma disposição natural para a vida social. Ele quer mostrar que a sociedade é fruto de uma opção que os homens fazem para fugir da animalidade e adquirir benefícios que visam à sua preservação.
Este primeiro capítulo, que discorre sobre o fundamento da vida política, se desdobra e três momentos específicos de reflexão da autora. No primeiro ela aborda a critica do zoon politikon, no segundo, o principio do benéfico próprio e, por fim, no terceiro, a origem da sociedade civil.
Zoon politikon, cumpre Lembrar, é uma máxima do pensamento de Aristóteles, que arrasta toda uma tradição européia que se inicia no mundo antigo e se revigora durante a idade media. Essa máxima, que tinha como pressuposto básico a disposição natural do homem para a sociedade, vai posteriormente ser refutada por Hobbes que, ao executar tal crítica, contrapor-se-á a todo um sistema político pautado no pensamento de Aristóteles e que tinha esse filósofo como autoridade reverente em assunto de política. A autora refere que “Hobbes propõe-se a contribuir banindo da filosofia política o preceito aristotélico do zoon politikon e estabelecendo as bases da nova ciência política” (FRATESCHI, 2008, p. 17-18). Para fins de esclarecimento, a autora traça um paralelo entre Aristóteles e os estóicos, onde os esses também viram no homem uma aptidão natural para a sociedade. De acordo com ela

Os estóicos explicam que a primeira manifestação dessa aptidão se dá na própria conformação do corpo humano – que é, entre outras coisas, feito para procriar – e na afeição natural que os pais sentem pelos filhos. Do amor pelos filhos se desenvolve um sentimento de atração mutua entre os seres humanos, que se percebem como semelhantes e são compelidos a se ajudarem mutuamente. (FRATESCHI, 2008, p. 19)   

Nessa concepção percebe-se, portanto, que a procriação desenvolve um papel fundamental para o surgimento da sociedade a partir do laço que une primeiramente o homem à mulher. Dessa união primeira, que tem como conseqüência o surgimento de novos indivíduos, deriva a preocupação de um para com outro, que se expressa, em princípio, na preocupação dos pais para com os filhos, enquanto esses se encontram sob a tutela daqueles. É justamente da generalização dessa concepção que vai derivar a teoria da sociabilidade natural humana, na qual estará implícita a noção de que não escapa ao homem a tarefa de proteger e ajudar seus semelhantes, conforme refere a autora.
Na mesma linha do pensamento estóico Yara apresenta também o pensamento do romano Cícero que, igualmente, reconhece a união entre o homem e a mulher como fruto do instinto natural que instiga à procriação e preservação. A autora refere que na base da sociedade prevista por Cícero estava a razão e a linguagem que – favorecendo a comunicação – tornou possível a criação da sociedade. Observa-se, deste modo, que Cícero está cogitando uma sociedade a partir do relacionamento entre os indivíduos, que se dá, por excelência, por via da comunicação, sob a égide da linguagem. É a partir dessa que os homens unidos em sociedade vão criar leis e outros mecanismos normativos para a regulamentação e ordenamento da vida social. Yara enfatiza, portanto, no pensamento político tradicional um trio (Aristóteles, os estóicos e Cícero) que vai comunga basicamente dos mesmos princípios em si tratando do surgimento da sociedade, aos quais Hobbes não hesita em combater.
Para fundamentar o zoon politikon, Aristóteles, segundo a autora, traça um percurso que se inicia a partir do instinto natural que instiga o homem e a mulher a se unirem para a sua preservação, bem como o suprimento de algumas de algumas necessidades. Dessa união surge a família. Com a procriação, as famílias vão se multiplicando. O aumento do numero de famílias traz necessidades que, para serem sanadas, faz-se necessário haver uma união entre elas. Dessa união das famílias surge a aldeia que, por necessidades, unindo-se umas às outras dão origem à cidade.

A cidade é a comunidade que engloba todas as demais e é a comunidade mais elevada porque é autárquica. A polis é auto suficiente na medida em que, diferentemente da família e da aldeia, provê toda as necessidades de seus membros: formada a principio para preservar a vida, subsiste para assegurar o bem viver. (FRATESCHI, 2008, p. 22)  

O que define, portanto, a cidade é o fato de que ela é autárquica e não tem nenhuma necessidade. Pelo contrario, ela própria é o cenário onde todas as outras necessidades se diluem. Suprindo todas as necessidades, ela promove, portanto, o livre desenvolvimento humano, razão pela qual se diz que ela é autônoma. Ela é o todo sem o qual as partes não podem existir, sendo, deste modo, dependentes dela. Ela é por excelência o espaço de realização do homem. Ela é necessária para que o homem não somente viva, mas viva bem, sendo esse o seu fim. “Se a natureza de uma coisa é o seu fim, a natureza de um ser coincide com o seu bem: o melhor para um ser é ser ele mesmo, todo ser tende naturalmente para o seu próprio bem, tornando-se aquilo que ele é”. (FRATESCHI, 2008, p. 25).
A autora quer mostrar que na concepção do estagirita, o homem é conduzido para a cidade porque somente nela ele pode viver bem. Em outras palavras, Aristóteles está propondo que o homem assuma aquilo que ele é: um ser sociável e que busca constantemente o seu bem e o dos outros. Por isso, quando Aristóteles diz que o homem é um animal político, ele está querendo dizer, na verdade, que ele tende naturalmente para o seu bem, que só pode ser alcançado na cidade. De acordo com a autora, fazendo referência a Aristóteles, essa aptidão para a vida na polis “independe da razão, é inata, como também não depende das escolhas, não requer exercício, instrução nem qualquer atividade previa”. (FRATESCHI, 2008, p. 25). A vida na polis não depende da escolha, no entanto, o viver bem depende sim. É preciso que o homem opte por isso, pois, o fato de o bem do homem residir na polis, nada garante que ele venha a viver bem.
Feita essas considerações acerca da filosofia política aristotélica, no que concerne à sociabilidade natural humana, a autora trata de mostrar agora a contraposição, ou contestação de Hobbes a essa tese. Segundo ela

Para se contrapor à tese aristotélica da naturalidade da cidade, Hobbes precisa antes negar que o homem é um animal político. A sua intenção é, sobretudo desmentir que a capacidade para a vida política é uma necessidade e independe da escolha humana (sem o que é impossível fundamentar a teoria do contrato social. (FRATESCHI, 2008, p. 27)

A desmitificação da sociabilidade natural do homem, parte do principio de que, no contexto do pensamento hobesiano, a vontade é o pressuposto básico que, seguida de disciplina, conduz o homem para a sociedade. Pretende-se mostrar, portanto, que ninguém nasce apto para a vida social, mas adquiri-se essa aptidão a partir de uma escolha na qual está implícita uma renúncia parcial de alguns direitos naturais, renúncias essas tão importantes para a vida em sociedade de modo que, sem elas, a sociedade não seria possível. A autora refere que o que torna inaceitável para Hobbes a tese da sociabilidade natural dos homens, é o fato do estagirita derivá-la apenas das necessidades naturais pelas quais os homens se reúnem a fim de supri-las. Para Hobbes essas reuniões se tornam insignificantes para o advento da sociedade na medida em que carecem de uma instituição comum e superior capaz de obrigar o cumprimento de qualquer acordo que nessas reuniões vier a acontecer. “O traço distintivo desta (a sociedade) é a obrigação: para que a sociedade exista é preciso que haja um poder comum capaz de obrigar o cumprimento das leis de natureza e dos pactos” (FRATESCHI, 2008, p. 28). O ápice dessa crítica operada pelo pensamento hobesiano, segundo a autora, é a apresentação do princípio do benéfico próprio, razão pela qual o homem é instigado a buscar primeiramente o que é o julga ser um bem para si. Somente depois da certeza da sua preservação é que ele toma parte na preocupação com os outros. Desse modo, enquanto

Aristóteles conclui pela naturalidade da cidade, porque identifica a associação a um impulso natural que vai à direção da realização da natureza humana que é política [...] Hobbes considera a natureza humana compatível tanto com a opção por criar a sociedade quanto com a opção por estabelecer dominação ou declarar guerra, isso porque o impulso natural do homem não visa à vida social. (FRATESCHI, 2008, P. 30)

Esse princípio se ergue, sobretudo, em, detrimento do zoon politikon, que na visão de Hobbes, carece de sustentáculo e fundamentação.
Como tal, o principio do benéfico próprio é tratado melhor no segundo item deste primeiro capítulo, onde a autora corrobora a idéia de que a natureza não leva o homem a procurar a companhia dos outros, a não ser por causa de proveitos que dela espera alcançar. O desenvolvimento dessa reflexão faz perceber que ela (a reflexão) “vai contrapor-se à teoria do amor natural sustentada por Cícero” (FRATESCHI, 2008, p. 32). De acordo com Yara, é possível perceber que em Cícero o homem tende naturalmente a amar os outros e disso, segundo ela, se origina a virtude e a justiça. Essa teoria ciceriana fundamenta-se com mais eficácia na conjeturação do amor paterno, isto é, no amor que os pais sentem pelos filhos, de onde emanam os laços sociais. Essa concepção afasta, destarte, a hipótese de que os homens se unem por interesse.
Para combater essa idéia, Hobbes, segundo a autora apresenta dois argumentos para mostra que, de fato, o que leva os homens a se unirem é sim o interesse. No primeiro argumento lê-se: “se um homem amasse outro por natureza, não haveria razão que explicasse porque não amamos igualmente todos os homens, ao passo que é um fato amarmos mais a uns do que outros”. (FRATESCHI, 2008, p. 33). Já no segundo, ele afirma que “freqüentamos mais aqueles cuja companhia nos confere honra e proveito” (FRATESCHI, 2008, p. 33). Desses dois argumentos, o que mais importa e que mais chama a atenção da autora é o seguindo. Para constatar a veracidade desse argumento, ela recorre ao uso de dois conceitos, a saber, natureza e ocaso, os quais se contrapõem um ao outro. No plano do primeiro, a autora demonstra que aquilo que acontece na natureza não, decorre de uma escolha, ao passo que “aquilo que ocorre por acaso, é objeto de uma escolha feita no contexto de uma determinada circunstancia tendo em vista alguns benefícios”. (FRATESCHI, 2008, p. 34).
Outra tese aristotélica refutada por Hobbes é a da amizade perfeita, segundo a qual, os homens podem se unir na medida em que um visa fazer o bem a outro. Para contra-versar essa ideia, Hobbes, de acordo com a autora, vai mostrar que “toda associação serve ao ganho ou gloria, de tal modo que os homens se reúnem não por amor ao próximo, mas por amor a si mesmo” (FRATESCHI, 2008, p. 37). Desse modo, pretende-se demonstrar que “o homem é auto-interessado e age primeiramente em função de seu próprio beneficio e que toda associação é contraída na medida em que o outro se apresenta como um meio para a utilidade ou prazer”. (FRATESCHI, 2008, p. 38). Percebe-se, portanto, que o principal télos do homem é a própria aquisição de benefício para si. Entretanto, essa meta só se torna passível de alcance, na medida em que os demais homens se apresentam como meio que, mediante a associação, propiciam essa teleologia, caracterizada pela busca constante de felicitações individuais.
No terceiro e ultimo item intitulado “A origem da sociedade civil”, a autora refere que

Após mostra que a causa de toda a associação é a busca de benefício próprio e que esse beneficio consiste em honras ou vantagens, Hobbes está pronto para dar o seu próximo passo e concluir que a união dos homens na sociedade civil respeita o mesmo raciocínio. (FRATESCHI, 2008, p. 38)         

O ponto de partida para a demonstração da semelhança que há entre as associações e o início da sociedade civil é a negação de que esta provenha de certa disposição natural do homem para a vida social, da amizade, ou do amor que os homens sentem uns pelos outros.
A origem, ou razão do surgimento da sociedade seria, portanto, o “medo generalizado que os homens sentem no estado de natureza” (FRATESCHI, 2008, p. 39). É desse medo da selvageria e barbárie que surge a necessidade dos pactos, o que, conseqüentemente, marca a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade. A queda definitiva do zoon politikon, do ponto de vista hobesiano, se dá, especialmente, a partir de dois argumentos apresentado pela autora. O primeiro é o de que “os homens tem um propensão a se ferirem” (FRATESCHI, 2008, p. 39) e o segundo “o direito natural é um direito ilimitado de todas as coisas” (FRATESCHI, 2008, p. 39). Desse modo, Hobbes, segundo a autora, prova que realmente o estado de natureza é um puro estado de guerra.
Em suma, percebeu-se que o rompimento de Hobbes com a tradição se deu em dois momentos: primeiro, a substituição do zoon politikon pelo principio do benéfico próprio, e, segundo, a afirmação de que a sociedade é meio e não fim.    



REFERÊNICIA
FRATESCHI, Yara. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas: UNICAMP, 2008.


[1] Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão

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