sexta-feira, 15 de abril de 2011

FICHAMENTO DA PRIMEIRA PARTE DO LIVRO “LEVIATÔ



Fábio Coimbra[1]

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. Alex Marins, Ed. 2. São Paulo: Martin Claret, 2008.

Primeira parte
A RESPEITO DO HOMEM

Cap.1
SOBRE A SENSAÇÃO

- Referente ao pensamento dos homens, considerá-los-ei primeiro isoladamente e depois em cadeias ou dependentes uns dos outros. Isoladamente, cada um deles é uma representação ou aparência de alguma qualidade ou outro acidente de um corpo exterior, o que normalmente se designa um objeto. Esse objeto atua nos olhos, nos ouvidos e em outras partes do corpo do homem. Pela forma variada como atua, produz aparência diversa. (P. 19).
- Todas elas se originam naquilo que denominamos sensação, já que não há nenhuma concepção do espírito do homem que não tenha tido origem, total ou parcial, nos órgãos do sentido. Dessa origem deriva o restante. (P. 19).
            - O motivo da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de cada sentido, de forma imediata como no paladar e tato, ou de forma mediata, como na visão, na audição e no olfato [...]. A pressão, pela mediação dos nervos e de outras cordas membranas do corpo, prolongada em direção ao cérebro e coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração para se transmitir; [...]. Esta aparência ou ilusão é que os homens chamam de sensação; Consiste, no que se refere à visão, numa luz ou cor figurada; em relação aos ouvidos, num som; em relação ao olfato, num cheiro, em relação a língua e paladar, num sabor; e em relação ao resto do corpo, em frio, calor, dureza, maciez e outras sensações tanto quantas discernimos pelo sentir. (P. 19-20).
- Embora, a certa distância, o objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma coisa e a imagem ou ilusão uma outra. De tal sorte que em todos os casos a sensação nada mais é do que ilusão originária, causada pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores aos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinados. (P. 20).

Cap. 2
SOBRE A IMAGINAÇÃO
Memória – Sonhos- Aparições ou visões – Entendimento
- Homem nenhum duvida da veracidade da afirmação que segue: quando algo está imóvel, permanecerá imóvel para sempre, a menos que alguma coisa a agite. E não é fácil aceitar esta outra, de que quando uma coisa está em movimento, permanecerá constantemente em movimento a menos que algo a pare, muito embora a razão seja a mesma, isto é, nada pode mudar por si só. (P. 21).
- Um corpo em movimento move-se eternamente (a menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente, como vemos acontecer com a água, pois, embora o vento deixe de soprar, as ondas ainda rolam durante muito tempo. O mesmo acontece naquele movimento que se observa nas partes internas do homem, quando ele vê, sonha etc. [...] a imaginação nada mais é, portanto, senão uma sensação diminuída, e encontra-se nos homens, tal como em muitos outros seres vivos, estejam adormecidos ou despertos. (P. 21)
- Em vigília, a diminuição da sensação não é a diminuição do movimento feito na sensação, mas seu obscurecimento, mais ou menos como a luz do sol obscurece a luz das estrelas, as quais nem por isso deixam de exercer a atividade pela qual são visíveis, durante o dia, menos do que à noite. Da mesma forma, entre as muitas impressões que nossos olhos, ouvidos e outros órgãos recebem dos corpos exteriores, só é sensível a impressão dominante, assim também, sendo a luz do sol predominante, não somos afetados pela luz das estrelas. (P. 21-22).
- [...] quando queremos enfatizar a diminuição e significar que a sensação é evanescente, antiga e passada, denomina-se memória. Nesse sentido, a imaginação e a memória são uma e a mesma coisa, que, por razões várias, tem nomes diferentes. (P. 22).
            - O acúmulo de memória ou memória de muitas coisas chama-se experiência. A imaginação diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação, de uma só vez, ou por parte, em varias vezes. A primeira [...] é a imaginação simples, como quando imaginamos um homem ou um cavalo que vimos antes; a outra é composta no caso de a partir da visão de um homem num determinado momento, e de um cavalo em outro momento, concebemos, no nosso espírito um centauro. (P. 22).
- Como na sensação o cérebro e os nervos que constituem os órgãos necessários desta sensibilidade estão de tal modo entorpecidos, facilmente são agitados pela ação dos objetos externo, não podendo haver no sono qualquer imaginação ou sonho que não provenha de agitação das partes internas do corpo. Estas partes internas, pela conexão que tem com o cérebro e outros órgãos, quando estão agitadas mantém esses órgãos em movimento. (P. 23).
- [...] contento-me com saber que, estando desperto, não sonho, muito embora quando sonho, me julgo acordado. (P. 23).
- Assentado que os sonhos são provocados pela perturbação de algumas das partes internas do corpo, perturbações diversas têm de causar sonhos diversos. (P. 23)
- em suma, os sonhos são o reverso das imaginações despertas, iniciando-se o movimento por um lado quando estamos acordados e por outro quando sonhamos. (P. 24).
- Tem-se maior dificuldade em discerni o sonho dos pensamentos despertos quando, por qualquer razão, nos apercebemos de que não dormimos, o que é fácil de acontecer a uma pessoa cheia de pensamentos aflitivos e cuja consciência se encontra muito perturbada [...] (P. 24).
- A ignorância para distinguir sonhos de outras ilusões fortes, a visão e a sensação, fez surgir, no passado, a maioria das religiões dos gentios, os quais adoravam sátiros, faunos, ninfas e outros seres semelhantes, e hodiernamente a opinião que a gente simples tem das fadas, fantasmas e gnomos, e do poder das feitiçarias. (P.25).
- cabe ao homem sensato só acreditar naquilo que a razão lhe apontar como crível. Caso desaparecesse esse temor supersticioso dos espíritos, e com eles as idéias tiradas dos sonhos, as falsas profecias e muitas outras coisas dele decorrentes, graças as quais pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam melhor preparados para a obediência civil. (P. 25).

Cap. 3
SOBRE A CONSEQÜÊNCIA OU CADEIA DE IMAGINAÇÕES 
Cadeia dos pensamentos não-orientados – Cadeia dos pensamentos regulados – Lembrança – Prudência – Sinais – Conjectura do tempo passado 

- Entendo por conseqüência, ou cadeia de pensamento, a sucessão de um pensamento a outro, que se denomina, para se distinguir do discurso em palavras, discurso mental. (P. 26).
- Assim como não temos uma imaginação da qual não tenhamos tido antes uma sensação, na sua totalidade ou em parte, do mesmo modo não temos ligação de uma imaginação a outra se não tivermos tido previamente o mesmo nas nossas sensações. A razão disto é a seguinte: todas as ilusões são movimentos interiores, vestígios daqueles que foram produzidos nas sensações; aqueles movimentos que imediatamente se sucedem uns aos outros na sensação continuam também juntos depois da sensação. (P. 26).
- Diz-se que os pensamentos vagueiam e parecem impertinentes uns aos outros [...] o homem pode, muitas vezes, perceber o seu curso e a dependência de um pensamento em relação a outro. (P. 27).
- A impressão feita por aquelas coisas que desejamos, ou receamos, é forte e permanente, ou, quando cessa por algum momento, é de rápido retorno. [...] Do desejo surge o pensamento de algum meio que vimos produzir algo semelhante àquilo que almejamos [...]. (P. 27).
- [...] em todas as nossas ações devemos olhar muitas vezes para aquilo que queremos ter, pois desse modo concentramos o nosso pensamento na forma de atingir o objetivo. (P. 27).
- De duas espécies é a cadeia de pensamentos regulados: uma, quando a partir de um efeito imaginado, procuramos as causas ou meios que os produziram, e esta espécie é comum ao homem e a todos os animais; a outra é quando, imaginando seja o que for, procuramos todos os possíveis efeitos que podem por intermédio dessa coisa ser produzidos ou, em outras palavras, imaginamos o que podemos fazer com ela, quando a tivermos. Desta espécie só tenho visto indícios nos homens, pois se trata de uma curiosidade pouco provável na natureza de qualquer ser vivo [...]. (P. 28).
- Algumas vezes o homem deseja conhecer o motivo de uma ação. Pensa em alguma ação semelhante no passado, e no sequenciamento delas, passo a passo, supondo que acontecimentos semelhantes se devem seguir a ações semelhantes. (P. 28).
- A esse tipo de pensamento se chama previsão, prudência ou providência, e algumas vezes sabedoria, embora tal conjetura, devido a dificuldade de observar todas as circunstâncias, seja muito enganosa. Porém isto é certo: quanto mais experiência das coisas passadas tiver um homem, tanto mais prudente é, e suas previsões raramente falham. (P. 28-29).
- O melhor profeta naturalmente é o melhor adivinho, e o melhor adivinho é aquele mais versado e erudito nas questões que adivinha, pois tem maior número de sinais pelos quais se guiar. Um sinal é o evento antecedente do conseqüente, e contrariamente, o conseqüente do antecedente, quando conseqüências semelhantes foram anteriormente observadas. (P. 29).
- No entanto, não é a prudência que distingue os homens dos animais. Há animais que com um ano observam mais e alcançam aquilo que é bom para eles de maneira mais prudente do que jamais uma criança poderia fazer com dez anos. (P. 29).
- Assim como a prudência é uma suposição do futuro, tirada da experiência dos tempos passados, também há uma suposição das coisas passadas tiradas de outras coisas, não futuras, mas também passadas. (P. 29).
- O que imaginarmos será finito. Portanto, não existe qualquer idéia ou concepção de algo que possamos denominar infinito. Nenhum homem pode ter em seu espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas de nossa própria incapacidade. (P. 30).

Cap. 4
SOBRE A LINGUAGEM 
Origem da linguagem – O uso da linguagem – Abusos da linguagem – Nomes próprios e comuns – Universais – Necessidades das definições – Objeto dos nomes – Uso dos nomes positivos – Nomes negativos e seus usos – Palavras insignificantes – Entendimento – Nomes inconstantes

- Ignora-se quem descobriu o uso das letras. Diz-se que o primeiro que as trouxe para a Grécia foi Cadmus, filho de Agenor, rei da Fenícia. Invenção fecunda para prolongar a memória dos tempos passados e estabelecer a conjunção da humanidade dispersa por tantas e tão diferentes regiões da terra. (P. 31).
- Mas a mais nobre e útil de todas as invenções foi a da linguagem, que consiste em nomes ou apelações e em suas conexões, pelas quais os homens registram seus pensamentos, os recordam posteriormente e também os usam entre si para fins uteis e conversas recíprocas, sem o que não haveria entre os homens Estado, sociedade, contrato, paz, tal como não existem entre os leões, os ursos e os lobos. (P. 31).
- Toda esta linguagem adquirida e aumentada por Adão e sua posteridade, foi novamente perdida na torre de Babel, quando pela mão de Deus, todos os homens foram punidos, devido a sua rebelião, pelo esquecimento de sua primitiva linguagem. Sendo, depois disso, forçados a dispersar-se pelas varias partes do mundo, resultou necessariamente que a diversidade de línguas hoje existentes proveio gradualmente dessa separação [...].  (P. 31-32). 
- Passar nosso discurso mental para um discurso verbal, ou cadeia de nossos pensamentos para uma cadeia de palavras, caracteriza o uso da linguagem. [...] a primeira utilização dos nomes consiste em servir de marcas ou notas de lembranças. (P. 32).
- Os usos especiais da linguagem são os seguintes: primeiramente, registrar aquilo que descobrimos ser a causa de qualquer coisa, presente ou passada, e aquilo que achamos que as coisas presentes ou passadas podem produzir ou causar, o que em suma é adquirir artes. A seguir, para mostrar aos outros aquele conhecimento que atingimos, ou seja, aconselhar e ensinar uns aos outros. Em terceiro lugar, para dar a conhecer aos outros nossas vontades e objetivos, a fim de podermos obter ajuda. Em quarto lugar, para agradar e para nos deliciar, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e ornamento, de maneira inocente. (p. 32).
- Quatro abusos correspondem a esse uso. Primeiro, quando os homens registram erradamente seus pensamentos pela inconstância da significação de suas palavras, com as quais registram como, suas concepções aquilo que nunca conceberam e, desse modo, se enganam. Em segundo lugar, quando usam palavras de maneira metafórica, ou seja, com sentido diferente daquele que foi atribuído às palavras. Em terceiro lugar, quando por palavras declaram ser sua vontade aquilo que não é. Em quarto lugar, quando as usam para se ofender uns aos outros, dado que a natureza armou os seres vivos uns com dentes, outros com chifres, e outros com mãos para atacar o inimigo, nada mais é do que um abuso da linguagem ofendê-lo com a língua, amenos que se trate de alguém que somos obrigados a governar, mas não é ofender, e, sim, corrigir e punir. (p. 32-33).
- A linguagem é útil para a recordação das conseqüências de causas e efeitos, por meio da imposição de nomes e da conexão destes. (P. 33).
- Um nome universal é atribuído a muitas coisas, devido a sua semelhança em alguma qualidade ou outro acidente. Enquanto o nome próprio traz ao espírito uma coisa apenas, os universais recordam qualquer dessa muitas coisas. (p. 33).
- [...] o uso de palavras para registrar nossos pensamentos não é tão evidente como na numeração. Um louco de nascença que nunca conseguisse aprender de cor a ordem das palavras numerais, como um, dois, três, pode observar cada uma das pancadas de um relógio e acompanhar com a cabeça, ou dizer um, um, um, mas nunca pode saber que horas são. (p. 34).
- [...] sem palavras não há qualquer possibilidade de reconhecer os números e muito menos as grandezas, a velocidade, a força e outras coisas, cujo calculo é necessário á existência ou ao bem-estar da humanidade. (p. 34).
- O verdadeiro e o falso são atributos da linguagem e não das coisas. Onde não houver linguagem, não há nem verdade nem falsidade. (p. 34-35).
- [...] a verdade consiste na adequada ordenação de nomes em nossas afirmações. (P. 35).
- [...] em geometria, [...] os homens começam estabelecendo as significações de suas palavras. A esse estabelecimento de significações chamam definições, e colocam-nas no início de seu cálculo. [...] é necessário a qualquer pessoa que aspire a um conhecimento verdadeiro examinar as definições dos primeiros autores [...]. (p. 35).
- [...] na correta definição de nomes reside o primeiro uso da linguagem, o qual consiste na aquisição de ciência; e na incorreta definição, ou na ausência de definições, reside o primeiro abuso, do qual resultam todas as doutrinas falsas e destituídas de sentido [...]. (P. 35).
- Entre a verdadeira ciência e as doutrinas errôneas situa-se a ignorância. (p. 35).
- A natureza em si não pode errar; e à medida que os homens adquirem abundancia de linguagem, vão-se tornando mais sábios ou mais loucos do que habitualmente. Nem é possível sem letras que um homem se torne extraordinariamente sábio, ou extraordinariamente louco, a menos que sua memória seja atacada por doença ou tenha deficiência na constituição dos órgãos.  (p. 35-36).
- As palavras são os calculadores dos sábios que só com elas calculam. (p. 36).
- Os latinos chamavam aos cômputos de moeda ratione, e ao cálculo ratiocinatio [...] parece daí resultar a extensão da palavra ratio a faculdade de contar em todas as outras coisas. Os gregos têm uma só palavra, logos, para linguagem e razão. Não que eles pensassem que não havia linguagem sem razão, mas, sim, que não havia raciocínio sem linguagem. (P. 36).
- Sempre que qualquer afirmação seja falsa, os dois nomes pelos quais é composta, postos lado a lado e tornado num só, não significam absolutamente nada. Por exemplo, se for uma afirmação falsa dizer “um quadrângulo é redondo”, a expressão quadrângulo redondo nada significa e é um simples som. (p. 37). 
- [...] se a linguagem é peculiar ao homem [...], o entendimento lhe é peculiar. (p. 38).
- [...] os nomes são impostos para significar nossas concepções [...], nossas afeições nada mais são do que concepções, quando concebemos as mesmas coisas de forma diferente [...]. (p.38).

Cap. 5
SOBRE A RAZÃO E A CIÊNCIA
O que é a razão – Definição de razão – Onde está a reta razão – O uso da razão – Do erro e do absurdo – Causas do absurdo – Ciência – Prudência e sapiência, e diferença entre ambas – sinais da ciência

- Raciocinando alguém, nada mais faz do que conceber uma soma total, a partir da adição de parcelas, ou conceber um resto a partir da subtração de uma soma por outra [...]. (p. 39).
- Os escritores de política adicionam em conjunto pactos para descobrir os deveres dos homens. Os juristas somam leis e fatos para descobrir o que é certo e é errado nas ações dos homens privados. [...] seja em que matéria for que houver lugar para a adição e para subtração, há também lugar para a razão. Onde aqueles não tiverem o seu lugar, também a razão nada tem a fazer. (p. 39).
- Razão [...] nada mais é do que cálculo, isto é, adição e subtração das conseqüências de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar nossos pensamentos. [...] marcar quando calculamos para nós próprios, e significar quando demonstramos ou aprovamos nossos cálculos para os outros homens. (p. 39).
- [...] quando há controvérsia a propósito de um cálculo as partes têm de, por acordo mútuo, recorre a uma razão certa, à razão de algum arbitro, ou juiz, a cuja sentença se submetem, a menos que sua controvérsia se desfaça  e permaneça indecisa por falta de uma razão certa constituída  pela natureza. (p. 40).
- O uso e finalidade da razão não é descobrir a soma e a verdade de uma, ou várias conseqüências, afastadas das primeiras definições, e das estabelecidas significações de nomes, mas começar por estas e seguir de uma conseqüência para outra. (p. 40).
- [...] o erro é apenas uma ilusão, ao presumir que algo aconteceu, ou está para acontecer, acerca do que, muito embora não tivesse acontecido, não existe, contudo, nenhuma impossibilidade aparente. (p. 41).
- Os homens todos, por natureza, raciocinam de forma semelhante, e bem, quando têm bons princípios. (p. 43).
- [...] a razão não nasce conosco como a sensação e a memória, nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida com esforço, primeiro por meio de uma adequada imposição de nomes, e em segundo lugar por intermédio de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro, e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra, até chegar ao conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão. A isso os homens chamam ciência. [...] a ciência é o conhecimento das conseqüências [...]. (p. 43).
- [...] as crianças não são dotadas de razão nenhuma até que atinjam o uso da linguagem, mas são denominadas seres racionais devido a aparente possibilidade de terem o uso da razão na sua devida altura. (p. 43).
- [...] a luz dos espíritos humanos são as palavras claras, meridianas, mas primeiramente limpas por meio de exatas definições e purgadas de toda ambigüidade. A razão é o passo, o aumento da ciência o caminho, e o beneficio da humanidade é o fim. De outro lado, as metáforas e as palavras ambíguas e destituídas de sentido são como ignes fatui, e raciocinar com elas é o mesmo que perambular entre inúmeros absurdos. (p. 44).
- Uns certos e infalíveis, outros incertos, assim são os sinais da ciência. Certos quando aquele que aspira à ciência de alguma coisa sabe ensinar a matéria, isto é, demonstrar sua verdade de maneira perspícua a alguém. Incertos quando apenas alguns eventos particulares correspondem à sua pretensão e em muitas ocasiões se revelam da maneira que ele diz que deviam acontecer. (p. 44).

                                                  
Cap.6
SOBRE A ORIGEM INTERNA DOS MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS CHAMADOS PAIXÕES E A LINGUAGEM QUE OS EXPRIME 
Movimento vital e animal – o esforço – o apetite – o desejo – a fome – a sede – a aversão – o amor – o desprezo – o bem – o mal – o pulchrum – o turpe – o delicioso – o proveitoso – o desagradável – o inaproveitável – o deleite – o desprezo – o prazer – a ofensa – os prazeres dos sentidos – os prazeres do espírito – a alegria – a dor – a tristeza – a esperança – o desespero – o medo – a coragem – a cólera – a confiança – a desconfiança – a indignação – a benevolência – a bondade natural – a cobiça – a ambição – a pusilanimidade – a magnanimidade – a valentia – a liberdade – a mesquinhez – a amabilidade – a concupiscência natural – a luxuria – a paixão – o amor – o ciúme – a vingança – a curiosidade – a religião – a superstição – a verdadeira religião – o terror pânico – a admiração – a glorificação – a vangloria – o desalento – o entusiasmo súbito – o riso – o desalento súbito – o choro – a vergonha – o rubor – a imprudência – a piedade – a crueldade – a emulação – a inveja – a deliberação – a vontade – as formas de linguagem na paixão – o bem e o mal aparentes – a felicidade – o louvor – a exaltação

- Nos animais há dois tipos de movimentos que lhes são próprios. Um deles chama-se vital: começa com a geração e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção etc. [...] O outro tipo é o dos movimentos animais também chamados movimentos voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente. (p. 45-46)
- A sensação é o movimento provocado nos órgãos e partes inferiores do corpo do homem pela ação das coisas que vemos, ouvimos etc. A imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento, que permanece depois da sensação [...]. (p. 46).
- [...] a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários. (p. 46).
- Embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível ou quando o espaço onde ela é movida, devido a sua pequenez, é insensível, não obstante esse movimento existe. (p. 46).
- Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, [...] chamam-se esforço [...]. Quando vai em direção de algo que o causa, esse esforço chama-se apetite ou desejo. [...] quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão. (p. 46)
- Apetite e aversão são palavras que vem do latim, e ambas designam movimentos, uma de aproximação e outra de afastamento. (p. 46)
- Daquilo que os homens desejam se diz também que o amam e que odeiam aquelas coisas pelas quais sentem aversão. De modo que desejo e amor são a mesma coisa, salvo que por desejo sempre se quer significar a ausência do objeto e quando se fala em amor geralmente se quer indicar a presença. Também por aversão se quer designar a ausência e quando se fala de ódio pretende-se indicar a presença. (p. 46-47)
- [...] das coisas que inteiramente desconhecemos, ou em cuja existência não acreditamos, não podemos ter outro desejo que não o de provar e tentar.(p. 47)
- Daquilo que não desejamos nem odiamos se diz que desprezamos. (p. 47)
- Como a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões e muito menos é possível que os homens coincidam no desejo de um só e mesmo alvo. (p. 47).
- seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama vil e indigno. (p. 47).
- [...] nem há qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos. Ela só pode ser tirada da pessoa de cada um, quando não há Estado, ou então, num Estado, da pessoa que representa cada um [...]. (p. 47).
- Aquilo que realmente está dentro de nós é apenas movimento, tal como na sensação, provocado pela ação dos objetos externos [...]. (p. 48).
- Chama-se esperança o apetite ligado à crença de conseguir. Sem essa crença, o apetite chama-se desespero. [...] Chama-se confiança em si mesmo a esperança constante. Chama-se desconfiança em si mesmo o desespero constante. [...] Chama-se benevolência, boa vontade, caridade o desejo do bem dos outros. [...] Chama-se cobiça o desejo do bem dos outros [...]. Chama-se pusilanimidade o desejo de coisas que só contribuem um pouco para nossos fins e o medo das coisas que constituem apenas um pequeno impedimento. (p. 49).
- Chama-se concupiscência natural o amor pelas pessoas apenas sob o aspecto dos prazeres dos sentidos. (p. 50).
- O porquê, o como e o desejo de saber chamam-se curiosidade, e não existe em qualquer criatura viva a não ser no homem. Dessa forma, não é só por sua razão que os homens se distinguem dos outros animais, mas também por sua singular paixão. Nos outros animais o apetite pelo alimento e outros prazeres dos sentidos predominam de tal modo que impedem toda preocupação com o conhecimento das causas, o qual é um desejo do espírito que, [...] supera a fugaz veemência de qualquer prazer carnal. (p. 50)
- Causado pelos poderes invisíveis, inventados pelo espírito ou imaginados a partir de relatos publicamente permitidos, chama-se religião o medo daí advindo; quando esses não são permitidos chama-se superstição. Quando o poder imaginado é realmente como o imaginamos, chama-se verdadeira religião. (p. 50)
- Chama-se admiração a alegria ao saber de uma novidade; é própria do homem porque desperta o apetite de conhecer a coisa. (p. 50).
- Chama-se vangloria a invenção ou suposição de capacidades que se sabe não possuir [...]. (p. 51).
- [...] um excesso de riso perante os defeitos dos outros é sinal de pusilanimidade. Porque o que é próprio dos grandes espíritos é ajudar os outros a evitar o escárnio e comparar-se apenas com os mais capazes. (p. 51).
- É a vergonha a tristeza devida à descoberta de alguma falta de capacidade, a paixão que se revela através do rubor. (p. 51)
- Chama-se imprudência o desprezo pela boa reputação. (p. 52)
- Chama-se piedade a tristeza perante a desgraça alheia, e surge do imaginar que a mesma desgraça poderia acontecer a nós mesmo. (p. 52)
- Chama-se crueldade o desprezo ou pouca preocupação com a desgraça alheia, que deriva da segurança da própria fortuna. Pois considero inconcebível que alguém possa tirar prazer dos grandes prejuízos alheios, sem que tenha um interesse pessoal no caso. (p. 52)

Cap. 7
SOBRE OS FINS OU RESOLUÇÃO DO DISCURSO

O juízo ou sentença final – A dúvida – A ciência – A opinião – A consciência – A crença – A fé

- Em todo discurso, governado pelo desejo de conhecimento, há pelo menos um fim, quer seja para conseguir ou evitar alguma coisa. Onde quer a cadeia de discurso seja interrompida existe um fim provisório. (p. 55)
- Se for apenas mental, o discurso consistirá em pensamentos de que uma coisa será ou não, de que ela foi ou não foi, alternadamente. (p. 55).
- Tal como o último apetite na deliberação se chama vontade, assim também, a última opinião na busca da verdade sobre o passado e o futuro chama-se juízo, ou sentença final e decisiva daquele que discursa.  (p. 55).
- [...] o conjunto da cadeia de opiniões alternadas, quanto ao problema da verdade e da falsidade, se chama dúvida. (p. 55).
- [...] nenhuma espécie de discurso pode terminar no conhecimento absoluto dos fatos passados ou vindouros. Porque para o conhecimento dos fatos é necessário primeiro a sensação e depois disso a memória, e o conhecimento das conseqüências, que acima já disse chamar-se se ciência, não é absoluto, mas condicional. (p. 55).
- Ninguém pode saber, por meio do discurso, que isto ou aquilo é, foi ou será, o que equivale a conhecer absolutamente. É possível apenas saber que, se isto é, aquilo também é; que, se isto foi, aquilo também foi; e que se isto será, aquilo também será; o que equivale a conhecer condicionalmente. (p. 55-56).
- Quando o discurso é expresso por meio da linguagem, portanto, começa pela definição das palavras e procede mediante a conexão destas em afirmações gerais, e posteriormente em silogismos. O fim ou soma total é chamado de conclusão. (p. 56).
- Se o primeiro terreno desse discurso não forem as definições, ou se as definições não forem corretamente ligadas em silogismos, nesse caso o fim ou conclusão volta a ser opinião acerca da verdade de algo afirmado, embora as vezes em palavras absurdas e destituída de sentido, sem possibilidades de serem compreendidas. (p. 56).
- [...] o testemunho da consciência tem sido sempre atendido com a maior diligencia em todos os tempos. Depois passou-se a usar metaforicamente a mesma palavra, indicando o conhecimento dos fatos secretos e pensamentos secretos de cada um, sendo portanto metaforicamente que se diz que a consciência equivale a mil testemunhas. (p. 56).
- [...] os homens, veementemente apaixonados por suas opiniões por mais absurdas que fossem, e obstinadamente decididos a mantê-las, deram também a essas opiniões o reverenciado nome de consciência, como se pretendessem ilegítimo mudá-las ou falar contra elas. Dessa forma pretendem saber que estão certos, quando no máximo sabem que pensam estar. (p. 56).
- Na crença há duas opiniões, uma relativa ao que a pessoa diz, e outra relativa à sua virtude. Acreditar, ter fé em, ou confiar em alguém, tudo isso significa a mesma coisa: a opinião da veracidade de uma pessoa. Acreditar no que é dito, significa apenas uma opinião da verdade da coisa dita. (p. 57).
- No Credo, “crer em” não significa confiar na pessoa e, sim, uma confissão e aceitação da doutrina. (p. 57).
- [...] quando acreditamos que qualquer espécie de afirmação é verdadeira, com base em argumentos que não são tirados da própria coisa, nem dos princípios da razão natural, mas são tirados da autoridade de quem fez essa afirmação, neste caso o objeto de nossa fé é o orador ou a pessoa em quem acreditamos, ou em quem confiamos e cuja palavra aceitamos; e a honra feita ao acreditar é feita apenas a essa pessoa. Consequentemente, quando acreditamos que as Escrituras são a palavra de Deus, sem ter recebido qualquer revelação imediata do próprio Deus, o objeto de nossa crença, fé e confiança é a igreja, cuja palavra aceitamos e à qual aquiescemos. (p. 57)
- Aqueles que acreditam naquilo que um profeta lhes diz em nomes de Deus aceitam a palavra do profeta, honram-no e nele confiam e crêem, aceitando a verdade do que ele diz, quer se trate de um verdadeiro ou falso profeta. (p. 57).  
- [...] seja o que for que acreditarmos tendo como única razão para tal a que deriva apenas da autoridade dos homens e de seus escritos, que eles tenham sido ou não enviados por Deus, nossa fé será apenas fé nos homens. (p. 57-58).

Cap. 8
AS VIRTUDES CHAMADAS INTELECTUAIS E OS DEFEITOS CONTRÁRIOS A ESTAS

Definição da virtude intelectual – O talento, natural ou adquirido – O talento natural – O bom talento, ou imaginação – O bom juízo – A descrição – A prudência – A habilidade – O talento adquirido – A leviandade – A loucura – A raiva – A melancolia – A linguagem insignificante.

- Se todas as coisas fossem iguais em todos os homens nada seria apreciado. (p. 58).
- Por virtudes intelectuais sempre se entende aquela capacidade do espírito que os homens elogiam, valorizam e desejariam possuir em si mesmos. Vulgarmente recebem o nome de talento natural, embora a mesma palavra talento também seja usada pra distinguir das outras uma certa capacidade. (p. 58).
- São de duas espécies essas virtudes: naturais e adquiridas. Por naturais não entendo as que um homem possui de nascença, pois isso é apenas sensação, pela qual os homens diferem tão pouco uns dos outros [...] Quero referir-me àquele talento que se adquire apenas através da prática e da experiência, sem método, cultura ou instrução. Este talento natural consiste principalmente em duas coisas: celeridade – isto é, rapidez na passagem de um pensamento a outro e firmeza de direção para um fim escolhido. (p. 58).
- Tal diferença de rapidez é causada pela diferença das paixões dos homens, que gostam e detestam uns de uma coisa, outros de outras. (p. 58).
- Daqueles que observam suas diferenças e dissimilitudes, ao que se chama distinguir, discernir e julgar entre coisas diversas, nos casos em que tal discernimento não seja fácil, diz-se que têm um bom juízo. (p. 59).
- [...] a imaginação, quando não é acompanhada de juízo, não se recomenda como virtude. [...] o juízo e descrição, recomenda-se por si mesma, sem a ajuda da imaginação. (p. 59).
- Sem firmeza e direção para um fim determinado, uma grande imaginação é um espécie de loucura [...] (p. 59).
- O juízo deve ser predominante num bom livro de história, porque a excelência da obra consiste no método e na verdade, assim como na escolha das ações que é mais proveitoso conhecer. A imaginação não tem lugar aqui, a não ser para ornamentar estilos. (p. 60).
- A imaginação é predominante nas orações laudatórias e nas invectivas, porque o objetivo não é a verdade, mas a honra ou a desonra, o que é feito mediante nobres ou vis comparações. O juízo se limita a sugerir quais as circunstâncias que tornam uma ação louvável ou condenável. (p. 60).
- [...] em toda busca rigorosa da verdade o juízo faz tudo. A não ser que por vezes o entendimento tenha de ser ajudado por uma semelhança adequada, havendo nesse caso um uso da imaginação. (p. 60).
- Quanto às metáforas, nesse caso estão completamente excluídas. Sabendo que elas abertamente professam a simulação, admiti-las no conselho e no raciocínio seria manifesta loucura. (p. 60).
- Os secretos pensamentos de cada pessoa percorrem todas as coisas, sagradas ou profanas, limpas ou obscenas, sérias ou frívolas, sem vergonha ou censura. Coisa que o discurso verbal não pode fazer, limitado pela aprovação do juízo quanto ao momento, ao lugar e à pessoa. (p. 60).
- É na falta de discrição que reside a diferença. (p. 60).
- [...] quando há falta de talento não é a imaginação que falta, mas a discrição. O juízo sem imaginação é talento, mas a imaginação sem juízo não o é. (p. 61).
- Governar bem uma família ou um reino não corresponde a diferentes graus de prudência, mas a diferentes espécies de ocupação, do mesmo modo que desenhar um quadro pequeno, grande ou em tamanho maior que o natural, não corresponde a diferentes graus de arte. (p. 61).
- Caso à prudência se apresentar o uso de meios injustos ou desonestos [...] temos aquele perverso talento a que se chama astúcia. (p. 61).
- A magnanimidade é o desprezo pelos expedientes injustos ou desonestos. (p. 61).
- Com relação ao talento adquirido – ou seja, adquirido por método e instrução – o único que existe é a razão, que assenta no uso correto da linguagem, e da qual derivam as ciências. (p. 61).
- Residem nas paixões as origens das diferenças de talentos. A diferença das paixões deriva em parte da diferente constituição do corpo e em parte das diferenças de educação. (p. 61).
- [...] paixões [...] são diferentes não apenas por causa das diferenças de constituição dos homens, mas também por causa das diferenças de costumes e educação entre estes. (p. 62).
- [...] a riqueza, o saber e a honra não são mais do que diferentes formas de poder. (p. 62).
- Os pensamentos são para os desejos como batedores, ou espias, que vão ao exterior procurar o caminho para as coisas desejadas. É daí que provem toda a firmeza do movimento do espírito, assim como toda a rapidez deste. [...] não ter nenhum desejo é o mesmo que está morto. Ter por qualquer coisa paixões mais fortes e veementes do que geralmente se verifica nos outros é aquilo que os homens chamam loucura. (p. 62).
- [...] o dano e indisposição dos órgãos são causados pela veemência ou pelo extremo prolongamento da paixão. (p. 62).
- Sobre a paixão, cuja violência ou prolongamento provoca a loucura, é uma grande vanglória, a que vulgarmente se chama orgulho ou auto-estima, e é um grande desalento do espírito. (p. 62).
- O que torna os homens sujeitos à cólera é o orgulho, cujo excesso é a loucura chamada raiva ou fúria. Dessa forma ocorre que o excessivo desejo de vingança, quando se torna habitual, prejudica os órgãos e se transforma em raiva. O amor excessivo, junto ao ciúme, também se transforma em raiva. (p. 62).  
- A veemente convicção da verdade de alguma coisa, quando contrariada pelos outros, também se transforma em raiva. (p. 63).
- O que provoca no homem receios infundado é o abatimento, que constitui uma loucura vulgarmente chamada melancolia, a qual se manifesta em diversas condutas: visita a cemitérios e lugares solitários, atos de superstição e medo de alguém ou de alguma coisa determinada. Resumindo, todas as paixões que provocam comportamentos estranhos e invulgar são designadas pelo nome de loucura. (p. 63).
- Se os excessos são loucuras, não resta dúvida de que as próprias paixões, quando tendem para o mal, constituem outros tantos graus de desequilíbrio. (p. 63).
- [...] a loucura não é mais do que o excesso de manifestação da paixão [...]. A variedade da conduta dos homens que bebem demais é a mesma que a dos loucos, uns enraivecendo-se, outros amando, outros rindo, tudo isso de maneira extravagante, mas conformemente às varias paixões dominantes. (p. 64).
- As escrituras foram escritas para mostras aos homens o reino de Deus e preparar seus espíritos para se tornarem seus súditos obedientes, deixando o mundo e a filosofia a ele referente às disputas dos homens, pelo exercício de sua razão natural. (p. 66).
- Por espíritos sempre se entendem coisas que, sendo incorpóreas, podem, contudo, ser movidas de um lugar a outro. (p. 68).

CAP. 9
SOBRE OS DIFERENTES OBJETOS OS CONHECIMENTO

- Há dois gêneros de conhecimento. Um dos quais é um conhecimento dos fatos, o outro o conhecimento das consequências de uma afirmação para outra. (p. 68).
- O primeiro está limitado aos sentidos e à memória. É um conhecimento absoluto [...]. Este é o conhecimento necessário a uma testemunha. (p. 68).
- Ao segundo chama-se ciência. É condicional, como quando sabemos que se a figura apresentada for um círculo, nesse caso qualquer linha reta que passe por seu centro dividi-la-á em duas partes iguais. Este é o conhecimento necessário para um filósofo. Isto é, para aquele que pretende raciocinar. (p. 68).
- Chama-se história o registro do conhecimento dos fatos. Da história há duas espécies: uma chamada história natural, que é a história daqueles fatos, ou efeitos da natureza, que não dependem da vontade dos homens. Assim são as histórias dos metais, plantas, animais, regiões e assim por diante. (p.68).
- A outra é a história civil, que é a história das ações voluntárias praticadas pelos homens nos Estados. (p.68).
- A ciência registra seus apontamentos naqueles livros que encerram demonstrações das consequências de uma afirmação para outra e são popularmente chamados livros de filosofia. (p.68). 

CAP. 10
SOBRE O PODER, VALOR, DIGNIDADE, HONRA E MERECIMENTO  
Do poder, valor, dignidade, honra e merecimento – O poder – O valor – A dignidade – Honrar e desonrar- Honroso – Desonroso – Os escudos – Os títulos de honra – O merecimento – A aptidão

- Universalmente considerado, o poder de um homem consiste nos meios de que presentemente dispõe para obter qualquer visível bem futuro. Pode ser original ou instrumental. (p. 70).
- Poder natural é a eminência das faculdades do corpo ou do espírito. Extraordinária força, beleza, prudência, capacidade, eloqüência, liberalidade ou nobreza. Os poderes instrumentais são os que se adquire mediante os anteriores ou pelo acaso e constituem meios e instrumentos para se adquirir mais. Como exemplo, a riqueza, a reputação, os amigos e os secretos desígnios de Deus a que os homens chamam boa sorte. A natureza do poder é nesse ponto idêntica à da fama, dado que cresce à medida que progride. (p. 70).
- Dos poderes humanos o maior é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade. É o caso do poder de um Estado. Na dependência da vontade de cada indivíduo, é o caso do poder de uma facção, ou várias facções coligadas. (p. 70).
- A riqueza aliada à liberdade também é poder, porque consegue amigos e servidores. Privada de liberdade, não o é, porque nesse caso a riqueza não protege, mas expõe o homem, como presa, à inveja. (p. 70).
- [...] qualquer qualidade que torna um homem amado ou temido por muitos, é poder. Isso porque constitui um meio para adquirir a ajuda e serviço de muitos. (p. 70).
- Constitui poder a nobreza, não em todos os lugares, mas somente naqueles Estados onde goza de privilégios, pois é nesses privilégios que reside seu poder. (p. 71).
- É da natureza da ciência que só podem compreendê-la aqueles que em boa medida já alcançaram. (p. 71).
- O valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seu preço. (p. 71).
- Um hábil condutor de soldados é de alto preço em tempo de guerra presente ou iminente, mas não o é em tempo de paz. Um juiz douto e incorruptível é de alto valor em tempo de paz, mas não o é em tempo de guerra. (p. 71).
- Atribuir a um homem um alto valor é honrá-lo e um baixo valor é desonrá-lo. (p. 71).
- O valor público de um homem, aquele que lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens geralmente chamam dignidade. Esta sua avaliação pelo Estado se exprime por meio de cargos de direção, funções judiciais e empregos públicos ou pelos nomes e títulos introduzidos para a distinção de tal valor. (p. 71-72).
- Elogiar outra pessoa, por qualquer tipo de ajuda, é honrar, porque é sinal de que em nossa opinião ela tem poder para auxiliar. Quanto mais difícil é a ajuda, maior é a honra. (p. 72).
- Ceder o passo ou o lugar a outrem, em qualquer questão, é honrar, porque equivale a admitir um poder superior. Fazer frente é desonrar. (p. 72).
- Pedir a um homem seu conselho, ou um discurso de qualquer tipo, é honrar, em sinal de que o consideramos sábio, eloqüente ou sagaz. Dormir, afastar-se, ou falar quando ele fala é desonrá-lo. (p. 72).
- Pedir orientação ou colaboração em ações difíceis é honrar, como sina de apreço pela sabedoria ou outro poder. Recusar a colaboração dos que a oferecem é desonrar. (p. 73).
- [...] a fonte de toda honra civil reside na pessoa do Estado e depende da vontade do soberano. Conseguintemente, é temporária e chama-se honra civil. (p. 73).
- [...] ser honrado, amado ou temido por muitos é honroso e prova de poder. (p. 73).
- São honrosos o domínio e a vitória, porque se adquire pelo poder. A servidão, que vem da necessidade ou do medo, é desonrosa. (p. 73).
- Ser ilustre, quer dizer, ser conhecido pela riqueza, cargos, grandes ações ou qualquer bem iminente, é honroso, como sinal do poder que faz alguém ser ilustre. O contrário, a obscuridade, é desonrosa. (p. 74).
- Os antigos comandantes gregos, quando iam para a guerra, mandavam pintar em seus escudos as divisas que lhes aprazia, sendo um escudo sem emblema um sinal de pobreza, próprio do soldado comum. (p. 75).
- Títulos de honra, como duque, conde, marquês e barão são honrosos, pois significam o valor que lhes é atribuído pelo poder soberano do Estado. Nos tempos antigos esses títulos correspondiam a cargos e funções de mando, sendo alguns derivados dos romanos e outros dos germanos e franceses. Os duques, em latim, duces, eram generais de guerra. Os condes, comites, eram os companheiros ou amigos do general, e era-lhes confiado o governo e a defesa dos lugares de conquistados e pacificados. O marquês, marchiones, eram condes que governavam as marcas ou fronteiras do império. Esses títulos de duque, conde e marquês foram introduzidos no império, na época de Constantino, o Grande, numa adaptação dos costumes da milícia dos germanos. Barão parece ter sido um titulo dos gatileses, e significa um grande homem, como os guardas que os reis e príncipes usavam na guerra para rodear sua pessoa. O termo parece derivar de vir, para ber e bar, que na língua dos gauleses significava o mesmo que vir em latim. Daí para bero e baro. Assim esses homens eram chamados berones, e posteriormente barones, e em espanhol varones. [...] com o passar do tempo estes cargos de honra [...] foram transformados em meros títulos, servindo em sua maioria para distinguir a preeminência, lugar e ordem dos súditos no Estado, e foram nomeados duques, condes, marqueses e barões para lugares dos quais essas pessoas não tinham posse nem comando. (p. 76-77).
- Coisa diferente de seu valor é o merecimento de um homem, e também de seu mérito. (p. 77).
- O mérito pressupõe um direito. A coisa merecida é devida por promessa. (p. 77).
      
Cap. 11

SOBRE AS DIFERENÇAS DE COSTUMES

O que aqui se entende por costumes – Um irrequieto desejo de poder, em todos os homens – O gosto pela disputa derivado do gosto pela competição – A obediência civil derivada do gosto pelo conforto – Derivada do medo da morte ou dos ferimentos – E do amor às artes – O amor à virtude derivado do amor à lisonja – O ódio derivado da dificuldade de obter grandes benefícios – E da consciência de merecer ser odiado – A tendência para ferir derivada do medo – E da desconfiança no próprio talento – Os empreendimentos vãos derivados da vanglória – A ambição derivada da opinião de suficiência – A irresolução derivada do exagero da importância das pequenas coisas – A confiança nos outros derivada da ignorância dos sinais da sabedoria e da bondade – E da ignorância das causas naturais – E da falta de entendimento – A aceitação dos costumes derivada da ignorância da natureza do bem e do mal – A aceitação dos indivíduos derivada da ignorância das causas da paz – A credulidade derivada da ignorância da natureza – A curiosidade de saber derivada da preocupação com o tempo futuro – Sua religião natural.

- [...] a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito. (p. 78).
- Ao homem é impossível viver quando seu desejo chega ao fim, tal como quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. (p. 78).
- A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo. Sendo a causa disso que o objeto do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só por um momento, mas garantir para sempre os caminhos de seu desejo futuro. (p. 78).
- [...] assinalo como tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. A causa disso nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou [...] mas o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem. Daqui se segue que os reis, cujo poder é maior, se esforçam por garanti-lo no interior por intermédio de leis, e no exterior por meio de guerras. (p. 78).
- A disputa pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro. (p. 78-79).
- Deleite sensual e desejo de conforto predispõem os homens para a obediência ao poder comum, pois com tais desejos se abandona a proteção que se poderia esperar do esforço e trabalho próprios. O medo da morte e dos ferimentos produz a mesma tendência e pela mesma razão. (p. 79).
- [...] os homens necessitados e esforçados, que não estão contentes com sua presente condição, [...] têm tendência para provocar situações belicosa e para causar perturbações e revoltas. (p.79)
- [...] tudo o que constitui prazer para os sentidos constitui também para a imaginação. (p. 79).
- Faz tender para o amor fingido receber de alguém a quem consideramos nosso igual maiores benefícios do que esperávamos. Na realidade, faz tender para o ódio secreto, pois nos coloca na situação de devedor desesperado que, ao recusar-se ao ver seu credor, tacitamente deseja que ele se encontre onde jamais possa voltar a vê-lo. Os benefícios obrigam, e a obrigação é servidão. (p. 79).
- A obrigação que não se pode compensar é servidão perpétua. (p. 79).
- Nos tumultos e sedições, os homens que desconfiam de sua própria sutileza se encontram mais predispostos para a vitória do que os que se consideram sábios ou sagazes, pois estes últimos gostam de se informar primeiro e os outros com medo de ser ultrapassados gostam de atacar primeiro. (p. 80).
- Os homens vaidosos, que sem ter consciência de grande capacidade se deliciam em julgar-se valentes, tendem apenas para a ostentação, não para os atos, pois quando surgem perigos ou dificuldades só os aflige ver descoberta sua incapacidade. (p. 80).
- Os homens que têm em alta sua sabedoria em questões de governo têm tendência para a ambição. (p. 80).
- Embora nos pobres seja uma virtude, a frugalidade torna os homens incapazes de levar a cabo as ações que necessitam da força de muitos homens ao mesmo tempo. Pois enfraquece seu esforço, que deve ser alimentado e revigorado pela recompensa. (p. 81).
- A ausência de ciência, em outras palavras, a ignorância das causas, predispõe, ou melhor, obriga os homens a confiar na opinião e autoridade alheia. Todos os homens preocupados com a verdade, se não confiarem em sua própria opinião, deverão confiar na de alguma outra pessoa, a quem considerarem mais sabia que eles próprios, e não considerem provável que queira enganá-los. (p. 81).
- O desconhecimento do significado das palavras, isto é, a falta de entendimento, predispõe os homens para confiar, não apenas na verdade que não conhecem, mas também nos erros e, mais importante, nos absurdos daqueles em quem confiam. Nem o erro nem o absurdo podem ser detectados sem um perfeito entendimento das palavras. (p. 81).
- [...] em todos os lugares onde os homens se vêem sobrecarregados com tributos fiscais, descarregam sua fúria em cima dos publicanos, quer dizer, os recebedores fiscais e outros funcionários da renda pública, e se associam àqueles que censuram o governo civil. (p. 82-83).
- [...] a ignorância das causas naturais predispõe os homens para a credulidade, fazendo-os inúmeras vezes acreditar em coisas impossíveis. [...] a credulidade predispõe-nos para mentir. [...] a simples ignorância sem ser acompanhada de malícia é capaz de levar os homens tanto para acreditar em mentiras como a dizê-las. A inventá-las também. (p. 83).
- O que predispõe os homens para investigar as causas das coisas é a ansiedade em relação ao futuro, já que esse conhecimento torna os homens mais capazes de dispor o presente da maneira mais vantajosa. (p. 83).
- O amor pelo conhecimento das causas [...] afasta o homem da contemplação do efeito para a busca da causa, e depois também da causa dessa causa, até que forcosamente se deva chegar a essa idéia: de que há uma causa da qual não há causa anterior, porque é eterna. É aquilo a que os homens chama Deus. De modo que é impossível proceder a qualquer investigação profunda das causas naturais, sem com isso nos inclinar para acreditar que existe um Deus eterno, embora não possamos ter em nosso espírito uma idéia dele que corresponda à sua natureza. (p. 83).
- [...] por meio das coisas visíveis deste mundo, e de sua ordem admirável, se pode conceber que há uma causa dessas coisas, a que os homens chamam Deus, mas sem ter uma imagem ou idéia dele no espírito. (p. 83).
- Aqueles que pouca ou nenhuma investigação fazem das causas naturais das coisas [...] tendem a supor e a imaginar por eles mesmos várias espécies de poderes invisíveis, e a se encher de admiração e respeito por suas próprias fantasias. Em épocas de desgraça tendem a invocá-las. Quando esperam um bom sucesso tendem a agradecer-lhes, transformando em seus deuses as criaturas de sua própria fantasia. Foi dessa maneira que aconteceu, devido a infinita variedade de fantasias, terem os homens criados no mundo inúmeras espécies de deuses. Esse medo das coisas invisíveis é a semente natural daquilo a que se chama religião. Esse medo, naqueles que veneram e temem esse poder de maneira diferente da sua, se chama superstição. (p. 83-84).

Cap. 12
SOBRE A RELIGIÃO

A religião, só no homem – Primeiro, a partir de seu desejo de conhecer as causas – A partir da consideração do início das coisas – A partir de sua observação das sequelas das coisas – A causa natural da religião: a ansiedade quanto aos tempos vindouros – O que os faz temer o poder das coisas invisíveis – E supô-las incorpóreas – Mas sem conhecer a maneira como elas afetam alguma coisa – Mas venerá-las tal como veneram os homens – E atribuir-lhes toda espécie de acontecimentos extraordinários – Quatro coisas, as sementes naturais da religião – Tornadas diferentes pelo cultivo – A absurda opinião do gentilismo – Os desígnios dos autores da religião dos pagãos – A verdadeira religião, o mesmo que as leis do reino de Deus – As causas de mudança na religião – A imposição de crenças impossíveis – Agir contrariamente à religião que estabelecem – Falta de testemunho dos milagres

- Observando que só no homem encontramos sinais ou frutos da religião, não há motivo para duvidar de que a semente da religião se encontra apenas no homem [...]. (p. 84).
- [...] é peculiar à natureza do homem investigar as causas dos eventos que assiste [...]. (p. 84).
- É-lhe também peculiar, em segundo lugar, perante toda e qualquer coisa que tenha sido um começo, pensar que ela teve também uma causa, que determinou esse começo no momento em que o fez, nem mais cedo nem mais tarde. (p. 85).
- Em terceiro lugar, para os animais, pois, a única felicidade é o gozo de sues alimentos, repouso e prazeres cotidianos, já que de pouca ou nenhuma previsão dos tempos futuros são capazes, por ausência de observação e de memória da ordem, consequencia e dependência das coisas que vêem. (p. 85).
- [...] todos os homens, sobretudo, os que são extremamente previdentes, se encontram numa situação semelhante à de Prometeu. Tal como Prometeu – nome que quer dizer homem prudente – foi acorrentado ao monte Cáucaso [...] onde uma águia se alimentava de seu fígado, devorando de dia o que tinha voltado a crescer durante à noite, assim também o homem que olha demasiado longe, preocupado com os tempos futuros, tem durante todo o dia seu coração ameaçado pelo medo da morte, da pobreza ou de outras calamidades, e não encontra repouso nem paz para a sua ansiedade a não ser no sono. (p. 85).
- [...] o reconhecimento de um único Deus eterno, infinito e onipotente pode ser derivado do desejo que os homens sentem de conhecer as causas dos corpos naturais e suas diversas virtudes e operações. (p. 86).
- [...] os homens que, através de sua própria meditação, acabam por reconhecer um Deus infinito, onipotente e eterno, preferem antes confessar que ele é incompreensível e se encontra acima do seu entendimento, em vez de definir sua natureza pelas palavras “espírito incorpóreo”, para depois confessar que sua opinião é ininteligível. (p. 86).
- É nestas quatro coisas, a crença nos fantasmas, a ignorância das causas segundas, a devoção pelo que se teme e aceitação de coisas acidentais como prognósticos, que consiste a semente natural da religião. (p. 88).
- Estas sementes foram cultivadas por duas espécies de homens. Uma foi a daqueles que as alimentaram e ordenaram segundo sua própria invenção. A outra foi a dos que o fizeram sob o mando e direção de Deus. (p. 88).
- [...] a religião da primeira espécie constitui parte da política humana, e ensina parte do dever que os reis terrenos exigem de seus súditos. A religião da segunda espécie é a política divina, que encerra preceitos para aqueles que se erigiram como súditos do reino de Deus. Da primeira espécie são todos os fundadores de Estados e legisladores dos gentios. Da segunda espécie são Abraão, Moisés e nosso abençoado salvador, dos quais chegaram até nós as leis do reino de Deus. (p. 88).
- Um deus com o nome de Caos simbolizava a matéria informe do mundo. (p. 88).
- Tão fácil é os homens serem levados a acreditar em qualquer coisa por aqueles que gozam de crédito junto deles [...]. (p. 91).
- Os primeiros fundadores e legisladores de Estados entre os gentios, portanto, cujo objetivo era apenas manter o povo em obediência e paz, em todos os lugares tiveram os seguintes cuidados. (p. 91).
- Primeiro, o de incutir em suas mentes a crença de que os preceitos que ditavam a respeito da religião não deviam ser considerados como provenientes de sua própria invenção, mas como ditames de algum deus [...] a fim de que suas leis fossem mais facilmente aceitas. (p. 91).
- Em segundo lugar, tiveram o cuidado de fazer acreditar que aos deuses desagradavam as mesmas coisas que eram proibidas pelas leis. (p. 91).
- Em terceiro lugar, o de prescrever cerimônias, suplicações, sacrifícios e festivais, os quais se devia acreditar capazes de aplacar a ira dos deuses. Como da ira dos deuses resultava o insucesso na guerra, grandes doenças contagiosas, terremotos e a desgraça de cada indivíduo. Essa ira provinha da falta de cuidado com sua veneração e do esquecimento ou do equívoco em qualquer aspecto das cerimônias exigidas. (p. 91).
- Quando foi o próprio Deus, através da revelação sobrenatural, que implantou a religião, nesse momento ele estabeleceu também para si mesmo um reino particular, e não ditou apenas leis relativas ao comportamento para consigo próprio, mas também de uns para com os outros. (p. 92).
- [...] no reino de Deus, a política e as leis civis fazem parte da religião, não tendo, portanto, lugar a distinção entre a dominação temporal e a espiritual. (p. 92).
- Deus é rei de toda a terra por seu poder, mas de seu povo escolhido é rei em virtude de um pacto. (p. 92).
- [...] toda religião estabelecida assenta inicialmente na fé de uma multidão em determinada pessoa, que se acredita não apenas ser um sábio, e esforçar-se por conseguir a felicidade de todos, mas também ser um santo, a quem o próprio Deus decidiu declarar sobrenaturalmente sua vontade [...]. (p. 92-93).
- O que faz perder a fama de sabedoria, naquele que estabelece uma religião, ou lhe acrescenta algo depois de já estabelecida, é a imposição de crenças contraditórias. (p. 93).
- O que faz perder a reputação de sinceridade é fazer ou dizer coisas que pareçam ser sinais de que não se acredita nas coisas em que se exige que os outros acreditem. (p. 93).
- [...] o que faz perder a reputação de amor é deixar transparecer ambições pessoas, quando a crença que se exige dos outros conduz ou parece conduzir à aquisição de domínio, riquezas, dignidade, ou à garantia de prazeres, apenas ou especialmente para si próprio. (p. 93).



Cap. 13

SOBRE A CONDIÇÃO NATURAL DA HUMANIDADE RELATIVAMENTE À SUA FELICIDADE E MISÉRIA

Os homens iguais por natureza – Da igualdade deriva a desconfiança – Da desconfiança, a guerra – Fora dos Estados civis, há sempre guerra de todos contra todos – Os inconvenientes de uma tal guerra – Numa tal guerra, nada é injusto – As paixões que levam os homens a tender para a paz

- Observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que outro não possa com razão nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. (p. 96).
- Quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (p. 96).
- No que se refere às faculdades do espírito [...], encontro entre os homens uma igualdade ainda maior que a igualdade de força. (p. 96).
- A prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual oferece a todos os homens equitativamente, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. (p. 96).
- O que aparentemente possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau que o vulgo. (p. 96).
- A natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios. (p. 96).
- Em geral não há sinal mais claro de uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube. Desta igualdade quanto a capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. (p. 96).
- Se dois homens desejam a mesma coisa, portanto, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos. No caminho para seu fim que – que é principalmente sua própria conservação e às vezes apenas seu deleite –, esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro. (p. 96-97).
- Contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. (p. 97).
- Esse aumento de domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos, admitido, obviamente. (p. 97).
- [...] os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros – e sim desprazer –, quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito, pois cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio, e na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva [...], por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano e, pelo exemplo, expandindo o dano aos demais. (p. 97).
- Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, desconfiança; e terceiro, a vanglória. (p. 97).
- A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A segunda, a segurança. A terceira, a reputação.  Os primeiros praticam a violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos domínios. Os segundos, para defendê-los. Os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente endereçado a sua pessoa, quer indiretamente a seus parentes, amigos, nação, profissão ou seu nome. (p. 97-98).
- [...] durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela situação a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. A guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Daí a noção de tempo deve ser levada em conta quanto a natureza da guerra, do mesmo modo que quanto a natureza do clima. Tal como a natureza do mal tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que pode durar vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal [...]. (p. 98).
- Os desejos e outras paixões dos homens não são em si mesmos um pecado. Nem tampouco o são as ações que derivam dessas paixões, até o momento em que se tome conhecimento de uma lei que as proíba, o que será impossível até o momento em que sejam feitas as leis. Nenhuma lei pode ser feita antes de se determinar qual pessoa irá fazê-la. (p. 99).
- Da guerra de todos contra todos, também isto é consequencia: que nada poder ser injusto. As noções do bem e do mal, de justiça e injustiça, não podem ter lugar ai. Onde não há poder comum não há lei. Onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes principais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. [...]. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão. Outra consequência da mesma condição é que não há propriedade, domínio, distinção entre o meu e o teu. Pertence a cada um só aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. (p. 99-100).
- As paixões que levam os homens preferir a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho. (p. 100).
- A razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordos. Essas normas são aquelas a que por outro turno se chama leis da natureza. (p. 100).

Cap. 14
SOBRE A PRIMEIRA E A SEGUNDA LEIS NATURAIS E SOBRE OS CONTRATOS

O que é direito de natureza – O que é a liberdade – O que é uma lei de natureza – Diferença entre lei e direito – Naturalmente, todo homem tem direito a tudo – a lei fundamental de natureza – A segunda lei de natureza – O que é abandonar um direito – O que é renunciar a um direito – O que é transferi o direito – A obrigação – O dever – A injustiça – Nem todos os direitos são alienáveis – O que é um contrato – O que é um pacto – A doação – Sinais expressos de contrato – Sinais de contrato por inferência – A doação feita através de palavras do presente ou do passado – Os sinais do contrato são palavras tanto do passado e do presente como do futuro – O que é o mérito – Os pactos de confiança mútua: quando são inválidos – O direito aos fins contém o direito aos meios – Não há pactos com os animais – Nem com Deus sem revelação especial – Só há pacto a respeito do possível e do futuro – Como os pactos se tornam nulos – Os pactos extorquidos pelo medo são validos – O pacto anterior toma nulo o pacto posterior feito com outros – O pacto no sentido de alguém não se defender é nulo – Ninguém pode ser obrigado a acusar-se a si mesmo – A finalidade do juramento – A forma do juramento – Só a Deus se faz juramento – o juramento nada acrescenta à obrigação

- O direito natural [...] é a liberdade que cada um possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida. Consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meio adequado a esse fim. (p. 101).
- [...] por liberdade entende-se a ausência de impedimentos externos, que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem proibir a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem. (p. 101)
- Lei natural, lex naturalis, é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir a sua vida, privá-lo dos meios necessário para preservá-la ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la. (p. 101).
- [...] o direito consiste na liberdade de fazer ou omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas. (p. 101).
- em tal condição (guerra) todo o homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Ora, enquanto perdurar esse direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem [...] a segurança de viver todo tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. (p. 101).
- É um preceito ou regra geral da razão, que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la. Se não conseguir, pode procurar e usar toda a ajuda e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a primeira e fundamental lei de natureza, que é procurar a paz, e segui-la. A segunda resume o direto natural, isto é, por todos os meios possíveis, cuidar da própria defesa. (p. 101).
- Desta lei fundamental de natureza, que ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros permite em relação a si mesmo. Pois enquanto cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira, a condição de guerra será constante para todos. Porém se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão par que alguém se prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa – coisa a que ninguém é obrigado –, e a não se dispor para a paz. (p. 102).
- Renunciar ao direito a alguma coisa equivale a privar-se da liberdade de negar ao outro o beneficio de seu próprio direito à mesma coisa. Quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a qualquer outra pessoa um direito que esta já não tivesse antes, porque não há nada a que alguém não tenha direito por natureza. (p. 102).
- Desiste-se de um direito apenas renunciado a ele ou transferindo-o a para outrem. Renunciando simplesmente, quando não importa em favor de quem irá redundar o respectivo beneficio. Transferindo-o, quando com isso se pretende beneficiar uma determinada pessoa ou varias pessoas. (p. 102).
- O jeito pelo qual um homem simplesmente renuncia, ou transfere seu direito, é uma declaração ou expressão, mediante um sinal ou sinais voluntários e suficientes, de que assim renuncia ou transfere, ou de que assim renunciou ou transferiu o direito àquele que o aceitou. (p. 103).
- [...] nada se rompe mais facilmente do que a palavra de um homem. (p. 103).
- O objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmo. (p. 103).
- [...] há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir. Primeiramente, ninguém pode renunciar ao direito de defesa a quem o ataca com violência para tirar-lhe a vida [...]. (p. 103).
- Contrato é a transferência mútua de direitos. (p. 103).
- [...] um dos contratantes pode entregar a coisa contratada, permitido que o outro cumpra a sua parte num momento posterior determinado, confiando nele até lá. Dessa forma, o contrato se chama pacto ou convenção. Ambas as partes podem também contratar imediatamente para cumprir mais tarde. Nesse caso, dado que se confia naquele que deverá cumprir sua parte, a ação se chama observância da promessa ou fé. A falta de cumprimento – se for voluntária – chama-se violação de fé. (p. 104).
- No caso da transferência de direito não ser mútua, e uma das partes transferir na esperança de assim conquistar a amizade ou os serviços de um outro ou dos amigos deste [...], nesse caso não há contrato, mas doação,dádiva ou graça [...]. (p. 104).
- Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência. Expressas são as palavras grafadas com a exatidão do que significam. Tais palavras são do tempo presente ou do tempo passado. (p. 104).
- Os Sinais por inferência são, na maioria das vezes, consequencia de palavras e, outras vezes, consequencia do silêncio; por vezes consequencia de ações e, às vezes, consequencia da omissão de ações. Normalmente um sinal por inferência, de qualquer contrato, é tudo aquilo que demonstra de maneira suficiente a vontade do contratante. (p. 104).
- [...] entre “Quero que isto seja teu amanhã” e “Dar-te-ei isto amanhã”. A primeira maneira de falar indica um ato da vontade presente, ao passo que a segunda indica um ato da vontade futura. A primeira frase, estando no presente, transfere um direito futuro, e a segunda, que é do futuro, não transfere nada. (p. 105).
- Em contratos, o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do tempo presente ou passado, mas principalmente quando são do futuro, porque todo contrato é uma translação ou troca mútua de direitos. (p. 105).
- [...] no contrato eu mereço em virtude do meu próprio poder e da necessidade do contratante. (p. 105).
- No caso da doação o que me permite merecer é apenas a benevolência do doador. (p. 105).
- No contrato mereço do contratante que ele se desfaça do seu direito. Na doação não mereço que o doador se desfaça do seu direito, e sim que, ao se desfazer dele, seja ele meu e não de outrem. (p. 105).
- Ao se fazer um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros [...] a menor suspeita possível torna nulo esse pacto. Se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, caso não haja o medo de algum poder coercitivo. (p. 106).
- Num Estado civil, que tem estabelecido um poder para coagir aqueles que de outra maneira violarem sua fé, esse temor deixa de ser razoável. Aquele que segundo o pacto deve cumprir primeiro é obrigado a fazê-lo. (p. 106).
- A razão do medo que invalida um pacto deve ser sempre algo que surja depois de feito o tal pacto. (p. 106).
- o que não pode impedir um homem de prometer não deve ser admitido como impedimento do cumprimento. (p. 106).
- O que transfere qualquer direito transfere também os meios de gozá-lo, na medida em que tal esteja em seu poder. (p. 107).
- Sem mútua aceitação não há pacto possível. (p. 107).
- Fazer votos com Deus é impossível, a não ser através da medição aqueles a quem Deus falou [...]. De outro modo não podemos saber se nossos pactos foram ou não aceitos. (p. 107).
- O conteúdo ou objeto de um pacto é sempre alguma coisa sujeita a deliberação – porque fazer um pacto é sempre um ato da vontade, quer dizer, o ultimo ato da deliberação –, portanto, sempre se entende ser alguma coisa futura e que é considerada possível de cumprir por aquele que firma o pacto. (p. 107).
- Ficam liberados de seus pactos os homens de duas maneiras; cumprindo ou sendo perdoados. O cumprimento é o fim natural da obrigação, e o perdão é a restrição da liberdade, constituindo a retransferência daquele direito em que consistia a obrigação. (p. 107).
- Pactos aceitos por medo, na condição de simples natureza, são obrigatórios. Por exemplo, se eu me comprometo pagar um resgate ou um serviço em troca da vida, a meu inimigo, fico vinculado por esse pacto. Pois, é um contrato, em que um recebe o benefício da vida e o outro receberá dinheiro ou serviço em troca dela. Obviamente, quando não há outra lei como é o caso na condição de simples natureza que proíba o cumprimento, o pacto é válido. (p. 107-108).
- Tudo o que posso fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar na legalidade por medo. O que eu compactuar legitimamente não posso romper na legalidade. (p. 108).
- Um pacto em que eu me comprometo a não me defender na mesma medida é sempre nulo. (p. 108).
- É possível, todavia, fazer um pacto nos seguintes termos: Se eu não fizer isto ou aquilo mate-me; não se pode fazê-lo nestes termos: Se eu não fizer isto ou aquilo, não te resistirei quando vieres matar-me. Decorre que o homem escolhe por natureza o mal menor, que é o perigo de morte ao resistir, e não o mal maior, que é a morte certa e imediata se não resistir. (p. 108).
- É igualmente inválido um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo, sem garantia de perdão. Na condição de natureza [...] não há lugar para a acusação, e no Estado civil a acusação é seguida pelo castigo. (p. 108).
- [...] as acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas como testemunho. A tortura é para ser usado, pois, como meio de conjetura, de esclarecimento num exame posterior e de busca da verdade. O que nesse caso é confessado contribui para aliviar quem é torturado, não para informar os torturadores. Não deve ser aceito, portanto, como testemunho suficiente porque, quer o torturado se liberte graças a uma verdadeira ou a uma falsa acusação, o fará pelo direito de preservação da vida. (p. 109).
- [...] na condição de simples natureza a desigualdade do poder só é discernida em caso de eventual luta. (p. 109).


Cap. 15
SOBRE OUTRAS LEIS DE NATUREZA

A terceira lei de natureza: a justiça – o que são a justiça e a injustiça – A justiça e propriedade têm início com a constituição do Estado – A justiça não é contrária à razão – Os pactos não são anulados pelo vício das pessoas com quem são celebrados – O que é a justiça dos homens, e justiça das ações – A justiça dos costumes e a justiça das ações – O que é feito a alguém com o seu próprio consentimento não é injúria – A justiça comutativa e a distributiva – A quarta lei de natureza: a gratidão – A quinta a acomodação mútua, ou complacência – A sexta: felicidade em perdoar – A sétima: que nas vinganças se considere apenas o bem futuro – A oitava, contra a insolência – A nona, contra o orgulho – A décima, contra a arrogância – A décima primeira: a equidade – A décima segunda: uso igual das coisas comuns – A décima terceira: da divisão – A décima quarta: da primogenitura e da primeira posse – A décima quinta: dos mediadores – A décima sexta: da submissão à arbitragem – A décima sétima: ninguém pode ser seu próprio juiz - A décima oitava: ninguém pode ser juiz quando tem alguma causa natural de parcialidade – A décima nona: do testemunho – Uma regra através da qual é fácil examinar as leis de natureza – As leis de natureza são sempre obrigatórias em consciência, mas só o são com efeito quando há segurança – As leis de natureza são eternas, mas são acessíveis – A ciência destas leis é a verdadeira filosofia moral

- Daquela lei natural em que somos obrigados a transferir aos outros aqueles direitos que, ao serem conservados, impedem a paz da humanidade, segue-se uma terceira: os homens têm de cumprir os pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias. (p. 111).
- Nesta lei natural assenta a fonte e a origem da justiça. Sem um pacto anterior, pois, não há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, seguindo daí que nenhuma ação pode ser injusta. Porém, depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. A definição de injustiça é o não cumprimento do pacto. Tudo o que não é injusto é justo. (p. 111).
- [...] para que as palavras “justo” e “injusto” possam ter sentido, é necessário alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento do pacto, mediante o medo de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto [...]. Não pode haver tal poder antes de erigir-se um Estado. (p. 111).
- onde não há, portanto, o seu, isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. Onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, já que todos os homens têm direito a todas as coisas. (p. 111).
- Onde não há Estado, entende-se, nada pode ser injusto. (p. 111).
- A natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos validos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só ai que começa a haver propriedade. (p. 111).
- [...] numa situação de guerra, em que os homens são inimigos entre si, na ausência de um poder comum que os mantenha a todos em respeito, ninguém pode esperar ser capaz de defender-se da destruição só com sua força e inteligência, sem o auxilio dos aliados, em aliança das quais cada um espera a mesma defesa. (p. 113).
- [...] quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de acordo com a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se constitua em vista da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que o aceitam. (p. 113).
- Alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade, portanto, está condenado a perecer, e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos outros homens, os quais ele não podia prever, e com os quais não podia contar, portanto, contra a razão de sua preservação. (p. 113).
- [...] a justiça, isto é, o cumprimento dos pactos, é uma regra da razão, pela qual somos proibidos de fazer todas as coisas que destroem nossa vida, e, por conseguinte, é uma lei da natureza. (p. 114).
- As palavras “justo” e “injusto”, quando são atribuídas aos homens, significam uma coisa, e quando são atribuídas as ações significam outra. Atribuídas ao homem indicam a conformidade ou a incompatibilidade entre os costumes e a razão. Atribuídas a ações, indicam a conformidade ou incompatibilidade com a razão, não dos costumes, mas de determinadas ações. (p. 114).
- Um homem justo é, portanto, aquele que toma o maior cuidado possível para que todas as suas ações sejam justas. Um homem injusto é o que despreza esse cuidado. (p. 114).
- A justiça das ações não faz com que aos homens se achem justos, e sim inocentes. A injustiça das ações também chamada injúria lhes atribui apenas o nome de culpados. (p. 115).
- A injustiça de costumes [...] é a aptidão para cometer injuria. (p. 115).
- A injustiça de uma ação [...] pressupõe que um determinado indivíduo tenha sido injuriado [...] (p. 115).
- [...] no Estado: os homens podem perdoar uns aos outros suas dívidas, mas não o roubo e outras violências que lhes causem danos. Porque não pagar uma dívida é uma injuria feita a eles mesmos, ao passo que o roubo e a violência são injurias feitas à instituição do Estado. (p. 115).
- [...] se quem pratica a ação não tiver anteriormente abandonado seu direito original de fazer o que lhe aprouve, mediante um pacto antecedente, não há quebra de pacto, portanto, não há injuria. (p. 115).
- Os autores dividem a justiça das ações em comutativa e distributiva. Dizem que a primeira consiste numa proporção aritmética e a segunda num proporção geométrica. Desse maneira, a justiça comutativa é por eles atribuída à igualdade de valor das coisas que são objeto de contrato. Já a justiça distributiva à distribuição de benefícios iguais a pessoas de mérito igual. (p. 115).
- A justiça comutativa é a justiça de um contratante, ou seja, o cumprimento dos pactos [...] (p. 116).
- A justiça distributiva é a justiça de um árbitro, isto é, o ato definir o que é justo. (p. 116).
- Assim como a justiça depende de um pacto antecedente, também a gratidão depende de uma graça antecedente, quer dizer, de uma dádiva antecedente. É esta a quarta lei natural, que pode ser assim formulada: “Quem recebeu benefício de outro, por simples graça, se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepender-se de sua boa vontade”. (p. 116).
- [...] a dádiva é voluntária e o objetivo de todos os atos voluntários é sempre o beneficio de cada um. (p. 116).
- A quinta lei natural é a complacência, isto é: “Que cada um se esforce por acomodar-se com os outros”. Para compreender esta lei é preciso levar em conta que na aptidão dos homens para a sociedade existe certa diversidade de natureza, derivada da diversidade de suas particularidades. (p. 116).
- Sendo de esperar que cada homem [...] se esforce o mais que possa por conseguir o que é necessário à sua conservação, todo aquele que a tal se oponha, por causa de coisas supérfluas, é culpado da guerra que daí venha a existir. Age, portanto, contrariamente à lei fundamental e natural que ordena procurar a paz. Aos que respeitam esta lei pode chamar-se sociáveis – os latinos chamavam-lhes commodi. Os que não respeitam se tornam obstinados, insociáveis, refratários e intratáveis. (p. 117).
- A sexta lei é: “Como garantia do tempo futuro se perdoem as ofensas passadas, àqueles que se arrependam e o desejam”. Isso porque o perdão não é mais do que uma garantia de paz [...] (p. 117).
- A sétima lei é: “Na vingança – isto é, a retribuição do mal com o mal – os homens não dêem importância ao mal passado, mas só importância ao bem futuro”. O que nos proíbe aplicar castigo com qualquer intenção que não seja a correção do ofensor ou como exemplo para os outros. Esta lei é consequência da anterior, que ordena o perdão em vista da segurança do tempo futuro. (p. 117).
- Causar dano sem razão tende a provocar a guerra, o que é contrário a lei natural. Geralmente se designa pelo nome de crueldade. (p. 117).
- Dado que todos os sinais de ódio ou desprezo tendem a provocar a luta, a ponto de a maior parte dos homens preferir arriscar a vida a ficar sem vingança, podemos formular em oitavo lugar, com lei natural, o seguinte preceito: “Ninguém, por atos, palavras, atitude ou gesto, declare ódio ou desprezo pelo outro”. Ao desrespeito a esta lei se chama geralmente contumélia. (p. 117-118).
- Decidir quem é o melhor homem é questão que não tem lugar na natureza, na qual [...] todos os homens são iguais. A desigualdade atualmente existente foi introduzida pelas leis civis. Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como fundamento de sua doutrina, afirma que por natureza alguns homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso referir-se aos mais sábios – entre os quais se incluía a si mesmo – devido a sua filosofia. Como se senhor e servo não tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela diferença de inteligência, o que não só é contrário à razão, mas é também contrário à experiência. (p. 118).
- [...] se a natureza fez os homens iguais essa igualdade deve ser reconhecida. Se a natureza fez os homens desiguais, como os homens, dado que se consideram iguais, só em termos igualitários aceitam entrar em condição de paz, essa igualdade deve ser admitida. Obviamente, como nona lei natural, proponho esta: “Cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza”. A falta a este preceito chama-se orgulho. (p. 118).
- Desta lei depende uma outra: “Ao se iniciar as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros”. Dessa forma, é necessário a todos os homens que buscam a paz renunciar a certos direitos de natureza [...]. (p. 118).
 - Se [...], ao fazer a paz, alguém exija para si aquilo que não aceita seja atribuído aos outros, estará agindo contrariamente à lei precedente, que ordena o reconhecimento da igualdade dos homens. Quem respeita essa lei é modesto, e arrogante quem não a respeita. Os gregos chamavam à violação desta lei de pleonexía, isto é, o desejo de quere mais do que a sua parte. (p. 118-119).
  - Se alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um preceito da lei natural que trate ambos equitativamente. Sem isso, as controvérsias entre os homens só pode ser decididas pela guerra. Aquele que for parcial num julgamento estará fazendo todo o possível para afastar os homens do uso de juízes e árbitros [...]. (p. 119).
- Deriva desta uma outra lei: “As coisas que não poder se divididas, que sejam gozadas em comum, se assim puder ser. [...]”(p. 119).
- É também uma lei natural: “A todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvo-conduto”. (p. 119).
- Posto que se supõe cada um fazer todas as coisas tendo em vista seu próprio beneficio, ninguém pode ser um arbitro em causa própria. (p. 120).
- As leis naturais é que ditam a paz como meio de conservação das multidões humanas. E são as únicas que dizem respeito à doutrina da sociedade civil. (p. 120).
 - [...] aquele que, possuindo garantia suficiente de que os outros observarão para com ele as mesmas leis, mesmo assim não as observar, não procura a paz, mas a guerra, e claramente a destruição de sua natureza pela violência. (p. 121).
- As leis naturais são imutáveis e eternas. (p. 121).
- A ciência dessas leis é a verdadeira e única filosofia moral. Filosofia moral não é mais do que a ciência do bem e do mal, na conservação e na sociedade humana. O bem e o mal são nomes que significam nossos apetites e aversões, os quais são diferentes conforme os diferentes temperamentos, costumes e doutrinas dos homens. (p. 121).
- A estas diretrizes da razão se costuma dar o nome de lei, embora impropriamente. São apenas conclusões ou teoremas relativos ao que contribui para a conservação e a defesa de cada um. Ao passo que a lei em sentido próprio, é a palavra daquele que tem direito de mando sobre outro. (p. 122).

Cap. 16
SOBRE AS PESSOAS AUTORES E COISAS PERSONIFICADAS

O que é uma pessoa – Pessoa natural e artificial – De onde vem a palavra pessoa – Ator, autor, autoridade – Os pactos por autoridade obrigam o autor – Mas não o ator – A autoridade deve ser mostrada – As coisas personificadas inanimadas – Irracionais; falsos deuses; verdadeiro Deus – Como uma multidão de homens é uma pessoa – Cada um é autor – Um ator podem ser muitos homens feitos um só por pluralidade de votos – Os representantes são improfícuos quando em numero par – O voto negativo

- Pessoa é tida como aquela cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias que como representando palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas [...]. (p. 123).
- Sendo as palavras a ela atribuída, então, ela se chama uma pessoa natural. Quando estão representando palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictícia ou artificial. (p. 123).
- A palavra “pessoa” é de origem latina. Para lhe dar significado os gregos tinham prósopon, que significa “rosto”, tal como em latim persona significa o disfarce ou a aparência exterior de um homem imitado no palco. Por vezes, mais particularmente aquela parte dela que disfarça o roso, como mascara ou viseira. Do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais como nos teatros. (p. 123).
- Personificar é representar, seja a si mesmo ou a outro. Dizem daquele que representa que ele é portador do personagem ou que age em seu nome [...]. (p. 123).
- As pessoas artificiais emitem palavras e ações que pertencem àqueles a quem representam. Nesses casos a pessoa é o ator e aquele a quem pertencem suas palavras e ações é autor. (p. 123).
- Aquele a quem pertencem bens e posses é chamado proprietário, em latim Dominus, e em grego Kyrios. (p. 123).
- O direito de posse se chama domínio e o direito de fazer qualquer ação se chama autoridade. Por autoridade se entende sempre o direito de praticar qualquer ação. (p. 123).
- [...] quando o ator faz um pacto por autoridade, obriga através disso o autor, como se este mesmo ali estivesse [...]. (p. 123).
- Ninguém é obrigado por pacto do qual não é autor [...]. (p. 124).
- Quando o ator faz qualquer coisa contra a lei natural por ordem do autor, se pelo pacto anterior for obrigado a obedecer-lhe, não é ele e sim o autor que viola a lei natural. (p. 124).
- Uma multidão é transformada em uma pessoa quando representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. (p. 125).
- É a unidade do representante e não a unidade do representado que faz com que a pessoa seja uma. O representante é o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única forma como é possível entender a unidade de uma multidão. (p. 125).
- A cada um pertencem todas as ações praticadas pelo representante, caso lhe aja atribuído autoridade sem limites. De outra forma, quando o limitam quanto à representação [...] a nenhum deles pertence mais do que aquilo em que deu comissão para agir. (p. 125).
- Caso o representante seja constituído por muitos homens, a voz do maior número deverá ser considerada como a voz de todos eles. (p. 125).







[1] Graduando em filosofia pela Universidade Federal do Maranhão

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