EXPRESSÃO E FORMA
Não obstante às discussões
precedentes que tomaram a maior parte do livro e que versaram sobre as diversas
querelas entre as ciências humanas e as físico-químicas; entre consciência
possível e consciência real; entre ciência e consciência, entre subjetividade e
objetividade, etc., neste quarto capítulo o autor aborda como eixo de reflexão
duas posições literárias, indubitavelmente relevantes à compreensão dos
acontecimentos históricos em geral, expressos em suas diferentes manifestações
e manifestados a partir de suas diversificadas vertentes. São elas: a lógica analítica e a lógica emanatista, que se contrapunham
reciprocamente. A lógica analítica que compreende o empirismo e o racionalismo
parte do principio de que “a única realidade
objetiva consiste no fato isolado, aceito pelo empirismo enquanto tal e julgado
pela história racionalista à luz dos valores universais da razão.” (Goldmann, 1978,
p 104).
Percebe-se,
portanto, que na lógica analítica o que dá consistência e objetividade à
realidade é justamente aquilo que se conclui dos fatos analisado isoladamente. Quanto
a isso, o autor faz uma breve observação ao que poder-se-ia identificar como
uma possível falha da analítica. Diz ele: “tanto
num caso como no outro, porem, permanece-se no plano do comportamento exterior”
(Goldmann, 1978, p 104). Ou seja, empirismo e racionalismo, pautados na realidade
propriamente dita, entendida enquanto coisa já constituída e dada, deleitando
sua investigação no campo material, ou ainda naquilo que é exterior ao
indivíduo constituinte de um determinado grupo, não conseguindo transpor essa
barreira, encontraria seu limite justamente nisso e, nesse ponto, residiria,
portanto, a sua fragilidade.
O conceito de
causalidade, neste contexto, pode resgatar e trazer para esta reflexão aquela cogitação
anterior na qual o autor já mostrara claramente a inconveniência da aplicação
do método das ciências físico-químicas no estudo das ciências humanas.
Causalidade é um conceito que encontra seu sentido e sua razão de ser somente enquanto
entendido como parte inextrincável da natureza, onde todos os fenômenos ditos
manifestos são regidos pelo duplo princípio de causa e efeito. Desse modo, a
causalidade já não pode ser tida como lei, ou fonte de explicação para os fatos
sociais, onde, evidentemente, uma coisa não necessariamente causa outra, mas,
ao contrário, mantém com ela um conjunto de relações que desembocam, conseqüentemente,
na mútua influência e na ação recíproca que (vice-versa) uma exerce sobre a
outra. Evidentemente, o principio da causalidade como lei regente dos fatos
sociais não existe. O que existe é uma interação social que, em caráter linear,
liga o indivíduo ao meio social, ou seja, liga a parte ao todo. Ora, é precisamente
pelo fato de deter-se à realidade material e não conceber o caráter
supra-individual, ou metafísico e espiritual do indivíduo que o emanatismo critica
a analítica.
“A concepção emanatista da história implica em duas idéias
que, a nosso ver, devem ser estudadas separadamente. A primeira é que a maior
parte das manifestações humanas não pode compreender-se a não ser como
expressão duma realidade mais profunda, que os emanatistas concebem, o mais das
vezes, como supra-individual (espírito do povo entre os românticos, espírito
objetivo em Hegel, diversas almas: antiga, árabe, faustiana em Spengler)”.
(Goldmann, 1978, p 105).
Portanto, o que
torna a analítica inaceitável aos olhos do emanatismo não é somente o fato dela
separa os fatos, ou comportamentos do indivíduo para estudá-lo isoladamente,
bem como a possível aplicação da lei da causalidade na explicação dos fenômenos
sociais, mas, sobretudo o fato de que ela não reconhece no individuo a
existência de uma entidade imaterial e, destarte, metafísica superior ao
individuo. O distintivo ontológico – aquilo que faz com que a razão de ser de uma não seja igual a razão de ser da
outra – entre a analítica e o emanatismo reside, conseqüentemente, no fato de
que enquanto uma é de caráter material, a outra é de caráter espiritual. Em
contrapartida, a analítica, igualmente, não se eximiu da critica ao emanatismo.
“Os partidários de uma história analítica sempre criticaram
nos historiadores emanatistas, não apenas certo diletantismo, no que
freqüentemente tem razão, mas ainda e, sobretudo o caráter especulativo e
metafísico da maior parte de suas consciências supra-individuais (espírito do
povo, espírito objetivo, alma duma civilização etc.)” (Goldmann, 1978, p 105).
Embora tenha, em
muito, contribuído positivamente para a compreensão da história, segundo o
autor, “cada uma dessas atitudes aparece
ainda insuficiente para construir o fundamento geral das ciências humanas”.
(Goldmann, 1978, p 105).
O problema que
nesta ocasião vem à tona consiste em saber se há ou não a possibilidade de
síntese entre essas duas correntes.
“estas nos parece oferecer o
materialismo dialético, pois ao mesmo tempo nega a existência de toda a
entidade metafísica e especulativa, considerando, todavia, a vida espiritual
como expressão duma realidade humana mais profunda e mais vasta”. (Goldmann, 1978, p 105).
Neste caso, o espírito seria apenas parte
da realidade material, talvez a parte mais complexa. Não admitindo a existência
da consciência supra-individual, o materialismo dialético reconhece a
consciência individual como fundamento relevante da consciência de classe na
medida em que essa nada mais é que o conjunto daquelas quando se encontram
unidas ou agrupadas.
[...] idéia
que o materialismo dialético aceita inteiramente e pela qual se contrapõe de
maneira radical a todo pensamento analítico. Ele não acredita que o conjunto
das consciências individuais seja a soma aritmética de unidades autônomas e
independentes, pensando, ao contrário, que cada elemento só pode ser
compreendido no conjunto de suas relações com os outros, isto é, em relação ao
todo, pela ação que opera sobre esse todo e a influência que esse exerce nele.” (Goldmann, 1978, p 106).
Nesta concepção, é
visivelmente passível de percepção a opinião materialista dialética que concebe
o individuo como uma espécie de produto, ou subproduto do meio. Sendo produto
do meio, ele só pode ser entendido enquanto estiver unido ao seu princípio motriz,
o meio social. Esse torna-se aqui uma espécie de espelho no qual o indivíduo se
olhando, toma consciência de si. Aqui, sua existência está atrelada ao grupo,
ou classe a que ele integra. Nessas classes, ele se encontra possibilitado de lança
um olhar para o mundo. Essa é, por conseguinte, uma das razões pelas quais o
autor diz que “as classes sociais
constituem a infra-estrutura das visões do mundo” (Goldmann, 1978, p 106).
Ou seja, elas formam a base de todos os fatos sociais que ocorrem. Somente
nelas eles encontram a sua forma de expressão e manifestação, bem como a sua
realização. É por essa razão que o materialismo dialético se contrapõe ao
pensamento analítico.
Um aspecto
importante de ser notado, de acordo com Goldmann, é a sobreposição do
materialismo histórico que aqui entra em cena.
“É de se notar a superioridade do
materialismo histórico que pode estudar as manifestações intelectuais e
artísticas, não do exterior, mas em seu conteúdo como expressão duma
consciência coletiva, sem por isso precisar recorrer a hipótese metafísica e
especulativa tais como espírito de um povo ou alma duma civilização” (Goldmann,
1978, p 106).
As criações da arte
e da intelectualidade são duas maneiras distintas por meio das quais a
consciência coletiva pode ser expressa. No entanto, elas só conseguem
expressá-la na medida em que os desejos, anseios e preferências pessoais
daqueles que as fizeram ficam de lado para dar lugar a tudo o que é comum aos
diferentes membros da classe ou grupo. Goldmann chama a atenção para esse ponto
principalmente porque considera que “toda
manifestação é obra de seu autor individual e expressa seu pensamento e sua
maneira de sentir” (Goldmann, 1978, p 106). Na representação daquilo que é
coletivo, há a necessidade do individuo deixar de lado tudo o que é particular.
Do contrário, o seu pensamento, ou sua ação, não representarão a coletividade,
mas a sua individualidade, ou a relação dessa com aquela.
Outro ponto
importante de ser notado é justamente a conotação, ou articulação deste quarto
capitulo com as demais partes do livro e, de modo especial, com o terceiro
capítulo que discorre, alem de outras, da questão referente à consciência
possível. Não obstante, há também a consciência real. De acordo com o autor,
essas duas consciências se constituem como planos a partir dos quais a
sociologia do espírito pode estudar as visões do mundo, ou seja, os fatos
sociais. Por sociologia do espírito aqui deve se entender o estudo da realidade
em sua totalidade naquilo que de mais profundo ela tem.
“[...] o numero de visões do mundo
possíveis é mais reduzido que as situações em que se encontram e se encontram
as diferentes classes sociais no curso da história. Quase todas as grandes
visões que conhecemos exprimem situações econômicas e sociais diferentes e em
vários pontos, contraditórias”.
(Goldmann, 1978,p 109).
Essas afirmações ratificam
aquela idéia já discutida nos capítulos anteriores quando vem à tona a
cogitação de que os fatores econômicos influenciam a maneira de pensar e de agir.
O autor está certo
do que diz e sabe o que fala; suas idéias estão unidas de modo a não haver
contradição, ou se houver é demasiado pouca. Sobre isso far-se-á outro
trabalho. Pois, a continuidade neste extrapolaria os limites e natureza deste.
REFERÊNCIA
GOLDMANN,
Lucien. Ciências humanas e filosofia: Que a Sociologia?. Trad. Lupe C. Garaude;
José A. Giannotti. 6 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1978. P. 104-110.
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