domingo, 17 de junho de 2012

CRÍTICA DE BAUDELAIRE¹À MODERNIDADE



No contexto da modernidade são obviamente notáveis as transformações ocorridas na sociedade em razão da aceleração gradual do progresso e da técnica. Pode-se dizer, de algum modo, que ambos constituíram, então, o motor central da era moderna, na qual puseram tudo em um movimento inevitável. Esse movimento, portanto, foi o principal agente de transformação, ou de construção das características que identificam a modernidade.
Ora, seria ingenuidade pretender negar que o progresso e o aperfeiçoamento técnico não contribuíram para a construção de cidades que se tornaram encantadoras e atrativas, em virtude de sua exuberante beleza, tal como, por exemplo, Paris, capital francesa. Por outro lado, também seria ingênuo não reconhecer as contribuições que a mesma técnica e progresso deram para o assolapamento da miséria humana na medida em que empurrou uma parcela considerável de pessoas para habitar as ruas e lugares inaptos à convivência humana nas grandes cidades.²
O progresso e a técnica favoreceram o surgimento e o desenvolvimento da indústria e das fábricas. Com essas, a sociedade se tornou capitalista. O capitalismo aqui é – pode-se dizer – aquela pressão exercida pelo mercado sobre o indivíduo, o qual muitas vezes, passa a ser, até mesmo, confundido com os próprios objetos fabris e industriais. Como consequência das produções industriais, um quantitativo considerável de transeuntes passou a se movimentar pelas ruas superlotando-as, portanto. Desse modo, se conclui que na sociedade capitalista já "não é mais possível andar tranquilamente pelas ruas" das cidades, de modo especial, as ruas comerciais. ³ Essa drástica realidade que tirou a tranqüilidade se instalou, sobretudo, pelo fato de que na sociedade de massa são os objetos da indústria que passam a dominar. Ou seja, nessa sociedade é a indústria quem dita as regras do jogo, que é sempre lucrar.
Diante da totalidade dessa realidade (marcada pela crueldade; pelo desprezo para com o humano; pelas contradições impostas pela lógica do sistema capitalista; pelas inversões dos valores, onde o indivíduo ora é sujeito, ora objeto) é que apareceu a figura do ilustre poeta francês Charles Baudelaire. Devido a esses eventos que marcaram a modernidade, é que a poesia baudelaireana vai ser marcada exclusivamente pelo sentimento de tristeza, de melancolia. Nesse sentido, Benjamin refere que “o engenho de Baudelaire, nutrindo-se de melancolia, é alegórico. Pela primeira vez com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica”. [4] O conceito “alegórico”, aqui, se torna, muito importante, justamente, porque é a partir da visão alegórica do homem moderno, que a teoria crítica de Benjamin, tenta entender a modernidade. Baudelaire faz, portanto, um resgate da poesia lírica para o seu contexto, mudando-lhe os temas. A construção poética de Baudelaire já expressa a profundidade do seu pensamento, ou de suas concepções no que diz respeito ao olhar do poeta lançado sobre a cidade. Quanto a isso, segundo Benjamin

Essa poesia não é nenhuma arte nacional e familiar; pelo contrário, o olhar alegórico a perpassar a cidade é o olhar de estranhamento. É o olhar do flâneur, cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade. [5]

O poeta, portanto, possui posicionamento e ponto de vista diferente daqueles que são assumidos pelas massas, no que diz respeito à cidade. Enquanto o poeta vê a cidade com um olhar não só de estranhamento, mas também de desconfiança, a massa, por sua vez, vê-la com grande encanto admiração e fascinação. É nesse cenário que vem à tona uma daquelas imagens pela qual Baudelaire expressa o seu pensamento em relação à modernidade: trata-se do flâneur. É com este que a arte definitivamente se dirige para o mercado e se transforma em mercadoria. Sendo Assim, a arte na modernidade, diferentemente, da tradição, se torna uma forma de ganhar dinheiro. O flâneur na poesia baudelaireana seria uma tendência do indivíduo para o mercado, para o consumo. “Com o flâneur, a intelectualidade parte para o mercado[6]. Ou seja, esse fenômeno não arrasta somente as massas, que na sua maioria, isto é, na generalidade, é passível de ser movida por qualquer sinal de fascinação, com muita facilidade, mas atinge também, os intelectuais, num choque inevitável. Nesse sentido,

Baudelaire sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira; pensa que é para olhar, mas, na verdade, já é para procurar um comprador. Ao olhar, penetra na alma de qualquer um, realizando o que Baudelaire, no poema “As multidões”, denomina “santa prostituição da alma” e, mais adiante, a “ebriedade religiosa da cidade grande”. “A ebriedade a que se entrega o flâneur”, diz Benjamin “é a da mercadoria em torno da qual brame a corrente dos fregueses” [7]

O flâneur seria ainda uma espécie de instrumento por meio do qual o capitalismo, na busca pela aquisição de lucro, foi fortemente favorecido; aquele instrumento de persuasão que convence qualquer um a parar diante de uma vitrine e dela tirar o produto para, dada a compra, efetuar o consumo. Como instrumento do capitalismo, ele também tem a capacidade de criar necessidades nas pessoas, das quais elas não se dão conta naquele exato momento, mas somente num momento posterior. 
Outra personagem poética criada por Baudelaire é o dândi[8]. Segundo ele, o dândi é caracterizado por ser.

O homem rico, ociosos, e que, mesmo eterno entediado, não tem outra ocupação senão a de correr atrás da felicidade; o homem educado no luxo e acostumado desde a sua juventude à observância dos outros homens, aquele, enfim, que não tem outra profissão senão a da elegância sempre gozará em todos os tempos de uma fisionomia distinta, inteiramente à parte.[9]

Aparentemente, o dândi é aquele ser que se volta à procura dos prazeres e das comodidades da vida. No entanto, isso é apenas um aspecto da sua aparência, quando na verdade , ele é um ser misterioso.  Ele é sempre notável dentro de uma sociedade, sobretudo, porque a educação e a elegância constituem parte de seus traços característicos. É o indivíduo criado no luxo e que, portanto, não conhece o outro lado da existência, a saber, o sofrimento, a miséria, a tristeza, dentre outras. Mas nem por isso – ou seja, pelo fato de viver no luxo – ele é um ser de total felicidade. Tanto é que Baudelaire insinua que sua ocupação primordial é a busca dessa. De acordo com Baudelaire,

O Dândi não visa o amor como objetivo especial. [...]. O Dândi não aspira ao dinheiro como a uma coisa essencial; um crédito infinito ser-lhe-ia insuficiente; ele deixa essa grosseira paixão para os mortais vulgares. O dandismo não é sequer, como muitas pessoas de pouca reflexão parecem acreditar, um gosto imoderado pelo vestir bem e pela elegância material. Essas coisas são para o perfeito Dândi apenas um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. [...]. Mas um Dândi nunca pode ser um homem vulgar.[10]

Em princípio, o Dândi aparenta ser complexo e de difícil entendimento; aquele ser insatisfeito que aparece não ter objetivos definidos. Sendo rico, ele não tem preocupações com o “andar bem arrumado”, entretanto, também não é vulgar. De acordo com Baudelaire, “o dandismo surge principalmente nas épocas transitória em que a Democracia ainda não era todo-poderosa, em que a Aristocracia só em parte é indolente e aviltada”. [11] Sendo, portanto, um ser de resistência e de difícil entendimento, pode se concluir que o Dândi é aquele ser que sempre quer dar uma mensagem; sempre quer fazer um alerta, ou chamar a atenção para alguma coisa que está por vir. Talvez seja pelo fato de voltar-se para algo fora do real, mas que, como previsão, poderá se realizar, é que o dândi se torna esse ser incompreensível, embora seja notado por todos. “O dandismo é o ultimo brilho de heroísmo nas decadências”.[12] Justamente pelo fato de fazer frente às decadências, não aceitar ser engolido pelo sistema e, portanto, resistir (até às ultima conseqüências) é que “os dândis são cada vez mais raros entre nós”.[13] 
No sentido da resistência que aqui está sendo tratado é que Baudelaire fala da imagem do herói. Em “A Paris do segundo império em Baudelaire”, Benjamin refere que “Baudelaire moldou a sua imagem de artista segundo a imagem do herói”.[14] O herói é aquele que busca certa autonomia; é aquele que sabe diferenciar uma coisa da outra. Ele está em constante luta contra as concepções vigentes de sua época e que distorcem a realidade. Sendo herói, Baudelaire não cai no extremismo de se adequar apenas a um lado da realidade, mas procura conhecê-la em sua integridade. É por isso que ele sempre estava presente em diversos lugares. Baudelaire andava tanto no luxo como no lixo. Desse modo, da mesma forma como ele ia aos lugares precários da cidade, ele também ia aos lugares nobres, como, por exemplo, os salões. Foi justamente isso que fez dele – mais do que um poeta – um herói. Baudelaire sabia que a sua sociedade era uma sociedade voltada para a busca do dinheiro e era essa uma das razões pelas quais uns eram ricos e outros, miseráveis. Foi justamente pelo fato de conhecer a pobreza de uma parcela considerável da população, é que a poesia de Baudelaire vai tratar de demonstrar as mazelas da cidade. Uma cidade que está em contato direto com a morte. Morte essa que se inicia por causa da busca de riquezas, o capitalismo. Essa cidade que se arruína, é aquela para onde todas as massas convergem. Para lá se dirigem porque no seu imaginário (da massa) a cidade passa a ser o local onde se encontra a felicidade. Nessa cidade, o homem não deixa rastro, pois, ele é dissolvido na multidão. Para Baudelaire é na cidade, portanto, que está a modernidade. A crítica que ele faz, não faz diretamente a ela, mas ao desenvolvimento da técnica, que trousse o progresso para uns e o regresso para outros. Diante da massificação da sociedade, é preciso reconhecer que Baudelaire não é massa, entretanto, ele que se envolver com ela. Tudo o que ele não quer é ser escravo de um sistema que atua, principalmente, na manipulação da consciência das pessoas.



[1] Escritor francês, nasceu em Paris no ano 1821 e morreu em 1867, aos 46 anos. Publicou antes de 1848, o período chamado dandy, os salões de 1845, 1846 e outros textos. Mas foi no período da maturidade, entre 1852 e 1863, que ele mais produziu os textos que marcaram época. Teremos na prosa baudelaireana, mesmo considerando a estética interna da poesia e na poesia em prosa, os antológicos escritores Sobre Edgar Allan Poe, a Exposição Universal de 1855, os caricaturistas franceses e estrangeiros, ambos de 1857, o Salão de 1859, a arte filosófica publicada em 1869, as experiências com drogas e suas reflexões em textos, o Richard Wagner e Tannhäuser em Paris de 1861, os escritores sobre Delacroix de 1863 e as conclusões esparsas na obra “Meu coração posto a nu”, de 1862-1864, onde afirma “Eu encontrei a definição do Belo, – de meu Belo. É qualquer coisa de ardente e de triste, qualquer coisa de um pouco vago, deixando margem à conjetura. Eu vou, se me permitirem, aplicar minhas idéias a um objeto sensível, ao objeto, por exemplo, o mais interessante na sociedade: um rosto de mulher”.  (cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.).  
[2] Na sociedade contemporânea, lixão além de se tornar morada de muitos, se tornou também o local de onde esses muitos passaram a retirar seus alimentos, quer aproveitando o resto de comida proveniente das fartas mesas dos capitalistas, aos quais o progresso beneficiou diretamente, quer extraindo elementos para serem vendidos a preço de miséria, o que também não resolveu a situação, pelo contrário, de algum modo contribui para uma linearidade no terrível estado de miséria. Portanto, o progresso e a técnica, prerrogativas exclusivas da modernidade, trouxeram para a sociedade os dois gumes da espada. Simultaneamente trouxeram a felicidade (de uns poucos) e a infelicidade (de muitos); a fortuna e a maldição; a vida e morte.
[3] Como exemplo pode ser citada a Rua Grande de São Luis – Ma, a Rua 25 de Março, no centro de São Paulo e a Rua XV de novembro no centro de Curitiba.
[4] Cf. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin: Sociologia. Ed. 2. São Paulo: Ática, 1991. P. 38.
[5] Cf. Id. Ibidem. P. 39.
[6] Cf. Id. Ibidem. P. 39.                                                                                                             
[7] Cf. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2005000100003&script=sci_arttext                                                                                                                   Acesso em: 18-06-2010
[8] O dandismo baudelaireano está não apenas na raiz de toda a fundamentação estética do que produziu o autor, mas até mesmo na origem e na justificação de sua conduta humana e social. Recorra-se ao próprio poeta para que se entenda melhor essa instigante e paradoxal postura diante da vida e da arte. O que seria exatamente esse dândi e qual sua função mais significativa? Para Baudelaire, a natureza estaria corrompida pela própria natureza [...]. Essa visão de natureza desde sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida numa passagem do ‘Éloge du maquillage’, em L’ art romantique, na qual Baudelaire sustenta que “la nature n’ ensegner rien, ou presque rien, C’est elle contraint l’homme à dormir, à boire, à manger, et à se garantir, tant bien que mal, contre lês hostilités de l’atmosphère. C’est elle aussi qui pousse l’ homme à tuer son semblable, à Le manger, à Le sequestrer, à Le torture.” [...] o dandismo baudelaireano nada mais é que uma manifestação do espírito, um processo da vida interior cujas raízes e implicações são bem mais fundas do que se possa imaginar. [...] O artifício do dandismo corrigiria assim a imperfeição natural, e esse é o desiderato único de toda a civilização. (Cf. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Ed. 4. trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. P. 55-56.).    
[9] Cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993. P.239.
[10] Cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993. P. 240.
[11] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[12] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[13] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[14] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992. (P. 92).

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