domingo, 30 de dezembro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O FILME PLATOON


Para quem ainda não assistiu a um bom filme sobre a guerra do Vietnã , vai uma dica: há um filme muito bom chamado PLATTON. O filme é bem contextualizado porque ilustra exatamente os horrores daquela guerra. O que é uma guerra? O que ela é capaz de fazer com os homens? Quem é o inimigo a ser combatido na guerra, o outro ou eu mesmo? Com quem lutamos? Lutamos por quem? Essas questões são elementos do filme que conduzem a uma reflexão ético-moral. É claro que o filme mostra muito mais que isso, mas devemos extrair das entrelinhas dos detalhes elementos que de alguma forma dê sentido ao “mundo da vida”.
“Não lutamos contra o inimigo, lutamos contra nós mesmos; o inimigo éramos nós”
“Aqueles que sobreviveram tem a obrigação de reconstruir para ensinar aos outros o que sabemos e tentar, com o que restou de nossas vidas, encontrar a bondade e um sentido para esta vida”.
A propósito das guerras em geral, é como dizia o velho ROUSSEAU: “Os homens só fazem a guerra porque são ignorantes de suas causas”. 











domingo, 9 de dezembro de 2012

REVOLUÇÃO INDUSTRIAL VERSUS TRADIÇÕES CULTURAIS: A CRISE DA MEMÓRIA COMO CRISE DA CULTURA NA ORIGEM DA MODERNIDADE



Este trabalho foi apresentado em forma de mesa redonda na ocasião do XII Encontro Humanístico da Universidade Federal do Maranhão, em Dezembro de 2012.


Resumo
Pretendo nesta reflexão abordar a problemática referente ao enfraquecimento das tradições culturais – que aqui irei traduzir por crise da memória – a partir daquilo que a história veio a registrar sob o signo de revolução industrial. Para tanto, partirei do principio de que com o desenvolvimento e aperfeiçoamento da indústria desencadeou-se no campo um processo de devir que teve como consequência inevitável o deslocamento populacional em massa das populações dos campos para as cidades (o que deu origem à chamada sociedade de massa). Assim pretendo mostrar como, em consequência desse processo, se estruturou o embrião de um estado de coisa que levou a uma crise da cultura dada a relativização e, sobretudo, a dissolução dos valores culturais construídos historicamente e que representavam para os povos das tradições os pressupostos fundamentais de sua existência. No decorrer da pesquisa vou levantar a hipótese de que na modernidade a memória atravessa uma crise que é fruto de um processo de luta entre o novo, que tenta se impor, e o velho, que tenta resistir.  Ao final vou propor – como resultado da pesquisa – que esse enfraquecimento da memória é nada mais nada menos que uma resultante direta do desdobramento de um processo de vida tecida no contexto de uma época científico-tecnológica onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

Estrutura da pesquisa

Em se tratando da estrutura, esta pesquisa se constituirá de três partes: na primeira discorrerei brevemente sobre a revolução industrial do século XVIII; na segunda, mostro como o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da industrial altera o modo vida e o trabalho tradicional e como, em consequência disso, se instala uma crise na cultura e; por fim, no terceiro momento, mostrarei como essa crise da cultura se converte em uma crise da memória num cenário onde tudo se dilui.

1 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL DO SÉCULO XVIII

Ora, seria ingenuidade pretender negar que o progresso e o aperfeiçoamento técnico não contribuíram para a construção de cidades que se tornaram encantadoras e atrativas, em virtude de sua exuberante beleza, tal como, por exemplo, Paris conforme a ela se refere Charles Baudelaire. Por outro lado, também seria ingênuo não reconhecer as contribuições que a mesma técnica e progresso deram para o assolapamento da miséria humana. Para entendermos isso, precisamos reportar-nos previamente ao século XVIII a fim de compreender aquele que foi, talvez, o seu principal acontecimento, leia-se: a revolução industrial.
Aqui peço desculpas ao publico por uma citação demasiado longa que farei do livro O que é sociologia, de Carlos Benedito Martins. Pois, em razão da modernidade que nos obriga a agir às pressas – e dado que me pareceu oportuno – não vi e, portanto, não encontrei outra maneira mais simples, sucinta e clara de apresentar aqui o conceito de revolução industrial a não ser recorrendo à autoridade deste autor.
Fruto desse século, ou ainda, das mudanças que vinham ocorrendo desde a decadência da idade media,
A revolução industrial significou algo mais do que a introdução da maquina a vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos métodos produtivos. Ela representou o triunfo da indústria capitalista capitaneada pelo empresário que foi pouco a pouco concentrando as maquinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle, convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores despossuídos. Cada avanço com relação à consolidação da sociedade capitalista representava a desintegração, o assolapamento de costumes e instituições até então existentes e a introdução de novas formas de organizar a vida social.  A utilização da maquina na produção alem de destruir o artesão independente que possuía um pequeno pedaço de terra, submeteu-o também à novas formas de conduta e de relações de trabalho completamente diferente das vividas por ele anteriormente. Num período de 80 anos, ou seja, entre 1780 e 1860,a Inglaterra havia mudado de forma marcante sua fisionomia. Pais com pequenas cidades, com uma população rural dispersa passou a comportar enormes cidades. A formação de uma sociedade que se industrializava e urbanizava em ritmo crescente implicava a reordenação da sociedade rural e, sobretudo, o desmantelamento da família patriarcal. A transformação da atividade artesanal em manufatureira e em atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração do campo para a cidade, assim como engajou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos doze horas sem férias e feriado, ganhando um salário de subsistência. Em alguns setores da industria inglesa, mas da metade dos trabalhadores era constituída por mulheres e crianças, que ganhavam salários inferiores aos dos homens.
A desaparição dos pequenos proprietários rurais, dos artesãos independentes, a imposição de prolongadas horas de trabalho etc, tiveram um efeito traumático sobre milhões de seres humanos ao modificar radicalmente suas formas de vida. Essas transformações faziam-se mais visíveis nas cidades industriais. Estas cidades passavam por um vertiginoso crescimento demográfico, sem possuir, no entanto, uma estrutura de moradias, de serviços sanitários, de saúde capaz de acolher a população que se deslocava do campo.
COSEQUANCIAS: aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia e de cólera que dizimaram parte da população europeia. (O que é sociologia)

 2 CRISE DA CULTURA

Esse processo destruidor/construtor provocou mudanças estruturais tanto nas cidades quanto no campo. As mudanças ocorridas no campo foram determinantes para a crise da cultura, que aqui identifico por crise da memória. Antes cumpre precisar que a crise da cultura é a crise dos valores na medida em que a cultura pode ser entendida (e tal é meu porto seguro) como um processo de criação de valores a partir da criação de costumes que surge das mais diversificadas praxes humanas, dentro daquilo que Habermas chamara de “mundo da vida”. Como diria Habermas, “os valores culturais transcendem o desenrolar factual das ações”. “Para Habermas, o mundo da vida é um saber de fundo transmitido culturalmente”.
Não quero, por que não me interessa aqui, precisar categoricamente a gênese da crise da cultura, mas considerando a conjuntura histórica parcial dos acontecimentos que antecederam e pós-cederam à revolução industrial não exito em sustentar que o embrião da crise da cultura se inicial com o processo de deslocamento populacional maciço do homem para a cidade. Com o deslocamento do homem do campo para a cidade, o processo de manutenção dos costumes e cultivação dos valores fica comprometido. Isso porque esse processo também operou um corte, ou uma alteração, na dinâmica de tralho do camponês. Para entendermos isso, consideremos o que diz Berman nas linhas abaixo conforme se lê: “a modernidade implicou a emergência de um mercado mundial que à medida que se expandiu absorveu todos os mercados locais e regionais; camponeses e artesão independentes não podem competir com a produção em massa capitalista e são forçados a abandonar suas terras e a fechar seus estabelecimentos”. Assim, diz ele: “um vasto numero de migrantes pobres são despejados nas cidades, que crescem como um passe de mágica”.
Do ponto de vista da constituição do mundo moderno, se o que caracteriza o progresso e os acontecimentos da modernidade, onde tudo o que é feito, é feito para ser deixado de lado e esquecido no momento seguinte em razão de novos feitos que vão sendo realizados, um problema vem alume: como narrar na modernidade e para quem narrar nessa sociedade onde a transformação rápida das coisas é a sua característica primordial e a memória já não comporta tanta importância considerando que o seu papel fundamental é o de gravar, ou registrar, os acontecimentos culturais de uma geração de uma dada época histórica para – num momento posterior – serem transmitidas às outras gerações que naturalmente vão aparecendo?
Partindo do principio de que a narrativa pressupõe uma forma de ligação com a memória, de modo que só se pode narrar àquilo que previamente fora armazenado na mesma, logo, deve se considerar a relevância que essa (memória) possui para o narrador. Ela é como que o depósito das coisas vividas e que agora passam a ser guardadas quando já não mais é possível viver na prática, mas somente através da imaginação por meio de um retorno que se dá pela arte de contar. Em outros termos, pode-se dizer que a memória é como que a caixa preta do sujeito, ou de uma determinada cultura, onde são arquivados as experiências e acontecimentos em geral.
Benjamin: “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores[1]. É por meio deste processo de transmissão que se dá a continuidade de idéias, costumes, gestos, atos etc.

2.1. A degradação da memória[2]

Marcada pela inconstância e pela interrupção constante dos acontecimentos, pode-se dizer que na modernidade reina um princípio de incerteza de tal modo que já não se pode prever nem mesmo o que está para acontecer. Nesse sentido, Singer enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fazes anteriores da cultura humana”. [3] O sujeito moderno, portanto, é aquele vive de lembranças em razão da descontinuidade – característica principal da modernidade – que obstaculiza a arte de memorizar. Com toda essa estrutura complexa da modernidade, o homem moderno não poderia ser outro senão o homem do alerta, orientado pelo alarme, o homem mecânico. Como diz Berman: “há medida que se expande, o publico moderno se multiplica em uma multidão de fragmentos”. Mesmo sendo a lembrança aquela coisa pela qual a modernidade vai se interessar, mesmo assim, é a narrativa que, em meio a tanta pressão, ainda desfruta do privilégio de conter, ou conduzir em seu núcleo a moral da história.
A relação entre a memória é a lembrança, evidentemente é uma relação horizontal de pertença, no sentido de que uma se apresenta como fundamento para a outra. Se por um lado a lembrança é aquilo que faz com que a memória não seja esquecida e se mantenha, portanto, ao longo das gerações, por outro, a memória é ela mesma a possibilidade e o fundamento dessas próprias lembranças. Entretanto, não se pode optar por privilegiar somente as lembranças como se as gerações do presente fossem as ultimas a existir. Assumindo ou não, essas gerações darão origem a outras. O problema que decorre disso consiste em saber como se comportarão essas futuras gerações uma vez que na memória dos seus indivíduos um vazio profundo e constante far-se-á presente. Aqui, poder-se-ia supor, essas gerações como uma espécie de gerações superficiais na medida em que não comportam uma raiz, um fundo cultural. E é superficial porque não há uma base solida sob a qual possa se firmar. Na modernidade, como diz Berman, “as coisa se desintegram, o centro nada retém”. Assim, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Desta feita, problematiza Berman: “se tudo o que é solido desmancha no ar como é possível passar os valores às outras gerações?”. Assim, “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição”. Como diz Berman, “ao mesmo tempo em que humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens, e até a luz da ciência se mostra incapaz de brilhar a não ser no escuro pano de fundo da ignorância”.
“Os homens estão todos juntos num processo diluidor que desmancha no ar tudo que sólido”.



REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992.

_________. Obras escolhidas II. Ed. 5. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1995.

BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das letras, 1982.

KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin: Sociologia. Ed. 2. São Paulo: Ática, 1991.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004.


[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 198.
[2] De acordo com Gagnebin (refletindo sobre a narrativa em Benjamin), O artesanato permite, devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho se inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar.
[3] SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004. p. 96.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

DIREITO E LEI NA FILOSOFIA CIVIL DE HOBBES



Na filosofia de Hobbes, entender com evidência a sua teoria do contrato requer, sobretudo, um prévio esclarecimento de alguns conceitos tais como direito, lei e liberdade. 
         
Por liberdade entende-se [...] a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer. [...] o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas.[1]

Não tendo impedimentos externos, no primeiro estágio os homens viviam com liberdade e direitos ilimitados. Como a condição de guerra ai se fazia presente, logo a expectativa de vida se mostrava abaixo da linha daquela que era autorizada pela natureza.
Já que sob tais condições não se podia viver por muito tempo, o surgimento daquela que Hobbes identificou como “primeira lei de natureza”, alicerçada na paz, se tornou crucial para o prolongamento da vida. Êi-la, portanto: “que todo homem deve esforçar-se pela paz na medida na medida em que tenha a esperança de encontrá-la” [2]. Essa, que foi a primeira lei de natureza, resume-se com mais precisão na seguinte formula: “procurar a paz e segui-la” [3].
A paz seria, portanto, o elemento que tornaria o contrato possível na medida em que, gradativamente, fosse sendo suprimido o estado de guerra. No entanto, em tal estado, isso se apresenta apenas como uma possibilidade e não como algo já dado e acabado. É, pois, preciso concretizá-la passo a passo na medida em que as circunstâncias vão concorrendo para esse fim. O que vai, de fato, determinar o reino da paz e a sua continuidade é justamente o esforço de cada um na busca por esse objetivo. Caso esse empreendimento (que visa o alcance de um bem comum a que se pode chamar de harmonia) falhe, então, “procurar-se-á e usar-se-á, por via disso, todas as ajudas e vantagens da guerra.” [4]

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros permite em relação a si mesmo. [5]

Essa segunda lei, por sua vez, sob a ótica daquilo que se nos aparece ser, vem a tona como mais complexa, haja vista, introduz a noção de renuncia da liberdade. Nesse contexto o assunto configura uma nova dimensão sem escapar do seu foco.
Para uma visão concisa do que se segue, faz-se necessário uma distinção pormenorizada de dois termos, a saber: renuncia e transferência, no entanto, em matéria de direito e liberdade.
Por renuncia, no pensamento de Hobbes, deve-se entender aquele ato pelo qual um indivíduo se desfaz, ou ainda, abre mão de um referido direito sem, no entanto, ter ciência do destinatário final do beneficio a que isso irá gerar. Já a transferência consiste naquele ato pelo qual se busca beneficiar diretamente uma pessoa. Tanto a renúncia, quanto a transferência são, de certa razão, uma maneira de se despojar de algo, por parte daquele que recorre a tais atitudes.  A grande diferença parece residir, portanto, no fim que se atribui a isso.
Em se tratando do direito, que aqui se traduz em liberdade, é preciso destacar que no estado de natureza não há uma coisa sequer a que o homem, por natureza, não tenha direito. É, destarte, por essa ilimitação de direito que se inicia a condição de guerra (dado que o desejo de um indivíduo de possuir uma determinada coisa pode coincidir com a de outrem ao uso dessa mesma coisa e ao mesmo tempo). Logo, para que um conflito não se inicie torna-se necessário que ambos cheguem a um acordo. É por meio desse acordo, dada a sua legitimidade, que um princípio de paz se torna possível.
Para fins de esclarecimento do que acima fora referido, considera-se o seguinte: se um indivíduo faz uso primeiro daquilo a que o direito do outro também abrange, deve reconhecer que esse outro também tem o direito de usar essa mesma coisa dada a sua máxima necessidade. Ou seja, se dois indivíduos tem o direito ao uso de um determinado bem e dele necessitam de forma incondicional sem, no entanto, podê-lo usar simultaneamente torna-se necessário que haja uma alternância quanto ao uso dessa coisa. Assim: o primeiro que usa não se esquecendo do direito do outro de usufrui também, por algum momento cessa seu usufruto e transfere esse direito de uso ao outro para que igualmente usufrua. Esse, o mesmo que aquele, vice-versa e continuamente. É a essa transferência mútua de direito que na filosofia de Hobbes se entende por contrato.
O contrato é, portanto, aquele ato instituído a partir da liberdade de cada indivíduo objetivando, sobretudo, a formação de um poder comum que preze tanto pela permanência do respeito entre todos como também pela continuidade e segurança da própria vida.
Em suma, o contrato é geral e o seu objeto é a transferência de direito. Dependendo de como essa transferência se processa, o contrato – em Hobbes – pode assumir formas diversificadas de ser. Essas são como que características particulares e assumem nomes tais como pacto, observância da promessa, dádiva dentre outros.
O contrato se chama pacto quando um dos contratantes toma a iniciativa de entregar a coisa contratada detendo apenas a confiança de que na posterioridade o outro também faça o mesmo pelo cumprimento da sua parte. Já a observância consiste no ato de se contratar no presente para se cumprir no futuro, isto por parte de ambos os lados. O contrato se chama dádiva, portanto, quando “a transferência não é mútua e uma das partes transfere na esperança de assim conquistar a amizade ou o serviço de um outro.” [6]
Em tese, o que vai garantir o procedimento do pacto é a presença de um poder comum que se origina a partir do contrato. Esse poder tem como elemento primordial a coação que, embora imponha o medo, tem como função primeira garantir o cumprimento do contrato que foi criado entre dois seres distintos. Isso se da, sobretudo em razão da fragilidade da força da palavra em cuja originalidade não há elementos suficientes para frear a ambição que perpassa a responsabilidade e o respeito.
Nessa perspectiva, a grandeza do poder erigido mediante o contrato residiria, portanto, no fato dele obstar a ruptura do pacto garantindo assim o seu cumprimento e a sua linearidade.


REFERÊNCIA
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nilza da Silva. Ed. 3ª. São Paulo: Abril Cultura, 1983. (coleção Os pensadores)



[1] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nilza da Silva. Ed. 3ª. São Paulo: Abril Cultura, 1983. p. 78.
[2] Idem, p. 78
[3] Idem, p. 78.
[4] Idem, p. 78.
[5] Idem, p. 79.
[6] Idem, p. 80

ECONOMIA RACIONAL EM PAUL RICOEUR



Atrelada ao estado aparece a reflexão ricoeuriana com ênfase na economia, também em âmbito racional universal. Um aspecto importante de ser notado no que tange ao assunto diz respeito ao fato de que no meio econômico também há toda uma preocupação por buscar instrumentos que de algum modo contribuam para a sua universalização. Com exemplo pode-se citar as técnicas de manutenção e regularização dos mercados. Nesse sentido, Ricoeur refere que

Pode-se falar de uma única ciência e de uma técnica econômica de caráter internacional integrada em finalidades econômicas diferentes e que, ao mesmo passo, criam de bom ou malgrado fenômenos de convergência, cujos efeitos parecem, de fato, inelutáveis. [1]

 Assim como os instrumentos, que são redimensionados pela técnica, a economia também não possui uma pátria definida. Isso decorre justamente do fato dela ser parte da atividade humana em caráter mundial. Um exemplo disso pode ser observado sempre que uma bolsa de valor tende a cair bruscamente. Os efeitos logo são sentidos no mundo todo. Para constatar isso, basta lembrar a quebra da bolsa de nova Iorque em 1929 que pôs o mundo em crise. De todos os fenômenos da globalização, talvez esse (econômico) seja aquele que melhor se percebe e que com mais intensidade se sente os seus efeitos, dadas as suas alterações. Talvez seja também aquele que com mais eficiência interliga os habitantes de todo o mundo numa conexão indissolúvel. Diante do fenômeno da mundialização é que Ricoeur diz que “a universalidade de origem e de caráter cientifico colore finalmente de racionalidade todas as técnicas humanas” [2]. Ou seja, nada escapa a esse processo, ele abrange tudo e universaliza tudo. Impõem sobre todo o mundo as mesmas necessidades. Tudo isso só possível por causa da técnica que se deu em graus variados.

E estas não são apenas técnicas de produção, mas também de transporte, de relações, de bem-estar, de lazer, de informação; poder-se-ia falar de técnicas de cultura elementar mais precisamente de cultura de consumo de caráter mundial que elabora um gênero de vida de caráter universal. [3]  

Essa é, portanto, a civilização mundial; algumas de suas características; algumas de suas procedências e alguns de seus efeitos. Ela, na verdade, é uma imposição do sistema capitalista que age subjugando os valores humanos e culturais aos seus interesses, tornando-os vulneráveis. Foi ele (capitalismo) que provocou o processo de massificação das sociedades e a própria cultura de massa; que enriqueceu a uns poucos e empobreceu a uns muitos e extinguiu total ou parcialmente diversas culturas.
Questionando o significado dessa civilização, Ricoeur refere que, “pode-se dizer [...] que ela constituiu um progresso verdadeiro [...]. Existe progresso quando são satisfeitas duas condições seguintes: de um lado, um fenômeno de acumulação e, de outro, um fenômeno de melhoramento”.[4] Essa reflexão sobre a acumulação é uma reflexão de destaque não somente em Ricoeur, mas também em autores como, por exemplo, Marx. Comparando esses dois autores, pode-se dizer que há alguma semelhança em seus pensamentos. Um exemplo disso é quando Ricoeur diz que “a transformação dos meios em novo meios constitui o fenômeno da acumulação, o que faz, aliás, com que exista uma história uma história humana” [5]. A semelhança com Marx, neste caso, reside no fato de Marx – em a Ideologia Alemã – defender a idéia de que o homem só faz história depois que ele garante a sua subsistência. A noção de garantia da subsistência, de algum modo, já introduz a noção de acumulação.
Mesmo diante dos impactos sofridos pelas culturas em vista da civilização universal, Ricoeur não teme em dizer que elas também significaram um bem para a humanidade. Esse bem reside, sobretudo, no fato de que elas “representam o acesso das massas da humanidade aos bens elementares”.[6] É a partir daí que Ricoeur chega à conclusão de que “nenhuma espécie de crítica da técnica poderá contrabalançar o benefício absolutamente positivo da libertação da inércia e do acesso em massa ao bem-estar”. [7] Ricoeur, portanto, não é um crítico ferrenho da técnica e do progresso. Todavia, se, por um lado, ele reconhece a importância que ambas tiveram, ou representaram, para a humanidade no decorrer da sua história, por outro, ele igualmente reconhece seu lado negativo.

É, entretanto, de outra parte necessário admitir que tal desenvolvimento apresenta um caráter contrario. Ao mesmo tempo que uma promoção da humanidade constituiu o fenômeno da universalização uma espécie de sutil destruição, não somente das culturas tradicionais, o que talvez não fosse um mal irreparável, mas aquilo que eu chamaria provisoriamente [...] o núcleo criador das grandes civilização, das grandes culturas, esse núcleo a partir do qual interpretamos a vida e que denomino por antecipação,  o núcleo ético e mítico da humanidade.[8]

Ricoeur toma ciência do perigo que a técnica representa no que diz respeito à extinção total ou parcial das culturas, dada a intervenção no núcleo ético e mítico. Essa ameaça decorre, sobretudo, da universalização em face da qual tudo tende a mudar. Desse modo, Ricoeur parece chegar ao cerne do problema. Eis, ai seu questionamento: “Para entrar na via da modernização, será preciso lançar fora o velho passado cultural que tem sido a razão de ser de um povo?”. [9] Essa é, portanto, a grande pergunta e, por conseguinte, o mistério ao qual ele procura desvendar.
Ricoeur parte do princípio de que as culturas podem ser definidas como um conjunto de valores ou valorações, embora seja difícil de entender o significado disso. “Esses valores próprios de um povo, que o constituem como povo, devem ser buscado muito abaixo”. [10] Esse último termo aqui significa as raízes ou origens aonde os valores foram produzidos, ou iniciados. Nesse sentido, ele afirma que “se se quer atingir o núcleo cultural, é preciso escavar até aquelas camadas de imagens e símbolos que constituem as representações básicas de um povo”. [11] Imagens e símbolos, nesse contexto, não dizem respeito somente a utensílios reais, ou materiais que as culturas ou os povos usam para expressar seus costumes e suas práticas, mas também “constituem aquilo que se poderia chamar o sonho em estado de vigília de um grupo histórico”.[12] Ou seja, os anseios, desejos e aspirações, enfim, a utopia de um povo, enquanto marco norteador das suas práticas e de seus valores culturais. Daí, conclui Ricoeur, “é nesse sentido que falo do núcleo ético-mítico que constitui o fundo cultural de um povo”.[13]
No escrito sobre o qual este artigo discorre, Ricoeur faz ainda inúmeras considerações sobre as culturas. Entretanto, não serão enfatizadas neta investigação. Para isso, seria necessário outro trabalho mais amplo, pois, a continuidade aqui extrapolaria os limites deste.   

REFERÊNCIA 
RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968.



[1] RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968. p. 280.
[2] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[3] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[4] Cf. Id. Ibidem, p. 281
[5] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[6] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[7] Cf. Id. Ibidem, p. 282.
[8] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[9] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[10] Cf. Id. Ibidem, p. 285.
[11] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[12] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[13] Cf. Id. Ibidem, p. 287.

POLÍTICA RACIONAL EM PAUL RICOEUR



Um ponto relevante quanto a isso, são as reflexões de Ricoeur sobre a política em seu aspecto racional, onde ele centra seu raciocínio no Estado moderno tomando como base o filósofo alemão Hegel, especificamente a obra intitulada “Princípio da filosofia do direito”. Nesse sentido, sua preocupação gira em da torno da  racionalidade e da universalidade do Estado. Desse modo, ele refere que

O primeiro filósofo a haver refletido sobre essa forma de universalidade foi Hegel nos Princípios da filosofia do direito. Foi Hegel o primeiro a mostrar que um dos aspectos da racionalidade do homem e ao mesmo tempo um dos aspectos de sua universalidade, e o desenvolvimento de um estado que põe um jogo um direito e desenvolve meios de execução sob a forma de uma administração. [1]

Na visão de Hegel, o estado aparece também como um fator de racionalização e universalização do sujeito humano. E isso se dá, sobretudo, pelo fato dos estados possuírem algo, ou pontos em comum.

Nós os vemos todos evoluírem inelutavelmente desde que se atinjam certas etapas de bem- estar, instrução e cultura [...]; vemo-los todos à procura de um equilíbrio entre as necessidades de concentrar, e mesmo de personalizar o poder, a fim de tornar possível a decisão, e por outro lado a necessidade de organizar a discussão a fim de fazer com o que o maior número de cidadão participe dessa decisão. [2]

Essas características comuns dos estados são como que uma rede de integração dos indivíduos a um sistema que se torna mundial na medida em que eles (os estados) apresentam preocupações e passam a buscar objetivos semelhantes. Para mostrar outros traços característicos desse fenômeno, Ricoeur refere que

[...] nos achamos em face de um estado puro e simples, de um estado moderno, quando vemos o poder capaz de estabelecer uma função pública, um corpo de funcionários que preparam as decisões e que as executam sem ser pessoalmente responsáveis pela decisão política. Eis ai um aspecto racional da política concernente agora absolutamente a todos os povos do mundo, a ponto de constituir um dos critérios mais decisivos da ascensão de um estado à cena mundial. [3]

Com a mundialização há, portanto, um compartilhamento das atividades, que antes estava a cargo de uma só pessoa ou de um pequeno grupo.
Um aspecto importante da política moderna, que cabe destacar, diz respeito à questão referente ao poder e a força. A força é justamente aquilo que leva os indivíduos ao cumprimento do dever quando eles se recusam a cumpri-los. Nessa perspectiva, o estado é, então, esse ser que coage a liberdade do sujeito. Desse modo, promove certo ajustamento dos indivíduos à ordem social estabelecida, em se tratando do cumprimento, ou das responsabilidades para com as obrigações.

REFERÊNCIA


[1] RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968. p. 279.
[2] Cf. Id. Ibidem, P. 279.
[3] Cf. Id. Ibidem, P. 280.

HERMENÊUTICA: DA GÊNESE À REFORMA PROTESTANTE



RESUMO

O intuito deste artigo é fazer uma abordagem histórica da Hermenêutica estendendo-se dos gregos com sua maneira própria de interpretação, até o período no qual veio a lume a reforma protestante. Nesta pesquisa ilustraremos como se deu o processo evolutivo da Hermenêutica dentro daquilo que constitui a proposta do tema. Para isso, partir-se-á do princípio de que a Hermenêutica realmente diz respeito à arte de interpretar. Como objetivo geral, tem-se, portanto, a busca pela compreensão da Hermenêutica fazendo uma viagem histórica mergulhando no seu passado para insurgir-se no seu presente. Como objetivo específico tem-se a proposta de analisá-la a partir de diversos ângulos e pontos de vista diferente que, simultaneamente se interpenetram formando um todo que visualiza o mesmo alvo.

Palavras-chaves: Hermenêutica – Linguagem – pensamento – Renascimento

  1. INTRODUÇÃO                                                              
O trabalho a ser desenvolvido aborda como tema: Hermenêutica: da gênese à reforma protestante. Este artigo tem como proposta, a partir de uma reflexão histórica, demonstrar como se deu o processo de evolução da hermenêutica num recinto de mutação constante passando por tumultuosas situações até ascender a um nível de aperfeiçoamento tal como se observa hoje. Como formas de enriquecimento desta pesquisa serão analisadas sucintamente obras e autores diversos, de relevância fundamental para o progresso desta investigação. Um desses autores, excelentemente renomado, é o alemão Schileiermarcher.
Este trabalho não tem como escopo exaurir todos os conhecimentos concernentes à hermenêutica em sua totalidade, haja vista a extensão e complexidade do assunto, mas quer sim dar um passo fundamental rumo a essa direção.

2. HERMENÊUTICA: INTERPRETAÇÃO DO SENTIDO DAS PALAVRAS E LINGUAGEM

Tradicionalmente, a hermenêutica foi pensada e definida como a arte da interpretação, o que não estava longe de ser uma verdade. Entretanto, para fins de esclarecimento se tornam importantes, aqui, alguns questionamentos que – como convites à reflexão – ganham pertinência à evolução da pesquisa à medida que contribuem para a cogitação a cerca da temática proposta. Sendo assim, poder-se-á levantar as seguintes indagações: o que de fato vem a ser a Hermenêutica? Como se faz uma interpretação? O que se deve levar em conta no ato de interpretar? O que define a Hermenêutica de hoje em relação a do passado?

Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significa de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contem. Pode-se procurar e definir a significação de conceitos e intenções, fatos e indícios; porque tudo se interpreta; inclusive o silencio. [1]

O intérprete é, portanto, aquele que deve ter total afinidade com a coisa interpretada; que detém sólidos conhecimentos da língua a que interpreta, bem como intimidade com as pessoas de cujos gestos e ações, por ele, são esclarecidos. Outra exigência do intérprete (em se tratando de Hermenêutica) é a de que ele saiba reproduzir aquilo que passou do interior para o exterior; o que isso significa; que valor comporta etc. Tudo isso já é suficiente para mostrar que a função de intérprete não é tão simples, como de repente se possa imaginar. Nesse sentido a Hermenêutica se torna complexa, e a aplicação de regras para determinar o sentido correto das coisas interpretadas, faz-se necessário para que haja harmonia e logicidade. Caso contrário, a diversidade de interpretação sem um segmento lógico poderá facilmente conduzir ao caos, o que conseqüentemente, levará a um distanciamento do verdadeiro sentido e originalidade do objeto interpretado. “O interprete é o renovador inteligente e cauto e o seu trabalho rejuvenesce e fecunda a formula prematuramente decrépita.”[2]
Não se pode concluir como errônea a opinião daqueles que professam que a hermenêutica é, de fato, a arte da interpretação, e, sobretudo, da interpretação do sentido das palavras. Em geral, a razão pela entende-se a hermenêutica como arte de interpretar é histórica, tendo o seu início com os gregos, especialmente a partir da mitologia.

O termo Hermenêutica provem do grego Hemeneuein, que significa declarar, anunciar, interpretar ou traduzir [...] não é improvável que a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, o que daria ao termo uma dimensão sagrada na medida em que o relacionava com a compreensão da palavra divina.[3]

Observa-se, portanto, que na raiz da Hermenêutica já está implicada a concepção do divino e, desse modo, sua ligação com os textos sagrados. O mensageiro, como é sabido, é aquele que traz ou leva uma mensagem de um ser para outro. Assim Hermes só poderia transmitir a mensagem dos deuses por meio do dizer. Daí se concebe que o mensageiro, além de condutor da mensagem, é também aquele que faz uso da fala a fim de transmitir aquilo que ouviu. O problema que aqui vem à tona consiste em saber se, de fato, há entendimento ou não por parte daqueles que são o destinatário da mensagem. Considerando que nem sempre se entende ao que se houve falar, surge então a necessidade da explicação daquilo que é dito para que todos tomem conhecimento claro do que ouvem.  Levando em conta a diversidade lingüista, bem como a própria distinção dos homens entre si no que diz respeito ao conhecimento e, por conseguinte, à cultura intelectual, de modo que enquanto alguns gozam de muito entendimento, outros gozam de pouco, a grande questão que se coloca é a necessidade da tradução da mensagem do original para as particularidades a fim de favorecer a assimilação e o entendimento. Nesse sentido, o mensageiro é, portanto, aquele encarregado de uma tripla função: anunciar, explicar e traduzir.

Hermes seria então aquele que trazia uma <<mensagem>> o que nos remete para três usos possíveis da noção de Hermenêutica: o dizer, o explicar e o traduzir [...] Nos três casos há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é, de certo modo, tornado compreensível, interpretado.[4]

Desse modo, percebe-se que a função anunciadora de Hermes é uma função dotada de carências e necessidades, cuja supressão se torna condição necessária indispensável para o surgimento da hermenêutica. A primeira dessas necessidades cabe ressaltar, é a da linguagem oral, passível de percepção, sobretudo, nas sagradas escrituras onde a voz alta se tona fundamental para o ouvinte.
Que, em princípio, a Hermenêutica estava voltada à compreensão e interpretação das sagras escrituras, ninguém disso pode duvidar. Pode se pensar até mesmo que ela nasce justamente com essa proposta na medida em que a mensagem dos desuses precisava de um interprete. Não obstante, a evolução dos acontecimentos no decorrer da história foi aos poucos impondo algumas mudanças necessárias. Desse modo, a Hermenêutica, comungando dessas mudanças, vai gradativamente se transformando na medida em que essa transformação se fazia necessária. Sendo assim, uma das primeiras mutações ocorridas na Hermenêutica foi sofrida no que diz respeito à semântica.

O termo compreensão começou ele mesmo a ser encarado como um problema que interessava resolve, a ponto da questão não se colocar apenas em relação à das escrituras, ou de outros textos, mas havendo antes a necessidade de elucidar o que era compreender na sua essência, isto é, as condições e os limites em que este se exercia.[5] 


Ou seja, diante dos problemas ou dificuldades que surgiram, parecia haver certa mudança no sentido do caráter inicial. Aqui parece desencadear-se, portanto, um processo de orientação filológica, onde a preocupação se volta para um estudo semântico e lingüístico. Ora se essa orientação da Hermenêutica para a filologia se deu, especialmente, a partir da necessidade de uma compreensão semântica dos termos ou das palavras no contexto de sua determinada origem, ou língua, “vai ser, então, a partir da evolução e disseminação do cristianismo que essas transformações vão se desenvolver e se alterar levando em conta, sobretudo, a necessidade de conciliação do antigo com o novo testamento. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que entre o antigo e o novo testamento há um abismo muito grande no que diz respeito à linguagem. Enquanto a linguagem do novo testamento, por si mesma, está mais próxima da compreensão por ser uma linguagem, diga-se de passagem, menos enigmática, a do antigo testamento na medida em que consta de metáforas em demasia dificulta a compreensão, sobretudo quando não se tem nenhuma certeza de muitos acontecimentos que metaforicamente estão relatados. No período patrístico, com Santo Agostinho, doutor da igreja, surge a hermenêutica cristã, que se tornou fundamental em toda a idade media.[6] Com a restrição da Hermenêutica no campo da teologia, a grande questão que daí deriva consiste essencialmente em saber como se devem compreender corretamente as sagradas escrituras[7]
Diante dessa realidade, no que diz respeito à hermenêutica, entendida enquanto arte de interpretar, a evolução natural dos acontecimentos, da sociedade e da humanidade como no todo, acompanhada pelo progresso das ciências que gradativamente vão ganhando espaço, foi aos poucos fazendo com que aquelas antigas e medievais formas de explicação e interpretação fossem passo a passo enfraquecendo. A continuidade, portanto, desses moldes arcaicos de interpretação já não tinham mais força. Já não se podia mais insistir no pensamento e na continuidade da hermenêutica a partir dos protótipos da antiguidade e, sobretudo, da idade media, pois,

As interpretações durante este período da humanidade foram as mais diversas e absurdas. Tanto judeus quanto cristãos estavam inteiramente envolvidos, cada qual no seu ponto central, logicamente. Após esse período de negro, em que a humanidade permeou a ignorância, onde tudo, ou quase tudo se vinculava ao pensamento divino, surgiram os renascentistas, enfatizando a razão humana em detrimento aos princípios religiosos. [8]

Dada a superação desse momento “turbulento” da antiguidade, surge então o renascimento. Com este, a Hermenêutica é repensada e ganha, portanto, uma nova configuração.
O surgimento da Hermenêutica moderna coincide especialmente com aquele momento da humanidade que teve como pretensão primordial a construção da autonomia do sujeito a partir da elevação da razão (que passa a ser o distintivo fundamental do renascimento) em detrimento da fé (caractere principal do período anterior, ou seja, medieval). Com o renascimento, buscou-se construir um homem mais racional e independente da religião. Cumpre ressaltar que no processo de aquisição da autonomia é necessário que o sujeito enquanto criação se afaste do seu criador, afim de que (enquanto sujeito) tome ciência daquilo que ele, de fato, é. Foi justamente o que aconteceu no renascimento. Esse período marca, destarte, o advento da cultura antropocêntrica.
Nesse momento de desconstrução e reconstrução, de ruptura e linearidade, de descontinuidade e continuidade, o renascimento vai significar o abandono do antigo e a busca pelo novo.[9]    

Sem a velha e conhecida segurança dada pela igreja, e por seus ‘homens’ de Deus, a humanidade procura unicamente a si mesmo, na alto-certeza do sujeito pensante, uma base segura, e um ponto de partida para o conhecimento filosófico. A hermenêutica dessa época preocupa-se com a correta utilização da palavra e da língua.[10]

Se, por um lado, o renascimento favoreceu aos homens tornarem-se autônomos, por outro, introduziu entre eles a necessidade de relação mútua na medida em que eles passam a procurar entre si um “porto seguro” capaz de nortear sues pensamentos, seus conhecimentos e até mesmo suas ações. Isso de algum modo desembocou num problema mais amplo, a saber, o problema da linguagem, ou até mesmo a relação entre ela e o pensamento, uma vez que vai ser somente por meio dela que aquele vai se exteriorizado e, portanto, manifestado. Schileiermarcher, por exemplo, vai mostrar como essa relação se torna inextrincável. Para tanto, ele parte do princípio da relatividade do pensamento, considerando que se o pensamento é relativo, o saber também não escapa a isso. Como a interpretação gramatical “é arte de encontrar o sentido determinado pela linguagem[11]", essa, por sua vez, vai ser a válvula de escape por onde o pensamento se dá a conhecer, desse modo, ela se tornará, por excelência a fonte dessa relatividade. Opondo-se à concepção de que a explicação existe por si mesma, Schileiermarcher compreende que ela (compreensão), na verdade, resulta de uma combinação de pensamentos daqueles que falam com aqueles que escutam. Sendo assim, a compreensão se torna metódica e a aquisição do saber exige, acima de tudo, esforço, cuidado e disciplina.
O problema da linguagem na Hermenêutica tende a se intensificar de modo especial com a reforma protestante que apregoava que “todos os fiéis deveriam ter acesso ao termo escrito em linguagem comum” [12], o que fez com que a hermenêutica se voltasse à questão filológica e lingüística. O objetivo disso era fazer com que o povo pudesse lê e interpretar a sagrada escritura de modo que o sentindo literal e histórico captado pelo autor humano fosse o sentido divino.

A reforma reclama o regresso à verdade do texto, à autenticidade da mensagem divina, bem como a abolição definitiva das adulterações e obstáculos erguidos pela autoridade católico-romana para impedir a comunicação entre os fiéis e Deus.[13]

A reforma, portanto, entendeu que a tradição católica funcionava como uma espécie de bloqueio que impedia o contato entre Deus e os fiéis. Era necessário, portanto, tornar essa passagem livre para todos aqueles que a isso pretendessem. Daí, a liberdade de interpretação. O próprio regresso á verdade do texto, já introduz a noção da necessidade do uso da leitura. Desse modo, a autenticidade da significação passa a ser objeto de busca constante da hermenêutica.

3.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como pretensão primeira discorrer a cerca da trajetória histórica da hermenêutica partindo de sua origem – que se deu com os gregos, como, de fato, foi mostrado – e passando pela idade média para alcançar o renascimento.
O intuito primordial era de encerrar a discussão logo que se chegasse ao período renascentista. Entretanto, a diversificação das fontes introduziu alguns conceitos e reflexões que, com o evoluir da pesquisa, tornou-se necessário estendê-la até a reforma protestante. Cumpre ressaltar que esse pequeno prolongamento em nada enfraqueceu a pesquisa, pelo contrário, enriqueceu-a mais ainda.
Uma das reflexões cruciais desta pesquisa convém lembrar, foi aquela que disse respeito à inseparabilidade entre o pensamento e a linguagem, à luz de Schileiermarcher. Ainda em se tratando desse autor, outro ponto relevante foi a noção de que a linguagem constitui a fonte da relatividade do saber, uma vez que ela expressa o pensamento, que também, é relativo.
No que diz respeito à origem, percebeu-se que a hermenêutica nasceu atrelada ao ideal de tradução, explicação e interpretação da mensagem divina. Nesse período e em grande parte da idade media instala-se um caos na medida em que as disputas religiosas entram em cena, como por exemplo, judaísmo e o cristianismo.
Em suma, percebeu-se que com o renascimento a hermenêutica foi reconfigurada e redimensionada, ao mesmo tempo em que surgiram novas exigências, sobretudo, a partir da reforma protestante que, diga-se de passagem, foi herdeira direta do renascimento.     

REFERÊNCIAS

HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001.
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf>. Acesso em: 04 de maio de 2010.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. (Coleção Pensamento e Filosofia)
PIRES, Maria João. Teologia e o poder da palavra: o desafio renascentista.
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003.




[1] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 9.
[2] Cf. ibidem, P. 12.
[3] Cf. HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001. P. 44-45.
[4] Cf. ibidem, P. 45.
[5] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 46.
[6] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[7] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[8] Disponível em: http://www.professorallan.com.br/UserFiles/Arquivo/Artigo/artigo_prof_fabio_sombrio_hermeneutica.pdf
[9] Cf. Idem.
[10] Cf. ibidem.
[11] SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003. P. 70. Outras reflexões sobre esse autor que aqui não aparecem com referência foram extraídas de fichamento de conteúdos assimilados em sala de aula.
[12] Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf
[13] Cf. Ibidem.

quick search