domingo, 26 de junho de 2011

FILOSOFIA E LITERATURA


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ENSAIO SOBRE FILOSOFIA E LITERATURA A PARTIR DA D’ A REPÚBLICA E DA POÉTICA
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FÁBIO COIMBRA[1]

Em uma época longínqua, aproximadamente dois mil e quinhentos anos atrás nascia aquela que viria a ser, até certa medida, a maior de todas as ramificações do saber que se constituiria como um todo a partir da junção das partes dispersas, para existir como um todo até a separação das partes, o que se deu com a divisão das ciências. Essa que, que pode ser concebida como a ciência mãe, chama-se Filosofia.
Derivada da junção de dois termos gregos, respectivamente, philos + sophia, em sua fórmula etimológica ela assume, portanto, a conotação amor pela sabedoria, sendo esse o seu significado genérico, mais comum e de maior alcance. Seu ilustre nascimento – que, até certo ponto, resulta de um processo de evolução da consciência que gradativamente instiga a evolução a vir a ser – deveu-se, antes de tudo, a fatores intrínsecos à própria constituição da natureza humana, quais sejam, a curiosidade, em outros termos, o desejo de saltar do conhecido ao desconhecido para, conhecendo no plano da racionalidade, construir o até então não construído, ou ainda, construir o novo a partir da desconstrução do “velho”, leia-se, as formas de construção de conhecimento que precederam a filosofia e que dominaram antes dela. Essas formas de que aqui se trata fazem referência a duas modalidades de conhecimento, a saber, o mito e a poesia que, fundindo-se, compuseram um todo designado literatura.
Antes do surgimento da filosofia, como é sabido, a forma de conhecimento predominante era a mitologia. O mito era, portanto, a fonte de explicação para a origem de tudo o que existe, como, por exemplo, o homem, os deuses, o “céu”, a terra, o cosmo etc. Um detalhe importante de ser assinalado diz respeito ao fato de que, em sua essência, o mito não quer detalhar como se deu o acontecimento das coisas que existem, mas sim mostrar que algum dia isso que existe, e que não existia, passou a existir. Ou seja, o mito, neste sentido, se constitui como uma forma de explicação que se vale da imaginação para descrever eventos, ou acontecimentos que ocorreram e cuja origem não pode ser presenciada por ninguém. É justamente com esse caráter imaginativo da mitologia que a filosofia, em princípio, vai se confrontar, dado que esta ultima irá propor como método para o alcance da verdade das coisas a razão em detrimento da imaginação, até então vigente.
Dado que a imaginação expressa a emoção, e que essa manifesta a subjetividade que, à sua vez, se constitui como um dos elementos fundamentais da poesia,  ela (imaginação) passa a ser, então, a ponte que liga o mito à poesia. Mito e poesia, portanto, como precedentes à filosofia, dominando o discurso, liderando o conhecimento e constituindo a literatura passam a ter uma relação mais próxima um do outro do que qualquer de deles com a filosofia. Ao contrário, a filosofia sob a forma de um discurso novo passa a ser, então, aquela com a qual a literatura – leia-se o mito e a poesia – vai travar um jogo de força pela disputa de um espaço onde os discursos tentam se impor, como num jogo de poder. Dado que a filosofia e a poesia passaram a ocupar o mesmo espaço, e que a tensão gerada a partir dai, sob alguma ótica, contribuira para uma manifestação da razão em graus mais elevados – como se tivesse ocorrido no homem um despertar para o verdadeiro conhecimento, ou seja, aquele que a partir de então não mais se pautaria na imaginação, mas sim na razão –, o enfraquecimento da explicação mitológica e poética para a origem das coisas fora gradativamente cedendo lugar ao conhecimento filosófico, o que resultou num progressivo sobressair da filosofia sobre a poesia. Ainda que a filosofia passasse à categoria de discurso vigente naquela época, mesmo assim, ela e literatura compartilhavam de um campo, o qual compartilham ainda hoje, aproximadamente dois mil e quinhentos anos depois. Esse campo é a linguagem propriamente dita, sem a qual não é possível haver nem filosofia e nem literatura. Se, por um lado, é preciso reconhecer o predomínio do discurso filosófico a partir de então, por outro, igualmente é preciso exaltar o mito e a poesia, ou seja, a literatura cujo engenho e magnitude consistem em ter sido a primeira forma de conhecimento a prover a necessidade e curiosidade natural do homem de saber do saberes das coisas.
Dado que a tradição filosófica não se inicia com a escrita propriamente dita, mas com a contemplação do mundo e da natureza, tal como faziam “os pré-socráticos, que não escreveram obras, mas apenas fragmentos”, pode-se, a título de hipótese, postular que a oralidade – objeto próprio das praticas literárias precedentes à filosofia – não deixava de ser, até certo ponto, objeto de uso também da filosofia, donde se deduz certa proximidade entre filosofia e literatura no que a isso diz respeito. Sendo assim, ainda é possível postular que o poeta, em princípio, utiliza muito mais a palavra do que o filosofo que para falar é preciso pensar, ou contemplar. Enquanto, o discurso do filósofo se restringe a certas particularidades do mundo, o do poeta, por sua vez, é muito mais amplo dado que busca abarcar esse mundo em sua totalidade, o que torna imprescindível o recurso da imaginação. Sendo assim, um elemento relevante, nesse contexto, se torna fundamental para a compreensão do alcance dos discursos. Esse elemento é a liberdade em posse da qual, a literatura se destaca em relação à filosofia, dado que o discurso do poeta é livre uma vez que decorre da imaginação que é livre por excelência. O mesmo não se pode dizer do discurso do filósofo que ao se dá ao trabalho da busca da verdade, passa a possuir a partir daí certo rigor. Sendo a busca da verdade, o, ou um, dos problemas centrais da filosofia, o filósofo passa a ser, então, um homem de ação. Essa ação, passa a ser, à sua vez, a base sobre a qual se estrutura o discurso do filósofo, donde se conclui que a liberdade escapa ao filósofo justamente porque o seu discurso está preso à sua ação, ao contrário da poesia. No filósofo, enquanto alguém que busca incansavelmente a verdade, não deve haver nenhuma contradição entre pensamento e prática. É justamente, essa busca pela verdade que faz com que o filósofo, ao se dispor ao filosofar, não seja livre dado que sua ação deve seguir seu pensamento.   
Como é sabido, Platão, é considerado o filosofo que expulsa os poetas da cidade, tal como se pode ver nitidamente em sua engenhosa obra “A República”. Entre os principais argumentos usados pelo filósofo, destacam-se três que se resumem da seguinte forma, a saber, primeiro, o não é capaz de atingir a verdade, segundo, o poeta em nada contribui para a purificação da alma e, terceiro, o poeta não contribui para o bem da república. Se analisado mais detalhadamente o conjunto dos argumentos, ver-se-á que o problema central que se coloca – ao que tudo indica – é o problema da verdade, donde se segue que a verdade passa a ser o principal elemento gerador da tensão entre filosofia e literatura. Não que ela gere essa tensão por si mesma, mas porque a busca constante que os filósofos vão fazer dela leva-os a desconsiderar os pressupostos próprios da poesia, como por exemplo, a imaginação. Consequentemente é esse uso que a poesia faz da imaginação que os impossibilita de alcançar a verdade.
Um aspecto que deve ser notado também, em se tratando do não alcance da verdade por parte dos poetas, decorre do fato, segundo Platão, deles serem inspirados pelas musas. Em razão disso – se deve observar – é que os poetas, na ótica platônica, não estão preocupados com a verdade. É essa não preocupação dos poetas para com a verdade e, atrelado a isso, a inspiração deles pelas musas que leva Platão a rejeitá-los da cidade. Para melhor ilustrar como a poesia é incompatível com o bem da república, Platão parte do princípio de que o poeta apenas imita o real, ou seja, aquilo que já está posto. Um problema que aqui se pode levantar consiste em saber se Platão é um combatente de todo e qualquer tipo de poesia, ou de apenas algumas. Ao que tudo indica a reposta a essa problemática seria negativa se si considerar o que ele expõe no capitulo primeiro do livro X da obra aqui tratada quando diz que “refutamos toda aquela poesia que se fundamenta na imitação”. [2] Sendo assim, cumpre investigar a razão dessa recusa a poesia que se pauta na imitação.
Platão, em principio, compara o poeta ao pintor. Ele diz que “há [por exemplo] três espécies de cama: a natural [...] obra de um deus [...]. A segunda espécie é obra do artesão. [....]. A terceira é obra do pintor”. [3] Com isso, Platão quer mostra que uma coisa pode ter até três autores, dos quais, os dois primeiros são os verdadeiros criadores, e o terceiro apenas imita. O primeiro é deus – compreendendo por deus a idéia –, o segundo é aquele que realiza essa idéia, ou seja, aquele que da à idéia de um determinado objeto um corpo material que faz com que essa coisa se torne algo real, e o terceiro é aquele que, a partir da criação de um objeto criado por deus e pelo artesão, faz uma imitação. E esse que imita, é justamente o poeta que, segundo Platão, “está a três graus de distancia da verdade”. [4]
Assim como em Platão, em Aristóteles a arte e a poesia também são imitações, conforme se pode observar no capítulo primeiro da Poética, onde se lê sobre a arte
Pois tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras [...], assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou conjuntamente. [5]

Entendendo – vulgarmente – como poeta, também, aquele que compõe versos, ele (Aristóteles) refere:
[...] se alguém fizer obra de imitação, ainda que misture versos de todas as espécies, como o fez Querémon no Centauro, que é uma rapsódia tecida de todas as causas de metros, nem por isso se lhes deve recusar o nome de poeta. [6]
  
Daqui se conclui pela similaridade das concepções de Platão e Aristóteles em se tratando da poesia enquanto imitação. É importante salientar que em Aristóteles, o modo como se efetua a imitação demarca também a diferença entre as varias espécies de poesia. A imitação, entretanto, é feita por meios diversos, como por exemplo, a comedia e a tragédia e os objetos da imitação são as ações dos homens, as quais podem ser boas ou más. Das boas ações se ocupa a tragédia, enquanto que das más se ocupa a comedia. [7]  
Uma observação relevante que Aristóteles coloca, e que talvez não apareça na República é a origem da imitação. Segundo ele “Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza [...], o que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais coisas pouco a pouco deram origem à poesia [...]”. [8] Aristóteles para ser mais compreensível do que Platão, e nele já se expressa certa ciência da natureza humana. Aristóteles parece dar, portanto, uma justificativa ontológica para poesia. Ora, dado que em Aristóteles a imitação é própria da natureza humana, e em Platão a imitação é justamente a razão pela qual o poeta não atinge a verdade, um grande problema vem a lume: como o homem pode alcançar a verdade se o obstáculo ao alcance da verdade é inerente à própria natureza humana? É como se a natureza humana trousse em si mesma a impossibilidade do alcance da verdade. Ora, como falar de verdade se a própria natureza humana não é capaz de alcançar a verdade pela razão de que a imitação é própria dela, e ao mesmo aquilo que coloca o indivíduo a três graus de distancia da realidade.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova cultura, 1987.       

PLATÃO. A República. 2 ed. Trad. Ciro Mioranza, São Paulo: Escala, 2007.







[1] Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão
[2] PLATÃO. A República. 2 ed. Trad. Ciro Mioranza, São Paulo: Escala, 2007, p. 341. 
[3] Ibid, p. 341.
[4] Ibid, p. 346.
[5] Cf. a “Poética” capitulo I.
[6] Ibid, cap. I.
[7] Ibid, cap. II.
[8] Ibid cap. IV

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