domingo, 2 de setembro de 2012

O ESPÍRITO DA MODERNIDADE



Discorrer sobre uma coisa sem deturpar a originalidade de seu caráter, isto é, dos seus traços peculiares, significa antes de tudo, reconhecer essa mesma coisa como portadora de certa autonomia que se tece, ou se constrói a partir de sua própria identidade. Se a identidade de uma coisa, portanto, constitui o seu distintivo ontológico, ou seja, aquilo que faz com que a sua razão de ser seja diferente das demais coisas que já são, logo, conhecer uma coisa em sua integridade significa justamente mergulhar naquilo que de mais profundo ela tem afim de que se descubra, a partir daí, os pilares da sua própria existência.
Cenário da diversidade, a modernidade é – diga-se de passagem – esse ser de existência complexa que se constituiu como novo a partir da destruição do velho. Nesse contexto, o termo “velho” faz referência à Idade Média em sua totalidade, onde, basicamente, vivia-se sob a forma da “unicidade” [1], no campo da criação artística, por exemplo.
Caracterizada pela pluralidade – em contraste com a “singularidade” medieval – a era moderna é aquela que vai superar, do ponto de vista da técnica, do progresso e do mercado, todos os ideais da tradição que – no plano místico-religioso – não possuíam nenhuma relevância mercadológica, como por exemplo, os objetos da criação artística. Desse modo, não tendo o seu valor determinado pela moeda, e sim pela capacidade de estabelecer certa ligação entre o humano e o divino, a obra de arte, nesse contexto, sob a tutela da tradição eclesiástica, estava para a libertação, assim como o renascimento estava para a emancipação do artista. Portanto, não sendo objeto de cobiça do mercado, tal como veio a ser no período moderno, a obra de arte encontrou, no período medieval, o lócus sublime[2] e excelente à conservação da sua pureza. Como elemento mediador entre o temporal e o atemporal, o visível e o invisível, o terrestre e o celeste, isto é, entre o concreto e o abstrato, a criação artística era entendida como algo sagrado, tal como ainda hoje se observa veementemente em praticamente todas as igrejas cristãs e demais templos religiosos presentes em todos os lugares. Voltada para o âmbito religioso, a obra de arte no medieval mantinha, portanto, uma relação, por excelência, inextrincável com as praticas ritualísticas. Sob a égide da tradição, a obra de arte tinha como recinto principal, os mosteiros, locais de profundo silêncio, contemplação e recolhimento onde, também era praticado o culto religioso. Nessa perspectiva, Benjamin[3] refere que

O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, as obras de artes mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso [...] em outras palavras: o valor singular da obra de arte “autêntica” tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu seu valor de uso original e primeiro.[4]

Inicialmente, era, portanto, na pratica do rito que repousava e se expressava todo o sentido e valor da obra de arte. A ausência de interesse econômico na relação que se estabelecia entre essa e o homem revelava justamente a grandeza da criação artística dotada de pureza, unicidade, originalidade e profundidade.
Conecta á lógica da natureza, onde tudo muda, tudo progride, tudo se transforma, a Idade Média, em sua reta final, foi aos poucos se contraindo em si mesma, devido à evolução dos acontecimentos, de tal modo que – dada a fragilidade de suas bases, bem como sua não correspondência às exigências intelectuais e imaginativas do homem – tornou-se necessário a instituição de um novo modelo de sociedade, na qual o homem pudesse gozar de mais liberdade a autonomia. Surge, então, a era moderna, que teve como ponto de partida o Renascimento.
Ponto de transição entre o período medieval e o moderno, o Renascimento – que procurou restaurar na sociedade pós-medieval os ideais da cultura grega – teve como pretensão primeira a construção de um homem autônomo e independente a partir da elevação da razão em detrimento da fé cristã. Entretanto, ele (Renascimento) que

Inspirou-se no humanismo, movimento de intelectuais que defendiam o estudo da cultura Greco-romana e o retorno a seus ideais de exaltação do homem e de seus atributos como: a razão e a liberdade [...] não significou, porém um abandono completo das questões cristãs medievais, o que se torna claro se observamos o fundo religioso que persiste nas obras intelectuais e artísticas desse período[5].


Ora, embora não tenha suprimido todos os resquícios ou traços medievais que continuaram depois do corte na história que pôs fim à Idade Média, o Renascimento deu um salto relevante nessa direção, construindo, portanto, as bases daquilo que, de fato, veio a ser a modernidade.
Na modernidade, porém, as transformações que iam simultaneamente ocorrendo, fizeram com que desaparecessem algumas características da obra de arte, como, por exemplo, a sua pureza[6] e a sua aura, então conservadas na era medieval. Nesse contexto (moderno), ao contrário do anterior, ela vai se tornar objeto de comércio, de compra e venda, ou mesmo de troca. Ou seja, na modernidade, o valor de uso da obra de arte passa a ser ditado pela moeda e não mais pelo culto dos mosteiros, ao qual ela estava restrita anteriormente. Aqui já se tinha, portanto, a ruptura total da obra de arte com a instituição religiosa. O ponto de partida dessa ruptura se deu justamente a partir da sua abertura para a reprodução, o que em Walter Benjamin, por exemplo, está dado na expressão “reprodutibilidade técnica da obra de arte”. Benjamim refere que

A reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na história do mundo, da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte reproduzida torna-se cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade[7]


Como fator da reprodutibilidade, a obra de arte passou, então, a ficar mais tempo exposta, aos olhares, admirações e encantamentos do público. Nessa perspectiva, percebe-se, portanto, que a arte vai estar voltada para o mercado, para o consumo, o que, de algum modo, já caracteriza a sua ligação com as massas.
Outro ponto relevante que pode ser assinalado para fins de uma compreensão mais aprofunda, é quando no pensamento de Benjamin lê-se:

Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – sua existência única no lugar em que se encontra. [...]. O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade. [...]. Mas enquanto o autêntico mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução manual que, regra geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à reprodução técnica. [8]


De que a reprodutibilidade tenha ocasionado a emancipação da arte das amarras da tradição, disso ninguém pode duvidar. Entretanto, é valido ressaltar que, não obstante, ela (a reprodução) ainda não constitui uma base segura capaz de cristalizar o caráter autêntico da obra de arte. Pelo contrário, dada a reprodução, tem-se, consequentemente, uma perda considerável da autenticidade ou originalidade da própria obra de arte, isto porque, diante desse fenômeno (reprodutibilidade) perde-se consideravelmente a capacidade de se dizer o que é original e o que não é. Nesse contexto, Benjamin diz que “o que murcha na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura[9]. A aura da obra de arte, cumpre ressaltar, corresponde exatamente à sua originalidade que na sociedade de massa se dilui em vista da reprodução, que se dá em escala bastante elevada. Segundo Benjamin

No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingindo um nível tal que começara a tornar objeto seu, não só a totalidade da obra de arte proveniente de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos. [10]

Percebe-se, portanto, como, de forma veloz, a reprodutibilidade se disseminou na sociedade de massa de modo a abrir caminhos e conquistar espaço. Ora, a percepção que se tem disso é a de que a reprodutibilidade parece ter passado por um processo de aperfeiçoamento do qual, pode-se pensar, resultou a rapidez da reprodução. Portanto, é importante salientar que essa conquista da sociedade de massa, talvez, jamais teria sido alcançada se o conhecimento não tivesse evoluído e o homem não tivesse mudado de mentalidade. O conhecimento, portanto, assume um papel relevante no processo de transformação de uma sociedade, um povo ou uma época. Tudo isso – atrelado ao mercado, onde a busca do lucro é a regra geral e a competitividade aparece como força motriz que gera novas produções – contribuiu consideravelmente para os avanços e conquistas, passíveis de percepção no contexto da reprodutibilidade técnica da obra de arte.
Na sociedade de massa, onde a cultura passa a ser produzida com exclusividade em função de seu valor de troca, a reprodutibilidade técnica passa a ter uma relevância capital no que diz respeito à busca de riquezas.
Outro aspecto que aqui não pode ser esquecido, é que na modernidade e suas massas, a obra de arte também se torna um meio através do qual muitos artistas buscaram sobreviver. Foi nesse contexto que a idéia de obra de arte passou a ser uma controvérsia nesse tipo de sociedade (massa). Nessa sociedade, a beleza da obra de arte já não podia mais ser contemplada e nem sentida. É como se ela (a obra de arte) tivesse perdido a sua capacidade de atingir a sensibilidade do sujeito. É como se esse não reconhecesse mais a grandeza daquela. Na modernidade houve, portanto, uma inversão na finalidade da obra de arte, se comparada com o período medieval. Se nessa, ela visava levar o sujeito ao encontro do divino, nesta, ela pretendia levá-lo ao mercado. A razão disso decorre do fato de que na sociedade de massa, ela foi feita para atingir exclusivamente o mercado e beneficiar o capitalismo. Para isso, muitos meios de reprodução foram idealizados e, de fato, praticados, como por exemplo, a fotografia[11]. Nesse sentido Benjamin refere que “o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário foi a fotografia[12]. Com base nele (Benjamin), poder-se-ia ainda dizer que as primeiras fotografias, provavelmente, foram de rostos humanos, o que, supostamente, deixava as pessoas fascinadas por verem à sua frente sua própria face, o que – para a época – certamente deve ter sido uma coisa de arrastar multidão. No texto intitulado “Pequena história da fotografia”, ele escreve que “o rosto humano era envolvido por um silencio em que repousava o olhar[13]. Quanto fascínio, arrepio e emoção não devem ter sentido aquele povo! O aperfeiçoamento da fotografia inaugura, portanto, na reprodutibilidade e na própria sociedade de massa, uma espécie de cultura voltada para o consumo das imagens. Nessa perspectiva, a fotografia enquanto fator de reprodução, também contribui em demasia para a perda da aura da obra de arte na medida em que não possibilita determinar a sua autenticidade. Alem da fotografia, outros meios de reprodução também foram idealizados na modernidade, como por exemplo, o cinema e o teatro, dentre outros, que aqui não serão analisados minuciosamente.
Diante do exposto, pode-se definir a modernidade como sendo um local de diversidade para onde as massas convergem; é o grande “mosteiro” que, ao invés de conduzir o indivíduo para dentro de si, conduz o para dentro do mercado, onde ele se dilui e desaparece, porque é engolido, sobretudo, pelo sistema capitalista; é um grande palco de evento, onde o ator oficial passa a ser a reprodutibilidade técnica da obra de arte, e a platéia, a própria massa, que se deixa fascinar, emocionar e seduzir pelo fenômeno da reprodução.
Essas são, portanto, características, ou traços distintivos de uma sociedade, ou uma cultura em constante transformação. No âmbito da práxis política, a arte vai ser – na modernidade, ou na própria sociedade de massa – um auxílio fundamental para os grupos dominantes, sobretudo, no que diz respeito à manutenção desses grupos para a sua continuidade no poder.


REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1990.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992.
_________. Obras escolhidas II. Ed. 5. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Ed. 4. trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
_________. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: História e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2006.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2005000100003&script=sci_arttext                                                                                                                   Acesso em: 18-06-2010
KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin: Sociologia. Ed. 2. São Paulo: Ática, 1991.


NOTAS

[1]  Esse termo designa a finalidade exclusiva da obra de arte no contexto medieval, que era de caráter unicamente ritualístico.
[2] Essa expressão está sendo tomada, aqui, no sentido kantiano para designar aquela coisa que é absolutamente grande. E essa coisa grande, neste contexto, faz referência à Idade Média em sua totalidade, que constitui então o locus, ou seja, o lugar propício à conservação da obra de arte, enquanto livre da cobiça do capitalismo.
[3] Walter Benjamin nasceu a 15 de Julho de 1892, em Berlin. Estudou filosofia em freiburgi-im-Breisgau. Em 1919, morando em Berna (Suíça), escreveu sua tese de doutorado O conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Pensador na concretização de uma carreira universitária, Benjamin iniciou em 1923 sua tese de livre- docência sobre A Origem do Drama Barroco Alemão. Renunciou à carreira acadêmica devido ao fracasso de sua tese, passando o resto da vida no exílio, sem dinheiro, trabalhando como crítico e jornalista.
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, refugiou-se na Dinamarca, onde escreveu a Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Em 1940, escreveu em Paris as Teses Sobre o Conceito da História. Quando as tropas alemãs entram na cidade, Benjamin foge, mas quando descobre que é impossível atravessar a fronteira franco-espanhola, suicida-se a 27 de setembro em Port Bou, na Catalunha.
            Benjamin foi um dos interlocutores de Adorno, G. Scholen e Brecht, que, alem de seus amigos, eram críticos de seus trabalhos. (Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Ed. 5. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995. P. 279).
[4] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992. P. 82.
[5] Cf. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: História e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 127
[6] A pureza da obra de arte na Idade Média dizia respeito ao fato de que lá a relação dela com homem não tinha nenhuma mediação de interesse financeiro.
[7] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992. P. 83.
[8] Cf. Id. Ibidem, P. 77-78
[9] Cf. Id. Ibidem, P. 79.
[10]  Id. Ibidem, P. 76-77.
[11] Qual o conteúdo da mensagem fotográfica? O que transmite a fotografia? Por definição, a própria cena, o literalmente real. Do objeto á sua imagem há, na verdade, uma redução: de proporção, de perspectiva e de cor. No entanto essa redução não é, em momento algum, uma transformação (no sentido matemático do termo) para passar do real à sua fotografia, não é absolutamente necessário dividir em unidade e transformar essa unidade em signos substancialmente diferentes do objeto [...] entre esse objeto e sua imagem não é absolutamente necessário interpor um relais, isto é, um código; é bem verdade que a imagem não é o real, mas é, pelo menos, o seu analogon perfeito, e é precisamente esta perfeição analógica que, para o senso comum, define a fotografia. [...]. A fotografia considerando-se com um análogo mecânico do real, traz uma mensagem primeira que, de certo modo, preenche plenamente uma substância e não deixa lugar ao desenvolvimento de uma mensagem segunda. Em suma, de todas as estruturas de informação, a fotografia seria a única a ser exclusivamente constituída por uma mensagem “denotada” que esgotaria totalmente seu ser [...]. (Cf. BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1990. P. 12, 13, 14).  
[12] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992. P. 83.
[13] Id. Ibidem. P. 120.

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