segunda-feira, 17 de outubro de 2016

CRÍTICA DE BAUDELAIRE À MODERNIDADE

No contexto da modernidade são notáveis as transformações ocorridas na sociedade em razão da aceleração gradual do progresso que emerge como subproduto da revolução no conhecimento científico que possibilitou o desenvolvimento da técnica. Progresso e técnica são duas ideias que mantém entre si uma intima ligação. Pode-se dizer, a título de argumento central, que ambas constituem, como tais, os dois braços fortes da era moderna.
Ora, seria ingênuo pretender negar as contribuições do aperfeiçoamento técnico para o processo de modernização e progresso das cidades, que se tornaram atrativas no início da modernidade. Por outro lado, também seria ingênuo (e até mesmo uma espécie de cegueira do conhecimento) se recusar a reconhecer as consequências negativas advindas da mesma técnica e progresso, e que afetaram, especificamente, as camadas mais frágeis da sociedade, sobretudo, em termos econômicos. A técnica, que está na base da ideia de progresso, favoreceu o surgimento e o desenvolvimento da indústria e das fábricas. Consequentemente se desenvolveu a ideia de capitalismo moderno, onde a busca de lucro a todo custo pareceu ter sido a sua característica primeira. O homem (que no início da Era Moderna ocupou o lugar que era ocupado pela ideia de Deus, com a passagem das ideias de teocentrismo para o antropocentrismo) agora parece ficar novamente em segundo plano. A pretensão moderna de construção de um homem racional, autônomo e livre deu marcas de que falhou. De livre, em seu contexto de vida tradicional, o homem passa a ser escravizado nas fábricas. A esse propósito, Martins (1994, p. 11) faz os seguintes esclarecimentos:

A formação de uma sociedade que se industrializava e urbanizava em ritmo crescente implicava a reordenação da sociedade rural e, sobretudo, o desmantelamento da família patriarcal. A transformação da atividade artesanal em manufatureira e em atividade fabril desencadeou uma maciça emigração do campo para a cidade, assim como engajou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos doze horas sem férias e feriado, ganhando um salário de subsistência.

 Ou seja, a sociedade se modernizava na mesma proporção em que a exploração degradava o ser humano. Desumanização, progresso e desintegração são ideias que se desenvolvem paralelamente no contexto da modernidade, sobretudo, a partir da Revolução Industrial sobre a qual, Martins (1994, p. 10-11) tece os seguintes argumentos:

A revolução industrial significou algo mais do que a introdução da maquina a vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos métodos produtivos. Ela representou o triunfo da indústria capitalista capitaneada pelo empresário que foi pouco a pouco concentrando as máquinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle, convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores despossuídos. Cada avanço com relação à consolidação da sociedade capitalista representava a desintegração, o assolapamento de costumes e instituições até então existentes e a introdução de novas formas de organizar a vida social. 

Para um entendimento crítico do que foi esse acontecimento, bem como da própria ideia de progresso, remetemos, aqui, o leitor à leitura da IX tese sobre filosofia da história de Benjamin, como já exposta acima, com o objetivo de comparar a ideia de progresso apresentada enquanto tempestade com os próprios acontecimentos reais, tais como referidos por Martins (1994). Prostituição, alcoolismo, violência e criminalidade, degradação humana e miséria podem ser elencados aqui como sendo algumas consequências desse processo de desestabilização social do início da modernidade.  Todavia, ainda cabe a pergunta: O que teria acontecido com o projeto moderno de construção de um homem livre e autônomo? Onde a razão moderna teria falhado? Estas são, sem dúvida, questões de fundo sobre as quais o leitor é convidado a refletir.
Diante desses acontecimentos que marcaram, por assim dizer, a modernidade em sua fase inicial, é que se destaca o pensamento crítico de Baudelaire (escritor francês que viveu entre 1821 e 1867) relativamente à ideia de modernidade. Essa crítica vai se expressar, sobretudo, por meio de suas formulações poéticas que, à sua vez, serão marcadas pelo sentimento de tristeza, de melancolia. Nesse sentido, Benjamin refere que “o engenho de Baudelaire, nutrindo-se de melancolia, é alegórico. Pela primeira vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica”. (KOTHER [Org.], 1991, p. 38). É oportuno argumentar que ao trazer a poesia lírica para o seu contexto (já que ela não é uma invenção nova, uma vez que estava presente entre os gregos antigo), Baudelaire muda-lhe os temas, os quais passam a estar intimamente relacionados com os acontecimentos e fatos da vida moderna em sua origem. Desse modo, a poesia baudelaireana vai expressar, de forma profunda, o pensamento e as concepções relativas ao olhar do poeta sobre a cidade que se moderniza gradativamente e em ritmo acelerado. Quanto a isso, Benjamin refere:

Essa poesia não é nenhuma arte nacional e familiar; pelo contrário, o olhar alegórico a perpassar a cidade é o olhar de estranhamento. É o olhar do flâneur, cuja forma de vida envolve com um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade. (KOTHER [Org.], 1991, p. 39).

Ao contrário da massa, que vê acidade com olhar de admiração, o poeta possui posicionamento e ponto de vista diferentes. Ele observa a cidade com um olhar não só de estranhamento, mas também de desconfiança. Essa percepção é expressa de forma alegórica por meio de personagens que Baudelaire cria para externar sua crítica, como, por exemplo, o flâneur e o dândi.
Para fins pontuais, o flâneur pode ser entendido como uma tendência através da qual a arte se volta para o mercado, transformando, assim, em mercadoria a obra da criação artística, a obra de arte. “Com o flâneur, a intelectualidade parte para o mercado”. (KOTHER [Org.], 1991, p. 39). Posto esse argumento, pode-se inferir dele que o caráter diluído da modernidade atinge também, os intelectuais, num choque inevitável. Nesse sentido, Benjamin (apud OLIVEIRA, 2005, p. 42) argumenta que “Baudelaire sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira; pensa que é para olhar, mas, na verdade, já é para procurar um comprador”. Interessante é perceber aqui o comportamento e a mobilidade do flâneur. Como o mercado é movimento, o flâneur é aquele que vai transitar por todos os lugares, e nesse sentido, pode ser considerado um homem das multidões que observa os movimentos, sobretudo, os do mercado, junto com ele se movimentando. Nas palavras de Benjamin, é também um andarilho que tem a rua como sua morada: “a rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o burguês entre as suas quatro paredes”. (KOTHER [Org.], 1991, p. 66-67). Essa é uma realidade que marca a vida de muitos homens nos tempos da modernidade.
Outra personagem poética criada por Baudelaire para expressar suas ideias de modernidade e homem moderno é o dândi, cujas características ele apresenta nas linhas abaixo conforme se lê:

O homem rico, ociosos, e que, mesmo eterno entediado, não tem outra ocupação senão a de correr atrás da felicidade; o homem educado no luxo e acostumado desde a sua juventude à observância dos outros homens, aquele, enfim, que não tem outra profissão senão a da elegância sempre gozará em todos os tempos de uma fisionomia distinta, inteiramente à parte. (BAUDELAIRE, 1993, p. 239)

Ao contrário do flâneur, que se integra à multidão, o dândi apresenta uma postura bem diferente. Como um ser sempre notável por sua refinada educação e elegância, ele é ao mesmo tempo um ser misterioso. Trata-se de uma personagem que representa os indivíduos criados no luxo. A respeito de sua notoriedade, Baudelaire (1993, p. 240) argumenta:

O dândi não visa o amor como objetivo especial. [...] O dândi não aspira ao dinheiro como a uma coisa essencial; ele deixa essa grosseira paixão para os mortais vulgares. O dandismo não é sequer, como muitas pessoas de pouca reflexão parecem acreditar, um gosto imoderado pelo vestir bem e pela elegância material. Essas coisas são para o perfeito dândi apenas um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. [...]. Mas um dândi nunca pode ser um homem vulgar.

Pode-se argumentar, a título de hipótese, que o dândi é a figura do nobre que não se deixa exaltar pelo aspecto da beleza constituída a partir de elementos externos, como, por exemplo, a roupa, que pode favorecer a construção de uma boa aparência a partir do vestir-se bem.   Desse modo, sendo rico, o dândi não se preocupa com o “andar bem arrumado”, entretanto, também não é vulgar. Segundo Baudelaire (1993, p. 241), “o dandismo surge principalmente nas épocas transitória em que a Democracia ainda não era todo-poderosa, em que a Aristocracia só em parte é indolente e aviltada”. Ou seja, ele aparece num contexto de transição em que lutas são travadas mediante processos de resistências. A esse propósito, Baudelaire (1993, p. 241) esclarece:

O dandismo é o ultimo brilho de heroísmo nas decadências. E o tipo do dândi encontrado pelos viajantes da América do Norte não desmente de nenhuma maneira essa ideia: pois, nada impede de supor que as tribos que chamamos de selvagens sejam restos de grandes civilizações desaparecidas. O dandismo é um pôr-do-sol. Como o astro que desce, ele é esplêndido, sem calor e cheio de melancolia.


Como exemplo do que chama de resto de grades civilizações, Baudelaire referencia os pigmeus, povos primitivos, originários do Zaire, na África, e que resistiram ao ingresso no mundo moderno, não acontecendo o mesmo com outros povos primitivos a exemplo dos esquimós, originários da região do Ártico Canadense, que, tradicionalmente eram conhecidos como caçadores. Se estabelecêssemos aqui uma analogia entre esses dois povos primitivos e as duas personagens poéticas criadas por Baudelaire para retratar a modernidade, atrelaríamos, por um lado, os esquimós à imagem do flâneur, e, por outro, os pigmeus à figura do dândi. Exatamente pelo fato de resistir é que os dândis, como conclui Baudelaire (1993, p. 241), “são cada vez mais raros entre nós”.  É oportuno argumentar ainda que no sentido de resistência que aqui está sendo tratada é que Baudelaire fala da imagem do herói. Em A Paris do segundo império em Baudelaire, Benjamin (1992, p. 92) refere que “Baudelaire moldou a sua imagem de artista segundo a imagem do herói”, o qual pode ser entendido aqui como aquele que luta contra certas concepções vigentes de sua época. Foi isso que fez de Baudelaire – mais que um poeta – um herói, e daí a grandeza e fidelidade de seu engenho poético aos fatos e acontecimentos próprios de sua época. 

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