AS GRANDES LEIS DE ESTRUTURA
Depois de ter vastamente refletido no
capítulo precedente sobre a questão do método em ciências humanas, fazendo um
paralelo com o das ciências físico-químicas, onde evidenciou que o método de
ambas não é, nem pode se o mesmo, em razão de seus objetos de estudos,
Goldmann, não obstante, parte agora para outra temática cuja reflexão geral
circular em torno da questão referente às grandes leis de estruturas, tema
deste terceiro capítulo. Em princípio, nota-se que o grande objetivo do autor consiste
na demonstração, ou ainda, definição de três pontos relevantes ao entendimento
do tema proposto, a saber, determinismo
econômico, função histórica das classes sociais e consciência possível.
Inicialmente o autor retoma problemas
referentes às duas ciências (humanas e físico-químicas), mas somente no que diz
respeito ao modelo, para mostrar que:
“A deformação científica não começa
apenas quando se tenta aplicar ao estudo dessas comunidades (humanas) métodos
emprestados das ciências físico-químicas, já se encontra no fato de se
considerar essas comunidades como objeto de estudo”. (GOLDMANN, 1978, p. 71).
Ou seja, ao problema de tomar emprestado o método das
ciências físico-químicas para aplicá-lo no estudo da sociedade humana, soma-se
mais um que consiste em certa transformação da comunidade em objeto de estudo.
Do ponto de vista do autor, o objetivo do cientista social não repousa na busca
por leis gerais – tal como se dá nas ciências físico-químicas –, mas
simplesmente na compreensão e explicação dos fatos sociais. Aqui cabe ressaltar
que o autor chama a atenção para mostra que, não obstante, inexiste a necessidade
de renuncia da objetividade do método. O que mais importa aqui é justamente
saber qual método permite compreender melhor a realidade, uma vez que ela está
em constante mutação, ou em eterna dinâmica, onde nada permanece, mas tudo muda
de acordo com as necessidades e necessariamente.
Na primeira subdivisão das três que
estruturam o capítulo, o objetivo específico do autor consiste em demonstrar precisamente
a maneira pela qual os fatores sociais são fortemente influenciados pelo determinismo
econômico. Paulatinamente, ele vai mostrando como se dá esse processo. Para
ilustrar melhor essa influência, Goldmann mostra que, de fato, há sim uma
determinada preponderância dos fatores econômicos ao afirmar que
“Os homens são constituídos de modo
que para amar, pensar ou crer, devem viver, nutrir-se e vestir-se [...] é
preciso admitir que para a enorme maioria do gênero humano, a atividade
econômica sempre teve uma importância capital para a maneira de sentir e de
pensar”. (GOLDMANN, 1978, p 74-75).
É, por conseguinte, visivelmente clara e objetiva a
percepção da sobreposição da atividade econômica incidindo diretamente sobre o
próprio modo de pensar.
Outro fator importante que o autor assinala
diz respeito ao fato de que no âmbito social, por exemplo, algumas coisas
aparecem como que determinadas. Isso se daria, principalmente, pelo fato de
haver certa influência mútua entre as coisas, onde uma determinaria a outra.
Assim ao citar o ilustre Marx quando diz que “a existência social determina a consciência”, ele quer mostrar
justamente a interação que há entre o homem e o mundo no contexto de uma
reflexão dialética, onde o homem, dotado de matéria, (ou a ação humana) é o
elemento principal da história. Ou seja, são exatamente as condições de vida
material no seio da sociedade que faz com que o homem tome conhecimento daquilo
que ele, de fato, é. Notemos que anteriormente ele diz que
“O homem é um ser vivo e consciente,
situado no mundo ambiente de realidades econômicas, sociais e políticas, intelectuais,
religiosas etc. sofre a ação global do mundo e por sua vez age sobre ele. É o
que chamamos de relação dialética”. (GOLDMANN, 1978, p 73).
Ora, se a afirmação de Marx é verdadeira,
ela se deve, de maneira especial, a esse movimento dialético onde o homem
agindo sobre o mundo transforma a sua própria ação em uma espécie de espelho,
no qual ele se vê e se reconhece. Nisto, toma conhecimento daquilo que lhe faz
ser o que na verdade é: senhor da ação consciente, construtor e transformador
do mundo, ao mesmo tempo em que é transformado e determinado por ele. Em uma
passagem do capítulo precedente, Goldmann refere que “o conhecimento que um ser tem de si não é ciência, mas consciência”.
Outro ponto proeminente neste capitulo, a
que o acentua, diz respeito à historicidade dos acontecimentos, no sentido de
que tudo se dá em um determinado contexto ou época histórica. Aqui a
preocupação dele reside, sobretudo, no esforço por demonstrar o teor ideológico
das crenças, oposições, convicções etc. desses contextos, ou épocas. Quer isso
dizer que há toda uma Gama de fatores externos ao homem que a todo o momento estão
propensas a lhe influenciar. Percebe-se, desse modo, que já há todo um aparato
exterior que predispõe o homem e o ambiente ao qual ele integra para a recepção
da influência que atinge, sobretudo, e de maneira mais prejudicial (diga-se de
passagem) o seu modo de pensa, seu comportamento e, por conseguinte, sua ação.
Todavia, Goldmann também mostra que, embora exista toda uma diversidade de
influências, somente algumas dessas influências vão realmente influenciar. Aqui
se levanta, a propósito do autor, uma problemática que consiste justamente em
saber “por que o homem sofre determinadas
influências e isso numa dada época de sua história ou de sua vida”. (GOLDMANN,
1978, p. 77). A pergunta que aqui pode ser levantada é: onde encontrar as
causas ou razões de tal eventualidade? A reposta de Goldmann seria a seguinte:
“é, pois na estrutura econômica, social e
psíquica do grupo que sofreu a influência que é preciso encontrar suas
principais causas [...]. (GOLDMANN, 1978, p 78).
Evidentemente, percebe-se que a fonte das
influências não é una, mas diversificada, como no caso acima, onde ela se
estrutura sobre o tripé econômico, social e psíquico do indivíduo, ou grupo no qual ela se manifestará.
No item dois, que versa sobre a função
histórica das classes sociais, o autor faz uma análise da sociedade,
visualizando-a a partir da ótica do trabalho. Aqui ele mostra dois critérios
relevantes, do ponto de vista materialista, que tornam possível uma definição
mais consistente das classes sociais. Diz ele:
“Os estudos materialistas mostram
que, para definir classe, é preciso em todo caso levar em conta dois fatores
que dependem um do outro: a função na produção e as relações sociais com as
outras classes”. (GOLDMANN, 1978, p 86).
A função na produção, aqui, nada mais é que a posição que o
individuo ocupa na escala do trabalho. É importante lembrar que dentro do
ambiente de trabalho há toda uma hierarquia na divisão das funções que, de
algum modo, reflete a divisão da sociedade. Isso significa que na escala do
trabalho, ou ainda, na empresa propriamente dita, onde o individuo atua, ele
sempre vai está numa função compatível com a classe que ele integra no seio da
sociedade. Se o individuo é pobre e tem poucos conhecimentos, qual seja baixa
escolaridade, e faz parte de uma classe X, é demasiado rara as possibilidades
dele exercer uma função que requer muito conhecimento. Uma função com tais
exigências seria aqui prerrogativas de indivíduos de uma classe Y,
economicamente privilegiados no ambiente social em que vivem. É, portanto,
preciso considerar que o autor realmente está certo quando coloca a função na
produção como um critério fundamental para a definição de classe social, isto
é, dizer quem, ou o que, ela em verdade é. E aqui entra o segundo critério que
aborda o relacionamento dessas classes entre si. Poder-se-ia cogitar, em
princípio, a luta de classes como fator importante para explicar esse
relacionamento. Essa luta seria justamente o esforço que a classe privilegiada
faz para não perder seus privilégios, e, em contrapartida, o que a classe
desprivilegiada faz para tronar-se privilegiada. Ou seja, esse relacionamento
seria tenso, uma vez que se daria em um ambiente de forças. Nesse contexto, o relacionamento
da classe X com a classe Y, onde X é privilegiada e Y desprivilegiada, seria um
relacionamento vertical. É justamente essa verticalidade que introduz a noção
de força, onde se desencadeia o processo de luta.
Se tomarmos como proposição verdadeira o
dito comum de que “a união faz a força”, será preciso referir que a união dos
membros de uma classe seria, indubitavelmente, relevante a aquisição dos seus
reais objetivos. Nesse sentido o relacionamento interno dos membros de uma
determinada classe é horizontal, o que, sem sombra de dúvida, contribui para o
fortalecimento da mesma, atribuindo-lhe, sobretudo, consistência e solidez no
processo de luta.
A esses dois critérios (para a definição da
classe), o autor adiciona um terceiro, denominado de infra-estrutura das visões do mundo, o qual é constituído
justamente pelas classes sociais. Essas visões do mundo, entretanto, não estão
dadas, precisam, portanto, serem construídas, e essa construção se da,
sobretudo, a partir das relações concretas dos homens entre si, e com o meio
social. Essas visões do mundo são justamente aquilo que o autor vai chamar de consciência possível, assunto do
terceiro ponto. Goldmann ainda faz uma distinção entre ideologia e visão do
mundo. O que, portanto, distinguiria uma da outra, seria justamente o caráter
parcial “deformador das primeiras, e
total das segundas”.
No terceiro e ultimo ponto desse terceiro
capítulo, Goldmann faz uma abordagem daquele que, segundo ele, constitui o “parágrafo mais importante e também o mais
delicado deste livro: o que trata da consciência possível”. (GOLDMANN,
1978, p 94). Para tanto, ele parte do principio de que
“O conceito fundamental em ciências
históricas e sociais é o de consciência possível, que tentaremos examinar a
partir dos trabalhos de Max Weber e dos marxistas”. (GOLDMANN, 1978, p 94).
Na primeira vertente, a weberiana, o autor
apresenta a maneira pela qual, segundo Weber, se pode alcançar a compreensão da
realidade. Essa compreensão se dá, maiormente, por meio de fatores de natureza
material. Exemplos desses fatores são “capitalismo, homu economicus e protestantismo”. Por capitalismo (é sabido)
entende-se aquele sistema social e econômico que subordina o trabalho ao
capital, objetivando, sobretudo, a busca do lucro; o homem econômico é aquele
que incansavelmente e racionalmente busca atingir seus fins econômicos,
conforme o autor.
Goldmann mostra também a existência de
outra consciência que ele vai denominar de consciência
real. Essa consciência “resulta de
múltiplos obstáculo e desvios que os diferentes fatores da realidade empírica
opõem e infligem à realização dessa consciência possível”. (GOLDMANN, 1978,
p 99). Aqui ele refere que a compreensão da realidade se torna mais eficiente
na medida em que se separa a consciência possível de uma classe, de sua
consciência real.
A consciência possível liga-se ao plano
ideal, ao mesmo tempo em que (não se prendendo ao ideal) também se manifesta no
contexto de uma dada realidade. Já a consciência real desvincula-se totalmente
do ideal para construir sua essência no campo da realidade concreta, objetiva e
material. É justamente a ausência de idealidade que constitui o distintivo
essencial entre consciência real e consciência possível.
REFERÊNCIA
GOLDMANN, Lucien. Ciências humanas e filosofia: Que a Sociologia?. Trad. Lupe C. Garaude;
José A. Giannotti. 6 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978. P. 71-103.
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