domingo, 14 de novembro de 2010

FICHAMENTO DO CAP. I DO LIVRO “O MAL-ESTAR DA PÓS-MODERNIDADE”


 
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.

O SONHO DA PUREZA

- Os grandes crimes, frequentemente, partem de grandes idéias. (P. 13).
- Nos primeiros anos da idade moderna, como Michel Foucault nos lembrou, os loucos eram arrebanhados pelas autoridades citadinas, amontoados dentro de Narrenschiffen (“naus dos loucos”) e jogados ao mar; os loucos representavam “uma obscura desordem, um caos movediço (...) que se opõe a estabilidade adulta e luminosa da mente”, e o mar representava a água, que “leva deste mundo, mas faz mais: purifica”. (P. 13).
- A intervenção humana decididamente não suja a natureza, e a torna imunda: ela insere na natureza a própria distinção entre pureza e imundície, cria a própria possibilidade de uma determinada parte do mundo ser “limpa” ou “suja”. (P. 14).
- A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às coisa seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorrem serem aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente” por sua livre vontade. (P. 14).
- O oposto da pureza [...] são as coisas fora do lugar. (P. 14).
- Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, mas, tão somente sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. (P. 14).
- As coisas que são sujas num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar – e vice-versa. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeição, restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam sua prístina e pureza. (p. 14).
- Ordem significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita [...]. (P. 15).
- A sujeira, sugeriu Douglas (Mary Douglas) “é essencialmente desordem. Não há nenhuma coisa que seja sujeira absoluta. Ela existe ao olhar do observador. (...) A sujeira transgride a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente. [...] se o desasseio é coisa inapropriada, devemos atacá-lo através da ordem. O desasseio ou a sujeira é o que não deve ser incluído se um padrão precisa ser mantido. (P. 16).
- Conforme a análise de Mary Douglas, o interesse pela pureza e a obsessão com a luta contra a sujeira emergem como características universais dos seres humanos: os modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para outra, de uma cultura para outra – mas cada época e cada cultura tem um certo modelo de pureza e um certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes às disparidades. (P. 16).
- O criador da sociologia fenomenológica, Alfred Schütz, fez nos conscientes das características da vida humana que parecem obvias no momento em que são ressaltadas: de que, se nós, humanos, podemos “achar nossas posições dentro de nosso ambiente natural e sociocultural e chegamos a um acordo sobre isso” é graças ao fato de que esse ambiente foi antes “pré-selecionado e pré-interpretado (...) por uma serie de constructos de senso comum da realidade da vida diária”. (P. 17).
- Nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. (P. 17).
- “Só posso compreender os atos de outra pessoa”, diz Schütz, “se puder imaginar que eu mesmo praticaria atos análogos caso tivesse na mesma situação, regulada pelos mesmos motivos de por que, ou orientadas pelos mesmos motivos de para que [...]. (P. 18).
- [...] a chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições do local – e, desse modo, “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado. Ele “tem de” cometer esse ato, perigoso e deplorável porque não tem nenhum status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe “natural” [...]. (P. 19).
- Se a “sujeira” é um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e a sujeira automática, autolocomotora e autocondutora é um elemento que desafia a própria possibilidade de esforços eficientes, então, o estranho é a verdadeira síntese desta ultima. (P. 19).
- [...] o cuidado com a ordem significou a introdução de uma nova ordem, ainda por cima, artificial – constituindo, por assim dizer, um novo começo. De fato, PODE-SE DEFINIR A MODERNIDADE COMO A ÉPOCA, OU O ESTILO DE VIDA, EM QUE A COLOCAÇÃO EM ORDEM DEPENDE DO DESMANTELAMENTO DA ORDEM “TRADICIONAL”, HERDADA E RECEBIDA; EM QUE “SER” SIGNIFICA UM NOVO COMEÇO PERMANENTE. (P. 20).
- Cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que precisa ser varrida. (P. 20).
- O cuidado com a pureza concentra-se não tanto no combate à “sujeira primária” quanta na luta contra a “metassujeira” – contra afrouxar ou negligenciar totalmente o esforço de manter as coisas como são [...] (P. 20).
- “Vizinhos do lado” inteiramente familiares e sem nenhum problema podem da noite para o dia converter-se em estranhos aterrorizantes, desde que uma nova ordem se idealiza [...]. (P. 21).
- Quase todas as fantasias modernas de um “mundo bom” foram em tudo profundamente antimodernas, visto que visualizaram o fim da história comprometida com um processo de mudança. (P. 21).
- Uma vez que o critério da pureza é aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapacitadas de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam recursos requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros” que nãos e ajustam ao novo esquema de pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes – verdadeiramente “objetos fora do lugar”. (P. 24).
- Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista, [...] impedem a entrada dos consumidores falhos à suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades [...]. (P. 24).
- A modernidade viveu num estado permanente de guerra à tradição, legitimada pelo anseio de coletivizar o destino humano num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra os seus próprios princípios. (P. 26).
- A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatiza. (P. 26).
- A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolucionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos – assaltantes, gatunos, ladrões de carros [...]. (P. 26).
- A busca da pureza moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagabundos e indolentes. (P. 26).

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