O FUNDAMENTO DA VIDA POLÍTICA
Fábio Coimbra[1]
A política é um assunto que todo mundo se julga apto a falar sem, no
entanto, se dá o trabalho de investir a fundo o que, na essência, constitui
essa ciência assim chamada. No decorrer da história humana, muitos cérebros se
dispuseram à realização dessa árdua tarefa objetivando essencialmente a
construção de bases a partir das quais se pudesse erigir todo um conjunto
teórico de reflexões que deveria se materializar no campo da ação prática. Na
civilização ocidental, especialmente, na Grécia antiga, é digno de destaque
nomes como o de Platão, e sua célebre obra “A
República” e Aristóteles, com a sua magnífica “Política”. No decorrer da idade média, destaca-se santo Agostinho e
a sua “Cidade de Deus”. Na
modernidade, por sua vez, abre-se um leque para uma reflexão política mais
ampla. O ponto de partida da modernidade, diga-se de passagem, se deu
essencialmente com os humanistas cívicos, dos quais o ilustre florentino autor
de “O Príncipe” foi herdeiro direto
e, portanto, um dos primeiros, dentre os modernos, a tratar da política em sua
profundidade. Foi também nesse contexto (modernidade) que veio a lume aquela
corrente da filosofia que prezou, sobretudo, por temas referentes à liberdade
do homem (fazendo um contraponto ao ideal grego de liberdade); a origem do
estado e da sociedade civil; o princípio do direito político etc. Essa
corrente, razoavelmente discutida, estudada e investigada, sobretudo no âmbito
acadêmico-científico, chama-se contratualismo, que se estruturou sobre o tripé
Rousseau, Loock e Hobbes. É importante Lembrar que, no geral, embora voltem
suas atenções para duas coisas especificas, a saber, o estado de natureza e o
estado de sociedade, esses autores não deixam de criticar-se mutuamente. Dentre
esses o principal embate se dá entre Rousseau e Hobbes, sobretudo, no que diz
respeito às suas concepções de homem enquanto habitantes do primeiro estado. Enquanto
Rousseau vê no estado de natureza um homem bom, Hobbes, por sua vez, visualiza
um homem mal, feroz como um leão, a todo o momento apto para atacar o outro,
buscando, acima de tudo, sua satisfação e benefícios individuais. Esse tipo de
duelo, cabe ressaltar, não se observa somente entre os contratualistas, mas
também se dá entre eles e outros, como por exemplo, entre Hobbes e Aristóteles,
assunto que aqui será enfatizado com precisão à luz de Yara Frateschi.
Intitulada “A física da política:
Hobbes contra Aristóteles”, a obra de Yara Frateschi pode ser considerada
fidedigna em matéria de teoria política, especialmente por trazer a tona dois
clássicos da filosofia que, embora muito distantes cronologicamente, estão
muito próximos quando o assunto se volta a uma reflexão política e
“antropológica”.
Nessa obra a autora objetiva demonstrar primordialmente a ruptura que
Hobbes faz com a tradição aristotélica, que via no homem um impulso natural
para a vida coletiva. Esse rompimento à luz da autora se dá especialmente a
partir da crítica que Hobbes faz à concepção de Aristóteles de que o homem é
por natureza um anima político. Com a sua crítica, Hobbes desfaz a concepção do
estagirita mostrando que a principal razão pela qual os homens se unem está
pautada sobretudo na busca de benefícios individuais, a que a autora denomina
de “princípio do benéfico próprio”.ou
seja, o que empurra o homem para a união com os demais não é o fato de que ele
está preocupado com os outros, mas sim, porque ele vê nisso a oportunidade para
a realização de um desejo que lhe compraz e que sozinho ele não tem como
realizar. Nesse sentido, a vida social já não seria mais uma condição de fim
que, na reflexão de Aristóteles, seria a continuidade da espécie e a sua
preservação. Seria, portanto, um meio tendo como fim – para o homem – a sua
auto-preservação. De acordo com a autora
Hobbes não nega que a solidão seja inimiga dos homens
e que estes procurem reunir-se com os demais para satisfazer seus desejos e
necessidades. No entanto, isso não é suficiente para que se conclua a
naturalidade da cidade, pois as sociedades civis não são meras reuniões, mas se
erguem pela instituição de um poder comum, capaz de obrigar os homens a cumprir
pactos e leis. (FRATESCHI, 2008, p. 14-15)
Aristóteles, diferentemente de Hobbes e dos demais contratualistas não
pensou a sociedade a partir do estado de natureza. Não viu ele que nesse a
liberdade do homem era ilimitada. Se ele não teve essa percepção, isso se
deveu, sobretudo, às condições do seu contexto histórico que não lhe permitiu o
acesso a tal reflexão, em vista de outras preocupações. Uma das varias
diferencias que há entre o estagirita e os contratualistas é que aquele reflete
uma sociedade já constituída, onde o direito dos homens já era limitado, onde
uns eram escravos e, portanto, submisso e outros livres e senhores. Hobbes vê a
sociedade civil como superação do estado de natureza, estado no qual na alegria
da liberdade estava implícito o medo da morte violenta e da barbárie. O estado
de sociedade surge justamente para dizer a cada um aquilo que é seu e aquilo
que não é. Ela surge como uma forma de instituição superior dotada de lei e
força para travar aquelas pretensões que optarem pela desordem e pela prática
da violência. Hobbes quer mostra que é esse o sentido primeiro da constituição
da sociedade, e que, portanto, não é verdade que exista no homem uma disposição
natural para a vida social. Ele quer mostrar que a sociedade é fruto de uma
opção que os homens fazem para fugir da animalidade e adquirir benefícios que
visam à sua preservação.
Este primeiro capítulo, que discorre sobre o fundamento da vida política, se desdobra e três momentos
específicos de reflexão da autora. No primeiro ela aborda a critica do zoon politikon, no segundo, o principio do benéfico próprio e, por fim,
no terceiro, a origem da sociedade civil.
Zoon politikon, cumpre Lembrar,
é uma máxima do pensamento de Aristóteles, que arrasta toda uma tradição
européia que se inicia no mundo antigo e se revigora durante a idade media.
Essa máxima, que tinha como pressuposto básico a disposição natural do homem
para a sociedade, vai posteriormente ser refutada por Hobbes que, ao executar
tal crítica, contrapor-se-á a todo um sistema político pautado no pensamento de
Aristóteles e que tinha esse filósofo como autoridade reverente em assunto de
política. A autora refere que “Hobbes
propõe-se a contribuir banindo da filosofia política o preceito aristotélico do
zoon politikon e estabelecendo as bases da nova ciência política” (FRATESCHI,
2008, p. 17-18). Para fins de esclarecimento, a autora traça um paralelo entre
Aristóteles e os estóicos, onde os esses também viram no homem uma aptidão
natural para a sociedade. De acordo com ela
Os estóicos explicam que a primeira manifestação dessa
aptidão se dá na própria conformação do corpo humano – que é, entre outras
coisas, feito para procriar – e na afeição natural que os pais sentem pelos
filhos. Do amor pelos filhos se desenvolve um sentimento de atração mutua entre
os seres humanos, que se percebem como semelhantes e são compelidos a se
ajudarem mutuamente. (FRATESCHI, 2008, p. 19)
Nessa concepção
percebe-se, portanto, que a procriação desenvolve um papel fundamental para o
surgimento da sociedade a partir do laço que une primeiramente o homem à
mulher. Dessa união primeira, que tem como conseqüência o surgimento de novos
indivíduos, deriva a preocupação de um para com outro, que se expressa, em
princípio, na preocupação dos pais para com os filhos, enquanto esses se
encontram sob a tutela daqueles. É justamente da generalização dessa concepção
que vai derivar a teoria da sociabilidade natural humana, na qual estará
implícita a noção de que não escapa ao homem a tarefa de proteger e ajudar seus
semelhantes, conforme refere a autora.
Na mesma linha do pensamento estóico Yara apresenta também o pensamento
do romano Cícero que, igualmente, reconhece a união entre o homem e a mulher
como fruto do instinto natural que instiga à procriação e preservação. A autora
refere que na base da sociedade prevista por Cícero estava a razão e a linguagem que – favorecendo a comunicação – tornou possível a
criação da sociedade. Observa-se, deste modo, que Cícero está cogitando uma
sociedade a partir do relacionamento entre os indivíduos, que se dá, por
excelência, por via da comunicação, sob a égide da linguagem. É a partir dessa
que os homens unidos em sociedade vão criar leis e outros mecanismos normativos
para a regulamentação e ordenamento da vida social. Yara enfatiza, portanto, no
pensamento político tradicional um trio (Aristóteles, os estóicos e Cícero) que
vai comunga basicamente dos mesmos princípios em si tratando do surgimento da
sociedade, aos quais Hobbes não hesita em combater.
Para fundamentar o zoon politikon,
Aristóteles, segundo a autora, traça um percurso que se inicia a partir do
instinto natural que instiga o homem e a mulher a se unirem para a sua
preservação, bem como o suprimento de algumas de algumas necessidades. Dessa
união surge a família. Com a procriação, as famílias vão se multiplicando. O
aumento do numero de famílias traz necessidades que, para serem sanadas, faz-se
necessário haver uma união entre elas. Dessa união das famílias surge a aldeia
que, por necessidades, unindo-se umas às outras dão origem à cidade.
A cidade é a comunidade que engloba todas as demais e
é a comunidade mais elevada porque é autárquica. A polis é auto suficiente na
medida em que, diferentemente da família e da aldeia, provê toda as
necessidades de seus membros: formada a principio para preservar a vida,
subsiste para assegurar o bem viver. (FRATESCHI, 2008, p. 22)
O que define,
portanto, a cidade é o fato de que ela é autárquica e não tem nenhuma
necessidade. Pelo contrario, ela própria é o cenário onde todas as outras
necessidades se diluem. Suprindo todas as necessidades, ela promove, portanto,
o livre desenvolvimento humano, razão pela qual se diz que ela é autônoma. Ela
é o todo sem o qual as partes não podem existir, sendo, deste modo, dependentes
dela. Ela é por excelência o espaço de realização do homem. Ela é necessária
para que o homem não somente viva, mas viva bem, sendo esse o seu fim. “Se a natureza de uma coisa é o seu fim, a
natureza de um ser coincide com o seu bem: o melhor para um ser é ser ele
mesmo, todo ser tende naturalmente para o seu próprio bem, tornando-se aquilo
que ele é”. (FRATESCHI, 2008, p. 25).
A autora quer mostrar que na concepção do estagirita, o homem é conduzido
para a cidade porque somente nela ele pode viver bem. Em outras palavras,
Aristóteles está propondo que o homem assuma aquilo que ele é: um ser sociável
e que busca constantemente o seu bem e o dos outros. Por isso, quando
Aristóteles diz que o homem é um animal político, ele está querendo dizer, na
verdade, que ele tende naturalmente para o seu bem, que só pode ser alcançado
na cidade. De acordo com a autora, fazendo referência a Aristóteles, essa
aptidão para a vida na polis “independe
da razão, é inata, como também não depende das escolhas, não requer exercício,
instrução nem qualquer atividade previa”. (FRATESCHI, 2008, p. 25). A vida
na polis não depende da escolha, no entanto, o viver bem depende sim. É preciso
que o homem opte por isso, pois, o fato de o bem do homem residir na polis,
nada garante que ele venha a viver bem.
Feita essas considerações acerca da filosofia política aristotélica, no
que concerne à sociabilidade natural humana, a autora trata de mostrar agora a
contraposição, ou contestação de Hobbes a essa tese. Segundo ela
Para se contrapor à tese aristotélica da naturalidade
da cidade, Hobbes precisa antes negar que o homem é um animal político. A sua
intenção é, sobretudo desmentir que a capacidade para a vida política é uma
necessidade e independe da escolha humana (sem o que é impossível fundamentar a
teoria do contrato social. (FRATESCHI, 2008, p. 27)
A desmitificação da sociabilidade natural do homem, parte do principio de
que, no contexto do pensamento hobesiano, a vontade é o pressuposto básico que,
seguida de disciplina, conduz o homem para a sociedade. Pretende-se mostrar,
portanto, que ninguém nasce apto para a vida social, mas adquiri-se essa
aptidão a partir de uma escolha na qual está implícita uma renúncia parcial de
alguns direitos naturais, renúncias essas tão importantes para a vida em sociedade
de modo que, sem elas, a sociedade não seria possível. A autora refere que o
que torna inaceitável para Hobbes a tese da sociabilidade natural dos homens, é
o fato do estagirita derivá-la apenas das necessidades naturais pelas quais os
homens se reúnem a fim de supri-las. Para Hobbes essas reuniões se tornam
insignificantes para o advento da sociedade na medida em que carecem de uma
instituição comum e superior capaz de obrigar o cumprimento de qualquer acordo
que nessas reuniões vier a acontecer. “O
traço distintivo desta (a sociedade) é a obrigação: para que a sociedade exista
é preciso que haja um poder comum capaz de obrigar o cumprimento das leis de
natureza e dos pactos” (FRATESCHI, 2008, p. 28). O ápice dessa crítica
operada pelo pensamento hobesiano, segundo a autora, é a apresentação do princípio do benéfico próprio, razão
pela qual o homem é instigado a buscar primeiramente o que é o julga ser um bem
para si. Somente depois da certeza da sua preservação é que ele toma parte na
preocupação com os outros. Desse modo, enquanto
Aristóteles conclui pela naturalidade da cidade,
porque identifica a associação a um impulso natural que vai à direção da
realização da natureza humana que é política [...] Hobbes considera a natureza
humana compatível tanto com a opção por criar a sociedade quanto com a opção
por estabelecer dominação ou declarar guerra, isso porque o impulso natural do
homem não visa à vida social. (FRATESCHI, 2008, P. 30)
Esse princípio
se ergue, sobretudo, em, detrimento do zoon politikon, que na visão de Hobbes,
carece de sustentáculo e fundamentação.
Como tal, o principio do benéfico
próprio é tratado melhor no segundo item deste primeiro capítulo, onde a
autora corrobora a idéia de que a natureza não leva o homem a procurar a
companhia dos outros, a não ser por causa de proveitos que dela espera alcançar.
O desenvolvimento dessa reflexão faz perceber que ela (a reflexão) “vai contrapor-se à teoria do amor natural
sustentada por Cícero” (FRATESCHI, 2008, p. 32). De acordo com Yara, é
possível perceber que em Cícero o homem tende naturalmente a amar os outros e
disso, segundo ela, se origina a virtude e a justiça. Essa teoria ciceriana fundamenta-se
com mais eficácia na conjeturação do amor paterno, isto é, no amor que os pais
sentem pelos filhos, de onde emanam os laços sociais. Essa concepção afasta, destarte,
a hipótese de que os homens se unem por interesse.
Para combater essa idéia, Hobbes, segundo a autora apresenta dois
argumentos para mostra que, de fato, o que leva os homens a se unirem é sim o
interesse. No primeiro argumento lê-se: “se
um homem amasse outro por natureza, não haveria razão que explicasse porque não
amamos igualmente todos os homens, ao passo que é um fato amarmos mais a uns do
que outros”. (FRATESCHI, 2008, p. 33). Já no segundo, ele afirma que “freqüentamos mais aqueles cuja companhia
nos confere honra e proveito” (FRATESCHI, 2008, p. 33). Desses dois
argumentos, o que mais importa e que mais chama a atenção da autora é o
seguindo. Para constatar a veracidade desse argumento, ela recorre ao uso de
dois conceitos, a saber, natureza e ocaso, os quais se contrapõem um ao
outro. No plano do primeiro, a autora demonstra que aquilo que acontece na
natureza não, decorre de uma escolha, ao passo que “aquilo que ocorre por acaso, é objeto de uma escolha feita no contexto
de uma determinada circunstancia tendo em vista alguns benefícios”. (FRATESCHI,
2008, p. 34).
Outra tese aristotélica refutada por Hobbes é a da amizade perfeita, segundo a qual, os homens podem se unir na medida
em que um visa fazer o bem a outro. Para contra-versar essa ideia, Hobbes, de
acordo com a autora, vai mostrar que “toda
associação serve ao ganho ou gloria, de tal modo que os homens se reúnem não
por amor ao próximo, mas por amor a si mesmo” (FRATESCHI, 2008, p. 37).
Desse modo, pretende-se demonstrar que “o
homem é auto-interessado e age primeiramente em função de seu próprio beneficio
e que toda associação é contraída na medida em que o outro se apresenta como um
meio para a utilidade ou prazer”. (FRATESCHI, 2008, p. 38). Percebe-se,
portanto, que o principal télos do
homem é a própria aquisição de benefício para si. Entretanto, essa meta só se
torna passível de alcance, na medida em que os demais homens se apresentam como
meio que, mediante a associação, propiciam essa teleologia, caracterizada pela
busca constante de felicitações individuais.
No terceiro e ultimo item intitulado “A
origem da sociedade civil”, a autora refere que
Após mostra que a causa de toda a associação é a busca
de benefício próprio e que esse beneficio consiste em honras ou vantagens,
Hobbes está pronto para dar o seu próximo passo e concluir que a união dos
homens na sociedade civil respeita o mesmo raciocínio. (FRATESCHI, 2008,
p. 38)
O ponto de
partida para a demonstração da semelhança que há entre as associações e o início
da sociedade civil é a negação de que esta provenha de certa disposição natural
do homem para a vida social, da amizade, ou do amor que os homens sentem uns
pelos outros.
A origem, ou razão do surgimento da sociedade seria, portanto, o “medo generalizado que os homens sentem no
estado de natureza” (FRATESCHI, 2008, p. 39). É desse medo da selvageria e
barbárie que surge a necessidade dos pactos, o que, conseqüentemente, marca a
passagem do estado de natureza para o estado de sociedade. A queda definitiva
do zoon politikon, do ponto de vista
hobesiano, se dá, especialmente, a partir de dois argumentos apresentado pela
autora. O primeiro é o de que “os homens
tem um propensão a se ferirem” (FRATESCHI, 2008, p. 39) e o segundo “o direito natural é um direito ilimitado de
todas as coisas” (FRATESCHI, 2008, p. 39). Desse modo, Hobbes, segundo a
autora, prova que realmente o estado de natureza é um puro estado de guerra.
Em suma, percebeu-se que o rompimento de Hobbes com a tradição se deu em
dois momentos: primeiro, a substituição do zoon
politikon pelo principio do benéfico
próprio, e, segundo, a afirmação de que a sociedade é meio e não fim.
REFERÊNICIA
FRATESCHI, Yara. A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas: UNICAMP, 2008.
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