domingo, 15 de janeiro de 2012

DEMOCRACIA VERSUS REPÚBLICA: a questão dos desejos nas lutas sociais







Disponível em: 

Este trecho faz parte do livro Pensar a república, organizado por Newton Bignotto (UFMG, 2000).

Estamos acostumados a utilizar república e democracia como termos quase que intercambiáveis. Os dois nomes parecem expressar o arremate a que chegou o Ocidente moderno, em termos de organização política desejável. Evidentemente, sabemos que há repúblicas que não são democráticas – mas para elas não vale o nome de república! – e democracias que são monarquias constitucionais (mas, diremos, são até mais republicanas que as repúblicas). Assim, a oposição que pode haver entre os dois regimes se desfaz em nosso tempo, porque implicitamente supomos que se distingam as verdadeiras e as falsas repúblicas, as democracias genuínas e as de fancaria. Aqui, no entanto, vamos revalidar a oposição, não porém para dela fazer um absoluto, e sim para mostrar que pode ser heurística, que pode contribuir para pensar, e quem sabe melhorar, a política.
De modo geral, na tradição que se inicia na Grécia, a democracia passa por ser o regime dos polloi, dos muitos. Essa multidão de pobres se mobiliza, sobretudo, pelo desejo de ter, e o grande risco do regime em que ela prevalece é que oprima, com seu peso, os mais ricos. A tirania, por isso mesmo, não está limitada ao caso em que um domina, ou em que uma minoria toma para si o governo, mas pode caber em todas as eventualidades nas quais se deixa o plano do direito e da lei para se entrar no da ganância. Há uma tirania da massa que é tão detestável quanto a do indivíduo ou a do grupo. O governo tirânico de um só, a oligarquia e o que chamaríamos hoje de deformação da democracia (mas a que Aristóteles dá exatamente o nome de "democracia", para espanto do leitor atual e dificuldade de seus tradutores) têm em comum o primado do desejo ganancioso sobre o respeito à lei. E é esse espectro que ronda a democracia, sendo por isso que ela suscita, em toda uma vertente do pensamento grego, fortes reticências. Pouco educada – afirma-se – a massa dos polloi pode facilmente entusiasmar-se pela expropriação dos ricos, e pensar que a política não é senão o modo de confiscar o excedente que esses possuem. Vê-se que por aí segue parte essencial da política de esquerda, na medida mesma em que esta é caracterizada por conferir à discussão política uma conexão social, e que não pode pensar a questão política como referindo-se apenas aos poderes de Estado, mas sim considerando os poderes como gerados a partir da sociedade. Contudo, o que argumentarei é que essa política de esquerda se equivoca, e que ao deixar de lado a tópica republicana – até porque essa última geralmente é vista como conservadora – perde de vista a questão do poder, e se limita a um distributivismo que em derradeira análise não vai muito adiante do velho populismo latino-americano.
Antes de prosseguir, é preciso discutir melhor o desejo. Esse termo, em especial no que se refere à democracia, se reveste de sensível vagueza. Tal caráter vago, porém, não é fortuito, mas resultado necessário das questões que ora expomos. Antes de mais nada, o desejo é afirmado na terceira, e pejorativa, pessoa1: quem diz a democracia como regime do desejo, ou os polloi/pobres como essencialmente desejantes, são os meios conservadores ou dos aristoi, esses melhores ou ricos que os antagonizam. Nesse sentido, o desejo é, em primeiro lugar, ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência. Quanto mais se deseja, menos razão se tem. Desejam-se bens, e por isso quer-se roubá-los: não há diferença significativa, aos olhos de um certo conservadorismo, entre o desejo de furtar e o de expropriar, entre o crime comum e o projeto político socialista. Contudo, se formos atentos, notaremos que o primeiro ponto que apontei não implica necessariamente os seguintes. O desejo de bens não precisa ser voraz nem indecente: pode ser, simplesmente, o modo de adquirir a base material para a própria existência digna.
Mais que isso, com nossa análise propomos duas coisas. Primeira, que desde os antigos um caráter social tenha estado presente na caracterização da democracia. É corrente ouvir-se que a democracia foi uma questão puramente formal, jurídica, constitucional, burguesa, dizem alguns, e que seria preciso acrescentar a essa insuficiente ossatura a carne do social, isto é, dos conflitos de classes, das relações econômicas etc. É verdade que, historicamente, assim se deram as coisas na modernidade, com uma democracia "formal" nos séculos XVIII e XIX, à qual um caráter social se juntou, a preço de muitas lutas, ao longo sobretudo do século XX. Mas, se já os gregos viam na democracia o despontar das lutas sociais, a novidade deixa de ser o momento, no século XX, em que ela passa de regime apenas político para adquirir uma dimensão social: o que é novo, o que precisa ser explicado, é por que a modernidade construiu a democracia representativa como um regime do qual, ao menos de início, se excluía o forte conteúdo social que os gregos nele depunham. Não quero dizer, com isso, que as reivindicações sociais efetuem uma reelenização da democracia, nem que correspondam melhor a uma imaginária essência do que seria esse regime político. O que cabe, porém, é matizar muitíssimo a idéia de um sentido inicialmente político e só depois social do regime democrático. Mais que isso, tem cabimento sugerir que a democracia, regime dos polloi, congregue a um tempo a temática do poder e a das relações sociais. Separar os dois temas foi um complexo – e difícil – construto moderno.
Nossa primeira observação é, pois, que o social não é um acréscimo recente a uma temática originalmente apenas jurídica ou política em sentido estrito: ao contrário, o que precisa ser explicado é como, no início da modernidade, ao se revisitar a democracia antiga, a fim de torná-la representativa e de agregar-lhe os direitos humanos, cinde-se de suas implicações sociais uma forma política, que passa a operar independentemente daquelas. Esse recorte, longe de ser originário, é ele mesmo problemático.
Segunda proposição que adiantamos: que não há como separar as temáticas das lutas sociais e do desejo. Ou melhor, que a separação entre as duas também é uma façanha, se assim podemos chamá-la, moderna. Usualmente as lutas sociais remetem à esfera dos interesses, mas apenas porque são entendidas segundo uma sua vigorosa racionalização. Com efeito, desde os primórdios da modernidade o tema antigo das virtudes cede lugar ao dos interesses. Esses remetem a alguns traços básicos. Destaca-se uma economicização das relações humanas: interesses apontam, em última análise, para uma leitura econômica de nossas vidas. Mesmo o que é qualitativo, como a vida ou a vida boa, tende a ser quantificado, em termos de meios e fins, em termos de investimentos e resultados. E essa dominação do futuro mediante o presente é construída racionalmente: isto é, uma análise precisa de vantagens e prejuízos, de riscos e resultados, estrutura o tempo. Economia e razão servem para o capital construir o seu mundo. O avanço das lutas sociais não destoará desse padrão. Quando os operários se organizam como classe a fim de lutar por seu quinhão, ou mesmo com o fito de extinguir a dominação burguesa, a palavra-chave é interesse, e esse é medido pelos padrões da economia e da razão. Aí temos, aliás, o eixo – e a limitação – do marxismo.
Sem dúvida há nisso muito a levar em conta. A política moderna destitui as virtudes de praticamente qualquer eficácia. Sem a base nos interesses, é difícil uma política funcionar hoje. Daí que vá de fracasso em fracasso aquele que tenta, em nossos dias, fazer política apenas por ideais, princípios ou valores; daí que a ética a que Weber viria dar o nome de da convicção seja, desde Maquiavel, desqualificada em termos de sua viabilidade política.
Contudo, o que precisamos enfatizar é aquilo que virtudes, na Antiguidade, e interesses, nos tempos modernos, reprimem. Porque virtude e interesse têm o condão de moralizar a política, a virtude direta e obviamente, o interesse indireta e de maneira menos evidente. Não apaguemos a diferença entre interesses e virtudes. O interesse rompe decisivamente com a virtude, porque esta passa pela recusa de si, pela abnegação, enquanto ele é o sinal mais claro da afirmação pelo menos de um certo si, o si econômico medido racionalmente. Mas, feita esta ressalva, virtude e interesse têm ambos por função reprimir algo que passa por horrível, o desejo.
Porque voltemos aos perigos da democracia, isto é, ao risco, antevisto pelos conservadores gregos, de que a massa dos polloi decida expropriar os poucos ricos e instituir sobre eles uma tirania. Ora, tal perigo é denunciado também em tempos modernos: no século XIX, negar o sufrágio universal é o recurso das direitas, receosas de que o populacho votante resolva confiscar as propriedades dos abonados. A multidão gananciosa, entre os gregos, é tida por viciosa – daí que seja preciso ativar as virtudes contra ela. Já a turba ensandecida, entre os modernos, não percebe o que é melhor para si próprio, a médio ou longo prazo: por isso precisa ser tutelada pelos interesses. O desejo é visto como concupiscência ou mesmo como loucura. Implica uma escravidão às próprias paixões. O homem que apenas deseja, sem o controle da razão, necessita ser protegido, tutelado. Há, é claro, diferenças entre os distúrbios antigos e modernos causados pelo desejo. Mas nos dois casos a ênfase está posta na expropriação dos bens dos ricos. O desejo é essencialmente de bens; não se distingue a reivindicação da massa e o furto ou roubo pelo criminoso; a massa que clama por igualdade no acesso à propriedade não é diferente do assaltante: pode até ser pior, constituir-se em quadrilha. Partido de esquerda, sindicato e quadrilha aparecem como próximos, ainda hoje, aos olhos de muitos conservadores: basta ver como o movimento dos sem terra é apresentado pelos fazendeiros mais conservadores.
O que até aqui procurei enfatizar, neste segundo tópico (o do caráter desejante das lutas sociais), foi que não dá para reduzi-las ao enfoque racional e econômico dos interesses. Sem dúvida, a mensuração e a racionalização que esses últimos permitem efetuar são preciosas. Graças a elas é que podemos negociar e, assim, instituir uma dimensão temporal na realização do que é desejado. O desejo negocia pouco; a virtude despreza a negociação; é do cerne do interesse negociar. Daí que não fique mal uma passagem do desejo ao interesse, e que essa articulação seja até mais feliz, pelo menos potencialmente, do que a oposição – mais radical, inegociável – entre desejo e virtude. Mas o sério risco na perspectiva dominante, que dá primazia ao interesse, reside em simplesmente esquecer o desejo como base, motor, ou como queiram chamá-lo, de todo um processo social de descontentamento e de busca de novos contentamentos.
Passemos à república.
***
A temática republicana se diferencia, no cerne de sua definição, da democrática. Se há um tema que aparece constantemente quer nos pensadores republicanos de Roma, quer na obra de Montesquieu quando reestuda aquele Estado, é o da renúncia às vantagens privadas em favor do bem comum e da coisa pública – renúncia esta a que Montesquieu dá o nome de vertu, e que me parece adequado traduzir por abnegação. Trata-se, para o autor do Espírito das leis, de uma qualidade anti-natural – dado que nossa natureza nos faria seguir as inclinações de nosso desejo para ter e ter mais –, construída por intensa educação.
Assim, para resumirmos, poderíamos dizer que enquanto a democracia tem no seu cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que possuem mais bens do que ela, e portanto é um regime do desejo, a república tem no seu âmago uma disposição ao sacrifício, proclamando a supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular. Evidentemente, é possível criticar a república dizendo-se que o suposto bem comum é, na verdade, um bem de classe, e que os sacrifícios que se fazem em nome da Pátria são desigualmente repartidos e, sobretudo, jamais põem em xeque a dominação de um pequeno grupo sobre a maioria. Mas o que eu gostaria de enfatizar na temática republicana é a idéia de dever que nela está saliente.
Porque talvez a grande dificuldade do pensamento democrático tenha estado, por muito tempo, em articular a sua temática do desejo – no caso, o desejo das massas por ter mais – com a necessidade de que elas não se limitem a tomar os bens, de que se sentem privadas e, com isso, injustiçadas, mas também se proponham a conquistar o poder. A disputa pelos bens se salda por um fracasso quando não se desdobra – e se fundamenta – na luta pelo poder. Isso vemos claramente na epopéia dos irmãos Gracos, que se batem, na Roma republicana e socialmente desigual, por uma reforma agrária, porém terminam, um e depois o outro, assassinados e derrotados pela classe senatorial a que pertenciam e que os viu como traidores.
A questão é um pouco complicada, porque na verdade é no desejo que, seja na Europa do século XIX, seja hoje no mundo todo, surge a essência da luta social. Não reclamam, as massas, porque se vejam privadas de participação no Parlamento, no Executivo ou no Judiciário: o que as mobiliza é a privação do que é essencial para a vida ou em nossos dias, como já argumentei em outro lugar, cada vez mais a falta que lhes faz um supérfluo que se tornou essencial. Desse, o melhor significante é o tênis de qualidade, cujo roubo funciona, nas grandes metrópoles do mundo pobre, como o preciso sinal de como a política se joga no dia-a-dia do desejo2. A inveja do tênis, assim, é talvez o motor das lutas sociais nas periferias, mais do que nunca foi a propalada inveja do pênis em sua versão freudiana e anti-feminista... Mas, se é no desejo que eclode o caráter social da luta política, ele é insuficiente para dar-lhe vazão e solução. E isso porque a luta pelo excedente, pelo que constitui a desigualdade, só na aparência é um combate pelo que sobra, pelo resto, pelo excesso: ela é na verdade a batalha pelo centro, pelo mando, pelo poder.
Vejamos que o problema é duplo. A ficarmos no plano do desejo, o risco é enorme de que não saibamos encaminhar a sua possível, ainda que sempre incompleta, realização. Mas, a nos apressarmos em resolvê-lo, perdemos por completo a noção do que está em jogo. É o que acontece quando, rápido demais, se procura traduzir o descontentamento popular em termos de suas possíveis soluções: por exemplo, como dizia acima, aumentar sua participação no legislativo, no executivo, melhorar o judiciário, a polícia. O desejo tem seu tempo, sua demora; paradoxalmente, ele surge apressado, urgente, porém toda tentativa veloz de traduzi-lo em outra linguagem se salda por fracasso. Ou o saciamos, e aí a velocidade tem sentido, ou ele amadurece e se modifica, e aí há que respeitar um tempo, uma dilação. Como, nas linhas que se seguem, vou discutir seu encaminhamento, sua canalização, é preciso começar ressalvando que toda essa hidráulica das soluções dará errado se não houver espaço para os desvios, os equívocos, as demoras – as enchentes, as vazantes. E por isso antes de mais nada convém lembrar Maquiavel, em sua passagem sobre os homens que, sabendo das cheias que lhes vão destruir as cidades e os campos, precavidos constroem represas, pontes, barragens. Essa sabedoria que gera o saber moderno, essa moral da previdência que está na base da razão como planejamento, é certamente útil – mas não deve, tratando-se de desejo, ser superestimada. Adianto-me um pouco, dizendo que a democracia é popular, está do lado da sociedade, dos que podem obedecer a maior parte do tempo, podem desobedecer menos vezes – mas desejam o tempo todo; e que a república está do lado do poder, das instituições, expressando a lógica de quem manda. Ficar na sede (com e aberto) do poder significa perder de vista a sêde (com e fechado) de algo que não é poder, que é apenas equacionado por esse, e sempre mal equacionado. O desejo é esse inominado.
Mas indaguemos como se viabiliza, se consolida, se realiza a democracia. Desde que se coloca o tema do poder, surge a seguinte questão. Pensando-se o poder, não há problemas, ou eles são poucos, se e somente se quem manda é diferente de quem obedece. Nesse caso, as regras que valem para todos não valem para aquele que governa. E isso é tão verdade que, mesmo em regimes democráticos, uma exceção se estabelece em favor do chefe de Estado3, ou mais amplamente em proveito dos parlamentares, imunes a procedimentos que valem para os demais – o que é um resíduo significativo da antiga idéia de majestade, que se adensava no rei. Desde, porém, que haja identificação entre quem manda e quem obedece, o poder suscita uma série de problemas.
O único regime no qual, em tese pelo menos, há plena identificação entre quem manda e quem obedece é o da soberania popular, ou seja, a democracia. Assim, os problemas de funcionamento político a que aludimos são especialmente fortes nesse regime. Enquanto os outros regimes foram perdendo sua legitimidade ao longo do século XX e é possível que continuem a perdê-la nos tempos próximos, a democracia foi-se tornando, em especial desde a II Guerra Mundial, o único modo de governo a ser, hoje, considerado legítimo. No entanto, esse estoque de respeito que ela merece contrasta com um déficit de eficácia no plano do funcionamento. Em outras palavras, a democracia sobressai-se na legitimidade, e falha no funcionamento. Possivelmente um dos eixos de seu difícil funcionamento, na prática, resida precisamente na facilidade maior de se agir quando se separa quase que no bisturi quem legisla, executa ou julga, e quem obedece. Temos aí um recorte testado em milhares de anos, uma tecnologia do mando e da submissão mais do que desenvolvida – e contra isso, apenas uma legitimidade ainda jovem, que não teve tempo, em duzentos anos desde que despontou em dois países, os Estados Unidos e a França de suas revoluções, para capilarizar suas práticas, suas emoções, numa escala comparável aos autoritarismos de eficácia bastante comprovada. Em suma, a experiência política de milênios aponta para o desligamento do mando e da obediência, ou seja, como bem o percebeu Hobbes, entre lei e direito, ou ainda, como diríamos no contexto da presente discussão, entre a ordem do poder e a do desejo.
É a esses problemas – que nascem da própria definição da democracia – que a república fornece pelo menos um esboço de resposta. Dizendo de outro modo, a república é uma construção romana que visa exatamente a responder à pergunta sobre as dificuldades que há quando os mesmos que mandam devem obedecer. Notamos que é essa a problemática do direito/dever constitutivo da democracia, isto é, do fato de que nesse regime, mais que em qualquer outro, não tem cabimento opor radicalmente direito e dever, como quer com tanta veemência Hobbes, no cap. XIV do Leviatã. Se na democracia só pensarmos em satisfação dos desejos, ou mesmo em atendimento aos direitos humanos, esqueceremos o cerne constitutivo dela, que é o poder do povo, ou seja, o fato de que há democracia, essencialmente, não porque se sacie a fome ou se respeitem os direitos, mas porque o povo detém o poder. Não é que fome ou violência sejam problemas menores, mas é que em princípio podem ser superados em registros políticos não democráticos, por exemplo, no caso de um despotismo esclarecido, de um Estado de Direito aristocrático, ou ainda de um governo populista e autoritário – ao passo que só há democracia quando ocorre uma responsabilização básica do povo por suas decisões.
Ora, toda a questão republicana está, justamente, no auto-governo, na autonomia, na responsabilidade ampliada daquele que ao mesmo tempo decreta a lei e deve obedecer a ela. Entende-se, portanto, que Hobbes, ao cindir jus e lex, direito e obrigação, na mencionada passagem do Leviatã, tenha colocado enormes dificuldades para um pensamento e uma prática republicanos. Toda a construção de seu Estado tende à monarquia – embora ele considere legítimos os regimes em que vários ou todos mandam, ou sejam, a aristocracia e a própria democracia –, precisamente porque nele o essencial é o claro recorte entre quem manda e quem obedece. Na sua doutrina, é verdade que quem obedece constitui aquele que manda como seu representante, e portanto obedece por assim dizer a si mesmo, mas a mecânica cotidiana do sistema nega ininterruptamente essa semi-identificação entre o governante e os súditos, porque – sendo a lei simples expressão da vontade injustificada do soberano – ele não pode estar sujeito a ela. (É, pois, significativo que Hobbes admita a democracia, porém nem mencione a república. O regime popular é mais aceitável em sua teoria do que aquele no qual quem manda precisa, sempre, conter-se. E isso porque seu poder, sendo soberano, libera a hybris do governante, aquilo mesmo contra que a república é instituída).
Esse esquema separando o mando e a obediência é compreensível e está muito mais ancorado em nossos costumes do que pensaríamos à primeira vista, já que nossa prática da política destoa em larga medida de nossa consciência – ou teoria – da mesma. Pensamos que todos estão sujeitos à lei, mas praticamos melhor a cisão entre lei e direito, entre quem governa e quem obedece, sobretudo nos países em que a democracia é frágil ou por se consolidar. Ora, o que aqui desejo assinalar é que pode haver um encontro entre as temáticas republicana e democrática. Melhor até, é preciso haver esse encontro, se queremos que a democracia se realize. Uma democracia sem república não é kratos, é simples populismo distributivista, como tanto vimos nas décadas em que, primeiro na Europa e depois na América Latina, as massas acederam à visibilidade do espaço social, manifestando-se inicialmente pelo seu desejo. Na prática, é o despotismo de um príncipe demótico. Daí que a reivindicação social seja, a um só tempo, o que permite sair da democracia restrita a uma elite para uma democracia de massas, e aquilo que tende a reinstituir, no seu centro, um poder de príncipe ou tirano, uma heteronomia das multidões4.
A democracia, para existir, necessita da república. Isso, que parece óbvio, não o é. Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para se satisfazer o desejo de ter, é preciso tomar o poder – e isso implica refrear o desejo de mandar (e com ele o de ter), compreender que, quando todos mandam, todos igualmente obedecem, e por conseguinte devem saber cumprir a lei que emana de sua própria vontade. Para dizê-lo numa só palavra, o problema da democracia, quando ela se efetiva – e ela só se pode efetivar sendo republicana –, é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos. Eis a contradição terrível da democracia, que até hoje a limitou extraordinariamente e fez até, lá onde ela melhor se constituiu, que não fosse muito além da esfera política. A dificuldade de uma democratização dos afetos e da socialização, ou seja, da vida afetiva e das relações de trabalho, está exatamente nessa exigência da autonomia, que nem sempre é entendida como essencial, porque se deseja da democracia a distribuição dos bens, e não a gestão do poder.
Mas, se a questão de traduzir tudo isso na prática é dificílima, a saída teórica me parece, pelo menos, colocada. Há que entender toda a problemática da autonomia, ou seja, da autogestão dos poderes e de si que é característica da democracia, a partir de uma extensão dos valores republicanos. É o que Roma propôs, porém conservando um recorte essencial entre a minoria de patrícios que ao mesmo tempo mandava e obedecia, e a maioria desprovida de direitos políticos. A solução republicana vigia para os membros do Senado, mas somente era possível na medida em que persistia a velha divisão. Na verdade, era exatamente porque aos senadores ainda se facultava mandar irrestritamente sobre aqueles que deviam obedecer ilimitadamente, que eles podiam, no seio de seu corpo, praticar a difícil moralidade republicana, de obedecer à lei que eles mesmos promulgavam.
***
Tentemos encaminhar alguma conclusão. Talvez haja dois pontos a esclarecer, ainda. O primeiro é que o desejo é dito sobretudo dos que não têm, e a abnegação dos que têm5. A república é a virtude dos proprietários, ou dos patrícios: é uma excelência, uma alta qualidade moral, uma dignidade, em suma, uma aretê, que bem diz de sua natureza aristocrática. Não por acaso, a república modelar, aquela que para todos os tempos ocupa o papel paradigmático que no caso da democracia é exercido por Atenas, é Roma: e lá o regime republicano nasceu do triunfo da aristocracia sobre a monarquia, e viveu – e morreu – da resistência dessa classe contra o povo. Assim, podemos dizer que o desejo, que aparece como uma pulsão aquisitiva, se explica sobretudo a partir dos que não possuem nada, ou somente pouco. Mas se esgota o desejo no anseio por adquirir coisas, bens? Certamente que não. Através da matéria e da mercadoria se mira outra coisa – o reconhecimento como ser humano, ou até algo menos nomeável, cuja densidade apenas podemos imaginar. Mais interessante do que reduzir a complexidade do desejo ao anseio pela igualdade reconhecida (outro modo de domesticar nossas pulsões em algo racional), pode ser preservar seu caráter questionador, numa palavra, sua dimensão de aventura. De todo modo, desejantes são os que não têm, moderados os que têm. Ao insistir no caráter desejante da democracia, estou negando todo propósito de racionalizá-la às pressas. Ao apontar a virtude da república como regime da auto-contenção, estou afirmando a necessidade de que os desejos, para realizarem uma democracia ampliada, aprendam a educar-se segundo hábitos que são inicialmente aristocráticos.
Mas, nesta encruzilhada de duas tradições a nós simpáticas, república e democracia, pode ser que a república já tenha mais ou menos constituída a sua tecnologia, o seu modus faciendi; o que devemos é desenvolver a democracia6. Desse regime ainda sabemos pouco. Insisti em que ele precisa da república – se não, fracassa. Mas a república deve ser o meio para ele expandir suas possibilidades, reformando não apenas o Estado, porém as relações sociais e mesmo micro-sociais. A novidade estará do lado da democracia – que tem, claro, de ser republicana.

NOTAS
1 Sugeri que a terceira pessoa do discurso não é apenas aquela de quem se fala, é aquela de quem se fala mal, em Ao leitor sem medo, cap. 7, p. 223 da 1a edição (São Paulo, Brasiliense, 1984) e p. 221 da 2a edição (Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999). Isso a pretexto da passagem em Do cidadão (cap. I, parágrafo 2, p. 30 da edição brasileira – São Paulo, Martins Fontes, 1992) em que Hobbes fala das pessoas que relutam em sair de uma sala, onde conversam, receando tornar-se alvo da maledicência alheia tão logo se afastem! Pode-se argumentar que à segunda pessoa eu tributo o respeito de aceitá-la ou instituí-la como interlocutor, enquanto a terceira é não só ausente, mas ausentada do discurso.
2 Referindo-se à discussão deste texto, na reunião de novembro de 1999 do grupo de estudos sobre a república, e em especial ao argumento suscitado por um debatedor de que o roubo de tênis visaria a vendê-los e assim obter dinheiro para comer ou drogar-se, recebi a seguinte correspondência de Luis Felipe da Gama Pinto: "Há 5 anos estou envolvido com uma ONG (Santa Fé) que lida com meninos e meninas tirados de uma situação de rua, e não é preciso muita experiência com eles para avaliar a incrível importância simbólica do tal tênis, a força que tem como objeto de desejo. Ao contrário do que se possa pensar, os tênis até justificam o sacrifício quanto à comida; ostentá-los nos pés é fim mais capaz de seduzir muitas vezes do que a comida. O grosso do dinheiro é mais comum que se ganhe no tráfico ou com outros roubos. Os tênis importa tê-los nos pés." (e-mail de 10 de fevereiro de 2000).
3 Basta citar o art. 86, parágrafo 4, da Constituição do Brasil, de 1988, que proíbe processos contra o presidente, durante o seu mandato, por crimes comuns não relacionados ao exercício de seu cargo, embora os autorize uma vez deixado o poder; ou a recente pendência judicial, nos Estados Unidos, em que o presidente Clinton pretendia interromper o andamento de um processo movido contra ele pedindo indenização por suposto crime contra a honra de uma pessoa.
4 O príncipe ou tirano pode ser um ditador, mas também um líder carismático ou, simplesmente porém com tanta eficácia, um pregador religioso ou um apresentador de televisão ou rádio. O essencial do que afirmo é a reposição, no centro do que deveria ser uma democracia ampliada porque levasse em conta o desejo, de um poder anti-democrático.
5 Esta frase é de José Murilo de Carvalho, no debate; as ilações são de minha responsabilidade.
6 Questão levantada por Maria Alice Rezende de Carvalho.


RESENHA DO LIVRO: "O ENSINO DE FILOSOFIA"

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CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia: como problema filosófico. Tradução de Ingrid Müller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 101 p.
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FÁBIO COIMBRA
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão
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Sob a autoria de Alejandro Cerletti, o livro em questão tem como propósito discorrer sobre a implementação de alguns recursos didáticos planejados no sentido de facilitar a atividade docente, como o autor bem destaca ainda na introdução: “o ponto de início será refletir sobre o problema que está na base: que se entende por ensinar filosofia e como se poderia transmitir algo cuja identificação é já um problema filosófico”. Nesse contexto, chama-se a atenção para uma série de decisões que a partir daí deverão ser tomadas. O autor em alguns momentos se limita a definir como (ou quem) seriam os melhores professores. Nessa perspectiva, partindo do princípio de que “ensinar implica assumir um compromisso e uma responsabilidade muito grande, Cerletti afirma que “um bom docente será aquele que se situa a altura dessa responsabilidade [...].” Argumenta também que “os melhores professores são aqueles capazes de ensinar em condições diversas”. Significa isso que terão que repensar sempre “no seu dia a dia os próprios conhecimentos”.
Uma questão indubitavelmente relevante que Cerletti levanta é esta: “é evidente que não é o mesmo ‘dar aulas’ de filosofia em uma escola de uma zona socialmente muito castigada da periferia suburbana do que em um colégio urbano de classe alta ou em uma escola rural do interior do país [...] porque em função desses contextos, não será o mesmo em cada caso o que se pode – ou se deve – fazer em nome da filosofia”. [p. 7-8]. Este é sem dúvida um momento muito feliz da argumentação do autor porque aponta para a complexidade da realidade na qual se dá, ou se desenvolve o processo ensino/aprendizagem. E é por essa razão que ele argumenta que “o ensino de filosofia implica uma atualização cotidiana de múltiplos elementos que envolvem de maneira singular seus protagonistas, a filosofia posta em jogo e o contexto em que esse ensino tem lugar.” [p. 8].
Outro ponto [ou argumento] de destaque é quando Cerletti diz que “o ensino da filosofia é basicamente uma construção subjetiva, apoiada em uma série de elementos objetivos e conjunturais”. [p. 8]. A relevância disso consiste na possibilidade de se entender por “elementos objetivos” a realidade própria de cada um. E nessa perspectiva, o autor diz que “um bom professor é aquele capaz de levar adiante de forma ativa e criativa, essa construção”. [p. 8].
Em suma, pode-se dizer que – em geral – o propósito do livro é [como diz o autor] “convidar o leitor a refletir sobre algumas questões conceituais que são postas ao ensino da filosofia”.
Quanto à estrutura, o livro se compõe de sete capítulos. O primeiro [Que é ensinar filosofia?] busca defender a idéia de que não se separa a filosofia do filosofar, e que o filosofar se sustenta na tensão da pergunta filosófica. No seu desdobramento, o capítulo mostra que tradicionalmente a filosofia foi pensada no sentido de ser o seu ensino algo transmissível, o que nos tempos modernos deixara de acontecer. Nesse com texto, o autor argumenta que só se pode ensinar filosofia a partir de algum lugar e certas perspectivas. Fechando o primeiro capítulo, Cerletti vai argumentar que as obras dos filósofos, na verdade, são respostas que eles se deram, ou deram aos questionamentos que se faziam questionamentos esses que na maioria das vezes estão atrelados ao seu contexto.
No segundo capítulo [O perguntar filosófico e atitude filosófica] o que está em discussão é mais o perguntar que a atitude. Nesse aspecto Cerletti diz que “um curso filosófico deveria ser um campo fértil para o perguntar da filosofia”. No sentido da pergunta, o autor questiona sobre o que é que distingue a pergunta filosófica das demais, e argumenta que esse diferencial está na intencionalidade daquele que pergunta e não no perguntar em si. No decorre do capítulo, o autor vai dizer ainda que a pergunta filosófica não se esgota na primeira resposta adquirida. Nesse sentido diz que “A intencionalidade da pergunta se enraíza na aspiração ao saber.” Cremos que um dos pontos mais relevantes da argumentação do autor é quando ele diz que “o ensino filosófico deveria voltar-se [...] para as condições de possibilidade das perguntas filosóficas.” [p. 25-26]. De acordo com o autor, “o que move alguém a filosofar é o desafio de ter que dar conta, de uma distância ou de um vazio que nunca é preenchido, satisfeito.”. 
No terceiro capítulo [Repetição e criação na filosofia e em seu ensino], o autor chama a atenção para a importância da “análise daquilo que se pode ensinar em nome do pensar crítico e criativo em qualquer ensino de filosofia”. Nesse sentido, ele argumenta sobre a impossibilidade de se criar a partir do nada. O que significa que sempre se parte de alguma coisa, corroborando o que já fora dito anteriormente. Cerletti diz que o que os filósofos fazem é “re-criar os seus temas e reconstruir os seus problemas.” [p. 32]. Para isso, o filosofo deve se voltar para o passado, mas, sem perder de vista a dimensão do futuro, “porque desdobra um olhar que inventa novos questionamentos”. [p. 32]. O autor considera ainda que a repetição é positiva na filosofia na medida em que “é condição de possibilidade de criação, ou seja do aparecimento de algo diferente”. [p. 33]. Cerletti chama a atenção também para o fato de que o ensino de filosofia vai alem da trasladação dos saberes tradicionais. Nesse aspecto, o que faz com que um ensino de filosofia seja filosófico é o fato “desses saberes serem revisados no contexto de uma aula.” [p. 34]. Novamente o autor insiste no fato de que não se separa a filosofia do filosofar: “ensinaremos filosofia no ato de filosofar e aprender-se-ia filosofia começando a filosofar”. [p. 36].
No quarto capitulo [Porque ensinar filosofia], Cerletti afirmar que essa pergunta conduz a outra, qual seja, “pára que ‘serve’ a filosofia?” responder a essas perguntas significa já está filosofando, ou ainda, fazendo filosofia como ele mesmo diz retomando um argumento já descrito: “a possibilidade de uma resposta [...] introduz-nos em cheio no terreno filosófico”. [p. 42]. De acordo com o autor, a justificativa a esses tipos de questionamentos [sobre o sentido da filosofia nas escolas] é uma tarefa que deve ser feita com muito cuidado “juntos aos diversos saberes e atividades de nossa vida de hoje”. [p. 43]. Quanto ao questionamento primeiro, Cerletti diz que nos tempos antigos a filosofia já havia se expressado, ou ainda, “demonstrado um gesto defensivo diante dos questionamentos que apontam a sua inutilidade.” [p. 44]. Quanto a pergunta referente ao valor da filosofia, o autor chama a atenção para o risco que se corre de atrelá-la ao mercado que preza sobretudo pelo valor de circulação da mercadoria. Essa reflexão de Cerletti é relevante por que nos ajuda a entender que o descrédito para com a filosofia pode vir muitas vezes – como de fato vem – daqueles que estão mais preocupados com a aquisição de riquezas materiais caracterizadas por seus valores elevados do que da parte daqueles que estão de fato preocupados com as reais transformações de um mundo desumano em catástrofes sócias, por exemplo.

Nos tempos em que vivemos, a palavra “utilidade” está associada, fundamentalmente, com um valor de mercado, e relacioná-la com a filosofia significaria estabelecer como a filosofia poderia instalar-se dentro desse mundo de circulação de mercadoria, dentro de sua produção e reprodução. [p. 46]


  Nesse sentido, é preciso ser prudente ao tentar-se definir a filosofia num contexto onde tudo se volta para o mercado. Pois, poderíamos correr o risco de diluir o seu verdadeiro significado e deturpar seu real sentido. Entretanto, de acordo com Cerletti, não se pode desprezar os demais saberes em proveito da filosofia. É preciso, antes de tudo, reconhecer suas importâncias como sendo para a filosofia a “base de sua reflexão”. [p. 52].
No quinto capítulo [A formação docente: entre professores e filósofos], Cerletti discorre sobre como deve [ou deveria] ser [ou se dar] a formação do professor de filosofia. Para tanto, ele parte do princípio de que “Um professor de filosofia não ‘se forma’ tão somente ao adquirir alguns conteúdos filosóficos e pedagógicos, [mas] vai-se aprendendo a ser professor desde o momento em que se começa a ser aluno” [p.55]. Ou seja, nessa concepção, não há em específico um ponto que demarque aonde começa a verdadeira formação docente. Nesse sentido, seria relevante que o alunato [desde o início de sua vida como estudante] já se dedicasse ao máximo à vida de estudos. Nessa perspectiva, se justifica o “porque” de muitas vezes nos depararmos com esta ou aquela falha do professor, falhas essas que muitas vezes pode comprometer o aprendizado. É nesse sentido que o autor argumenta que “se é como docente o aluno que se foi”. [p. 55]. O autor chama a atenção para o fato de que, em princípio, a formação e a prática docente podem estar – até certo ponto – desorientadas. Isso, entretanto, não se trata de um problema crucial, mas decorre [ou pode decorre] simplesmente do fato do repertório do professor ainda está refletindo o amontoado de conteúdos vistos na graduação. Esses conteúdos e similares, de acordo com o autor, não podem ser abandonados:

O componente real do equipamento pedagógico que um professor dispõe para a sua prática é constituído, então, por aquele conjunto de teorias implícitas, valores e crenças pedagógicas que formam um a priori que não deixar de ser levado em conta. [p. 57].


É nesse aspecto que o autor vai argumentar que “não é possível cifrar todas as expectativas da formação docente no momento inicial [...], mas, deve se pensar também nos momentos anteriores [...] e posteriores”. [p. 57]. Cerletti chama a atenção ainda para o fato de que a análise de toda atividade docente deve considerar a totalidade de tudo o que envolve esse processo: teoria, gestos, hábitos o etc. Nesse aspecto, ele argumenta que “a formação de um professor de filosofia [...] corresponde a toda a formação em seu conjunto” [p. 60, grifo nosso]. Ou seja, o processo é linear. Ao final do capítulo, o autor retomar a questão trans-formação para argumentar que “transformar-se em sujeito da educação, [...] pressupõe deixar de lado a tutela para converter-se em protagonista da própria formação”. [p. 64].
No sexto capítulo [Ensino de filosofia, instituições e Estado] o autor argumenta que “a relação entre filosofia, seu ensino e o Estado teve uma origem trágica: a morte de Sócrates” [p. 66]. Desse modo, pode-se perceber já uma certa tensão como elemento mediador dessa relação. A morte de Sócrates – nesse caso – mostra a complexidade que há na tentativa de compatibilizar o ensino de filosofia com as exigências próprias das instituições, o que evidentemente, não está isento de conflito, e até mesmo o conflito mortal como o foi com Sócrates. Nesse sentido, Cerletti argumenta que “a Apologia de Sócrates, de Platão, talvez seja um dos textos filosóficos que com maior força põe de manifesto a dificuldade que significa decidir o lugar institucional da filosofia.” [p. 66]. Ou seja, o que está em debate aqui é: qual é o verdadeiro lugar da filosofia? De qualquer modo, chama-se a tensão aqui para o fato de que a morte de Sócrates pode ser uma denúncia de que a sociedade da sua época não estava preparada e nem aberta para a recepção de novas formas de pensamento e, por isso, matara aquele que primeiro ousara enveredar esse caminho. De acordo com Cerletti, a resolução desse problema seria um dos alvos de Platão: “Platão tomou como seu desafio político (e filosófico) a superação desse problema, ou seja, uma pólis justa seria a que tolerasse Sócrates filosofando oficialmente.” [p. 68, grifo nosso]. Aqui há de se perguntar: o que seria, então, a filosofia de Sócrates para que o estado não a aceitasse? Pode-se argumentar aqui que a morte de Sócrates também atesta outra problemática pertinente que [se iniciando no contexto antigo] ainda persiste nos dias atuais: o fato de que o ensino de filosofia se encontra sempre obstaculizado em razão de limites que se lhe interpõe. Quase sempre esses obstáculos resultam de interesses diversos presente na esfera política, esfera esta que atravessa a educação, as instituições etc. E nesse sentido, o autor argumenta, “as instituições não são lugares neutros.” [p. 72]. Uma argumentação muito relevante do autor é quando ele diz:

Poderíamos afirmar que a “formação em valores” (cívicos, morais ou religiosos) não é o essencial do ensino da filosofia. Em todos os casos é algo que poderá ser compartilhado com as demais disciplinas. A função da filosofia na escola [...] seria a de dar ferramentas aos jovens para adaptarem-se ao mundo de hoje, mas antes mostrar diversos recursos teóricos que possam ser utilizados para pensá-lo e eventualmente transformá-lo [p. 74]

Nessa perspectiva, a função da filosofia é apensa a de fazer com que os jovens se dêem conta dos elementos aptos a fazê-lo pensar o mundo a partir dos elementos [ferramentas] que já estão postos.
No sétimo e último capítulo [Em direção a uma didática filosófica] o autor retomas algumas discussões já postas nos capítulos anteriores. Por isso esse último [capítulo] pode-se dizer, resulta como apanhado geral do livro. Entretanto, há reflexões novas, e algumas delas convêm trazer á baila. Essas reflexões dizem respeito à possibilidade de se ter ou não uma didática filosófica. De acordo com o autor, para se pensar essa didática seria preciso ter presente alguns questões:

Em primeiro lugar, considerar que a sala de aula é um âmbito em que é possível formular perguntas filosóficas com a radicalidade que elas implicam, e não um lugar em que o professor somente oferece repostas a perguntas que seus alunos não formularam. De maneira correlata, sustentar que ensinar filosofia exige a construção de um âmbito para o filosofar. [p. 81]


O autor está, portanto, sustentando e defendo um entrelaçamento entre perguntar e filosofar. Pode-se fazer aqui um trocadilho e dizer que o filosofar é fruto do perguntar sobre as coisas, o mundo etc. Sem essa atitude de questionar [que demarca a inquietação primeira] o filosofar não seria possível e assim já não se teria filosofia já que ela nasce desse processo pelo qual o indivíduo é perturbado frente a alguma coisa. Nessa perspectiva, o autor argumenta que o “o objetivo final de todo professor de filosofia deverá ser fazer de seus alunos, em alguma medida, filósofos.” [p. 81, grifo do autor]. No sentido de que ensinar filosofia não é transmitir conhecimentos, Cerletti argumenta que “o ensino de filosofia se constrói no diálogo filosófico do dia a dia”. [p. 82]. Ou seja, o processo é gradual. Para finalizar: “uma vez mais [diz Cerletti]: Ensinar filosofia é dar um lugar ao pensamento do outro”. [p. 87]. 
Ressaltamos que a argumentação do autor é boa e [ao que aparece] dar conta da problemática que ele se propõe a discorrer. Concordamos com todos os argumentos propostos, como, por exemplo, o de que: o aluno não é tabula raza; que não se transmite conhecimentos; que se recria e se repete, dentre outros.
O que chamamos a atenção é para o fato de que o autor muitas vezes é repetitivo, quando na verdade deveria ser mais “uno” em algumas argumentações. Ressaltamos também que [ao que tudo indica] em algum momento o autor aparece contradizer alguns argumentos que ele mesmo dissera antes. Um exemplo é o que diz respeito ao fato de que os conhecimentos são transmitidos ou não. Em muitos momentos ele argumenta em prol de uma transmissão dos conhecimentos. Somente no último capítulo é que ele diz consistentemente que o ensinar não tem como função transmitir. Essa talvez seja a falha do autor, mas que, jamais ofusca a grandeza do seu pensamento.

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