quinta-feira, 14 de julho de 2011

RESENHA DO TEXTO "OBRA DE ARTE E FILOSOFIA" DE MARILENA CHAUÍ - IN: "ARTEPENSAMENTO"


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CHAUÍ, Marilena: Obra de arte e Filosofia. In NOVAES, Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.
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Fábio Coimbra
Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão
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O texto em questão – intitulado “Obra de arte e Filosofia” de autoria da filósofa brasileira Marilena Chauí – trata-se de uma reflexão acerca do pensamento marleau-pontyano que, em linhas gerais, discorre sobre a relação entre arte e filosofia. Cumpre ressaltar, em princípio, que esse texto constitui apenas parte de uma obra mais densa, um livro, cujo título se lê “Artepensamento”. Sob a organização de Adalto Novaes, essa obra vem à tona como compilação textos filosóficos de diversos autores, dos quais se resenha aqui aquele que discorre sobre Merleau-Ponty.
Quanto à estrutura, o texto a ser resenhado compõe-se de três partes específicas, respectivamente sub-intituladas (na primeira) “Desfazendo as amarras da tradição”; (na segunda) “A obra interminável” e (na terceira) “A obra de arte como filosofia selvagem”.
No que tange á primeiras das subdivisões, a autora, considerando o pensamento marleau-pontyano, parte do princípio de que “o ser é o que exige de nós criação, para que dele tenhamos experiência” [1], o que remete a uma interpretação de que o ser não está dado, mas surge de um processo de construção. Esse processo de construção, no entanto, compete exclusivamente ao sujeito, em cujas capacidades constam também aquela de construir o ainda não construído. Dessa capacidade de criação do sujeito enquanto criador é que resulta, portanto, o mundo construído como construção do sujeito. Somente depois desse momento inicial de criação é que a experiência se torna possível. Pois, ninguém experiencia o não-ser, mesmo porque ele não é. A experiência sempre se dá a partir de algo que já é, e jamais o contrário. Daí a necessidade de criação, que, neste contexto, vem a lume com condição necessária para a existência da experiência.
Ora, aqui se está, portanto, diante de uma concepção que insinua haver certo entrelaçamento entre Arte e Filosofia. Vejamos: a arte, como é sabido, tem como prerrogativa primeira, a capacidade de criar, tanto a partir do que já está posto no mundo, quanto a partir da imaginação do artista. A filosofia, por sua vez, é aquilo que dispõe o ser para a experiência com aquilo que pela arte é criado. Nesta perspectiva, o sentido das coisas cridas por uma residiria principalmente na atividade da outra. É como se uma fornecesse o elemento essencial a partir do qual a outra – ao experienciá-lo – encontrasse o sentido de sua existência, a sua razão de ser. É desse modo, portanto, que se concebe esse entrecruzamento entre Arte e Filosofia. E, conforme referido, a impressão que se tem desse entrecruzamento é a de que ele se constitui como algo necessário, donde se conclui pela sua impossibilidade de separação.
É nesse sentido, portanto, que a autora refere que “filosofia e artes, juntas, não são fabricações arbitrarias ao universo da cultura, mas contato com o ser justamente, enquanto criação” [2]. Desse modo, ela faz a seguinte interrogação

Porque criação? [e responde] porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte no qual o ser vem a ser: Para que o ser do visível venha a visibilidade, solicita o trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha a expressão, pede o trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha a visibilidade, exige o trabalho do filósofo.[3]     


Chauí reforça, portanto, a idéia de que somente depois do ato criador é que a experiência se torna possível. Desse modo, constata-se, então, o atrelamento entre Arte e Filosofia. Essa constatação reside, por conseguinte, no fato de que enquanto o artista cria o objeto, ou o ser – entendido aqui como aquilo que é, ou passa a ser –, o filósofo, por sua vez, é aquele que dá ao entendimento o ser ou a coisa ora criada. É como se experiência e criação caminhassem paralelamente. Nesse aspecto a interrogação da autora é a seguinte: “que laço amarra num sentido único experiência, criação, origem e ser?[4]. Aqui se entra, conseqüentemente, naquela reflexão, a qual a autora vai dedicar uma parte considerável do texto: trata-se da reflexão acerca do ser bruto e do espírito selvagem. Em princípio, a percepção que se tem é a de que ambos dizem respeito a um estado de barbárie. Entretanto, o desenvolver da reflexão vai mostra o contrário. De que os termos, bruto e selvagem (no contexto em que estão sendo usados) designam uma atividade pautada na força isso é bem verdade. O que não é – e nem pode ser tido como verdadeiro – é a pretensão de entender essa força como se fosse aquela usada na barbárie.
Para esclarecer melhor a conotação desses termos, a autora refere que o espírito selvagem 

É o ser de práxis que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim “eu quero” “eu posso”, mas que não saberia como concretizar isto que quer e pode senão querendo e podendo, isto é, agindo. [...]. O espírito selvagem é a atividade nascida de uma força – “eu quero, “eu posso” – e de uma carência ou lacuna que exige preenchimento significativo.[5] (p. 468.).

O espírito selvagem é, destarte, aquela ação necessária a partir da qual um espaço é preenchido, onde algo que ainda não era vem a ser, e algo que já era deixa de ser. O vazio que deixa de ser ausência para ser presença, aparece aqui como cenário primordial para a realização da experiência dado o seu preenchimento. Anteriormente foi dito que a experiência se dá sempre a partir de algo, ao qual foi chamado de ser, entendido enquanto criação. Esse ser criação é, justamente, aquilo que resulta da atividade do espírito selvagem, que age criando o que ainda não tinha sido criado. Nesta circunstância, a autora afirma que “o que torna possível a experiência é a existência de uma falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas, pelo sujeito com a intenção de significar alguma coisa precisa e determinada” [6].
Ora, é exatamente diante da lacuna que está para ser preenchida, que se pode entender com perspicácia o artista enquanto criador. Neste sentido, Marilena Chauí, se reportando a Senso e não-senso, refere que “o criador não se contenta em ser um animal culto, mas vai à origem da cultura para fundá-la novamente[7]. Logo, pode-se dizer que o trabalho pelo qual o artista cria as coisas exige seu contato continuo com a sua cultura. Desse modo, ao criar, ele recria-a de novo quando se volta para a origem dela. A criação é, por essa razão, a via condutora à experiência.
A arte enquanto fenômeno criador exige, acima de tudo, a renúncia do sujeito de si mesmo, afim de que ele se veja e se reconheça como tal. Ou seja, o sujeito ou o artista se reconhece como criador somente na medida em que ele é, ou se torna capaz, de sair de si mesmo. Nesse sair de si, ele exterioriza aquilo que nele mesmo está dado como interior. A criação passa a ser, portanto, a expressão daquilo que o artista pensa, ou imagina. Ou seja, é o reflexo de uma subjetividade que se objetiva e que, por isso mesmo, se dá a conhecer.
No que diz respeito ao ser bruto, a autora refere que


O ser bruto é o ser de indivisão, desconhecendo a separação entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo. [...]. Ser de indivisão, o ser bruto é o invisível que faz ver porque sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer por que sustenta por dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o pensável. [8]


O ser bruto é, portanto, um todo que jamais se desfaz em partes; é uma indissociabilidade de elementos, ou seres que se unem, ou que se co-penetram mutuamente. Ele é, em suma, aquela estrutura que de perceptível se tornou imperceptível para trazer à percepção aquilo que consta dentro de si. É como se ele desaparecesse sem, nem por isso, deixar de ser visto. Ele deixa de ser visto, justamente quando se volta para dentro de si mesmo. Ao retornara para a visibilidade, ele traz algo novo: aquilo que ele mesmo criou ao sair de si e que já estava dado dentro de si. “O ser bruto é a distância interna entre um visível e outro que é seu invisível”. [9] É o lapso de espaço-tempo que há entre “eu” e o meu “eu”, ou seja, entre “eu” enquanto ser exterior e o meu “eu” enquanto ser interior. É a estrada que leva de fora para dentro e traz de dentro para fora.
O ser bruto e o espírito selvagem são justamente aquelas condições essências, por meio das quais vai se dá o rompimento com a tradição. Nesse sentido, Chauí refere que 

Buscá-los é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e recomeçar a interrogação, interpelando, de um, lado, as obras filosóficas para nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua hora, mas por outro, lado, interpelando a obra de arte como abertura para aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver respondido. “A ciência manipula as coisas e se recusa a habitá-las.” [10]

Essa é, portanto, a crítica Merleua-pontyana feita a um modelo de ciência que falsifica as coisas e se esquiva delas. É preciso questionar, tanto a filosofia, quanto a arte. É justamente com essa proposta de crítica e questionamento que aparecem o ser bruto e o espírito selvagem. Segundo a autora “a tradição filosófico-científica e seu efeito principal – tecnologia como domínio instrumental dos constructos – é o abandono [...] do pensamento encarnado num corpo que pensa”.[11]
É como se o advento da técnica troucesse – alem do progresso, tal com se deu no início da modernidade – mecanismos capazes de substituir no homem a sua capacidade de raciocinar e pensar, transformando-o, talvez, num instrumento mecânico e não mais humano. É neste sentido que a ciência se torna manipuladora do ser: justamente quando ele fica submetido à ação dela e não se vê mais como ser criador, portador de uma subjetividade e com plenas capacidades de “criar” e “recriar” o mundo. 

Desfazer a tradição filosófica graças ao ensinamento da arte é jamais esquecer que o artista tem seu corpo como sentinela em vigília às portas do sensível e que cabe à filosofia recuperar a dignidade ontológica do sensível [...] é preciso abandonar o ser como coisa empírica, mas também como resultado da analise e da síntese intelectuais que o fazem posto pelo entendimento. [12]

Deve-se, portanto, procurar o afastamento dos extremos. Assim, se de um lado é preciso romper com a tradição filosófica, por outro é preciso ter o cuidado para não se cair no intelectualismo, evitando desse modo a possibilidade de se conceber o homem como produto do entendimento.
Na segunda parte do texto, Marilena Chauí discorre sobre a obra de arte, entendida enquanto algo interminável. Segundo ela refere, “a obra de arte não é efeito das condições dadas, mas resposta a elas, por isso é enraizamento e ultrapassamento, isto é, rigorosamente, criação radical. Se assim é, compreendemos porque a obra de arte é interminável” [13]. A obra de ate se torna interminável justamente porque as condições dadas – as quais ela aparece como resposta – constituem apenas um aspecto particular de uma realidade, que, por ser total, é mais ampla e, portanto, inesgotável. Como toda resposta a uma questão suscita novas questões que requerem novas respostas, num jogo dialético, logo, a obra de arte, enquanto resposta a uma determinada questão, nunca estará totalmente terminada. Será, pelo contrário, algo em constante construção. Desse modo, ela nunca se fecha, mas permanece sempre aberta diante de um mundo onde a única coisa que permanece é a mudança. 

O artista, como o filósofo, nunca está no centro de si mesmo, estão sempre fora de si. Rodeados pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem realizar e revelar pela obra. [...] sua obra é interminável porque nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nunca vemos a idéia, o sentido e a liberdade cara a cara. [14]

Neste sentido, sair de si é entrar no mundo para está em constante contato com ele numa perspectiva de construção e reconstrução do mesmo. Essa experiência de entrada no mundo é como que a iniciação ao mistério do próprio mundo. Esse mundo – que diz respeito à realidade em imparcial amplitude – é como que a síntese daquilo que ao ser se apresenta como diverso, numa multiplicidade infinita.
Na terceira (e ultima) parte do texto, a autora discorre sobre “a obra de arte como filosofia selvagem”. O ponto inicial dessa, é uma reflexão de Chauí sobre a pintura, onde ela refere que


A pintura é transubstanciação entre o corpo do pintor e corpo das coisas. Como isso é possível? É que a visão e o movimento são inseparáveis, embora diferentes: ver não é apropriar-se do mundo em imagens, mas aproximar-se das coisas, tê-las, mas à distância; mover-se não é realizar comandos que a alma envia ao corpo, mas o resultado imanente do amadurecimento de uma visão. (p. 482).

O que se propõe aqui é uma união entre o ver e o mover-se, embora o movimento apareça como posterior à visão. Como tal, ele é sempre fruto de um processo de maturação das imagens, ou visões que se tem do mundo. Desse modo, já não se pode mais conceber o movimento como fruto de uma ordem sobrenatural que é dada ao corpo, mas sim como resultante de um processo de experiência no qual o individuo experiencia as imagens que estão propostas no mundo. Nessa perspectiva, o corpo assume uma função importante enquanto elemento mediador entre o mundo e o próprio artista, por exemplo. “Nosso corpo, coisa sensível entre as coisas, é sensível para si. É ele que nos faz ver as coisas no lugar em que estão e segundo o desejo delas” [15]. A sensibilidade, aqui, se torna relevante pelo fato de que ela favorece ao artista sentir as coisas com mais profundidade. Como resultado dessa sensibilidade que o indivíduo possui perante as coisas tem-se, como resultado, a obra de arte. Nesse sentido, Chauí refere que

Pela primeira vez na história da filosofia, graças à obra de arte, descobrimos que a reflexão não é privilégio da consciência, nem essência da consciência, mas que esta recolhe uma reflexão mais antiga que ensina a refletir: A reflexão corporal. [16]

Há, portanto um reconhecimento do corpo como sendo anterior à consciência, bem como ao intelecto ou a razão. É desse modo que “as artes, como filosofia selvagem do sensível, desvendam as ilusões da razão ocidental como desejo de purificação intelectual do mundo”. [17]









[1] Cf. CHAUÍ, Marilena: Obra de arte e Filosofia. In NOVAES, Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia da Letras, s/d. P. 467.

[2] Cf. CHAUÍ, Marilena: Obra de arte e Filosofia. In NOVAES, Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia da Letras, s/d. P. 467
[3] Idem. P. 467.
[4] Idem. P. 468.
[5] Idem. P. 468.
[6] Idem. P. 468.
[7] Idem. P. 468.
[8] Idem. P. 468.
[9] Idem. P. 469.
[10] Idem. P. 470.
[11] Idem. P. 470.
[12] Idem. P. 471.
[13] Idem. P. 481.
[14] Idem. P. 481.
[15] Idem. P. 483.
[16] Idem. P. 483
[17] Idem. P. 485.

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