____________________________________________________________
CHAUÍ, Marilena: Obra
de arte e Filosofia. In NOVAES, Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia da Letras, 1994.
____________________________________________________________
Fábio
Coimbra
Graduando
em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão
__________________________________________________________________________
O
texto em questão – intitulado “Obra de arte e Filosofia” de autoria da filósofa
brasileira Marilena Chauí – trata-se de uma reflexão acerca do pensamento marleau-pontyano
que, em linhas gerais, discorre sobre a relação entre arte e filosofia. Cumpre
ressaltar, em princípio, que esse texto constitui apenas parte de uma obra mais
densa, um livro, cujo título se lê “Artepensamento”. Sob a organização de
Adalto Novaes, essa obra vem à tona como compilação textos filosóficos de diversos
autores, dos quais se resenha aqui aquele que discorre sobre Merleau-Ponty.
Quanto
à estrutura, o texto a ser resenhado compõe-se de três partes específicas,
respectivamente sub-intituladas (na primeira) “Desfazendo as amarras da
tradição”; (na segunda) “A obra interminável” e (na terceira) “A obra de arte
como filosofia selvagem”.
No
que tange á primeiras das subdivisões, a autora, considerando o pensamento
marleau-pontyano, parte do princípio de que “o ser é o que exige de nós
criação, para que dele tenhamos experiência” [1],
o que remete a uma interpretação de que o ser não está dado, mas surge de um
processo de construção. Esse processo de construção, no entanto, compete
exclusivamente ao sujeito, em cujas capacidades constam também aquela de
construir o ainda não construído. Dessa capacidade de criação do sujeito
enquanto criador é que resulta, portanto, o mundo construído como construção do
sujeito. Somente depois desse momento inicial de criação é que a experiência se
torna possível. Pois, ninguém experiencia o não-ser, mesmo porque ele não é. A
experiência sempre se dá a partir de algo que já é, e jamais o contrário. Daí a
necessidade de criação, que, neste contexto, vem a lume com condição necessária
para a existência da experiência.
Ora,
aqui se está, portanto, diante de uma concepção que insinua haver certo
entrelaçamento entre Arte e Filosofia. Vejamos: a arte, como é sabido, tem como
prerrogativa primeira, a capacidade de criar, tanto a partir do que já está
posto no mundo, quanto a partir da imaginação do artista. A filosofia, por sua
vez, é aquilo que dispõe o ser para a
experiência com aquilo que pela arte é criado. Nesta perspectiva, o sentido das
coisas cridas por uma residiria principalmente na atividade da outra. É como se
uma fornecesse o elemento essencial a partir do qual a outra – ao
experienciá-lo – encontrasse o sentido de sua existência, a sua razão de ser. É
desse modo, portanto, que se concebe esse entrecruzamento entre Arte e
Filosofia. E, conforme referido, a impressão que se tem desse entrecruzamento é
a de que ele se constitui como algo necessário, donde se conclui pela sua
impossibilidade de separação.
É
nesse sentido, portanto, que a autora refere que “filosofia e artes, juntas,
não são fabricações arbitrarias ao universo da cultura, mas contato com o ser
justamente, enquanto criação” [2].
Desse modo, ela faz a seguinte interrogação
Porque
criação? [e responde] porque entre a realidade dada como um fato, instituída, e
a essência secreta que a sustenta por dentro há o momento instituinte no qual o
ser vem a ser: Para que o ser do visível venha a visibilidade, solicita o
trabalho do pintor; para que o ser da linguagem venha a expressão, pede o
trabalho do escritor; para que o ser do pensamento venha a visibilidade, exige
o trabalho do filósofo.[3]
Chauí
reforça, portanto, a idéia de que somente depois do ato criador é que a
experiência se torna possível. Desse modo, constata-se, então, o atrelamento
entre Arte e Filosofia. Essa constatação reside, por conseguinte, no fato de
que enquanto o artista cria o objeto, ou o ser – entendido aqui como aquilo que
é, ou passa a ser –, o filósofo, por sua vez, é aquele que dá ao entendimento o
ser ou a coisa ora criada. É como se
experiência e criação caminhassem paralelamente. Nesse aspecto a interrogação
da autora é a seguinte: “que laço amarra num sentido único experiência,
criação, origem e ser?” [4].
Aqui se entra, conseqüentemente, naquela reflexão, a qual a autora vai dedicar
uma parte considerável do texto: trata-se da reflexão acerca do ser bruto e do espírito selvagem. Em
princípio, a percepção que se tem é a de que ambos dizem respeito a um estado
de barbárie. Entretanto, o desenvolver da reflexão vai mostra o contrário. De
que os termos, bruto e selvagem (no contexto em que estão sendo
usados) designam uma atividade pautada na força isso é bem verdade. O que não é
– e nem pode ser tido como verdadeiro – é a pretensão de entender essa força
como se fosse aquela usada na barbárie.
Para
esclarecer melhor a conotação desses termos, a autora refere que o espírito
selvagem
É o ser
de práxis que quer e pode alguma coisa, o sujeito que não diz “eu penso”, e sim
“eu quero” “eu posso”, mas que não saberia como concretizar isto que quer e
pode senão querendo e podendo, isto é, agindo. [...]. O espírito selvagem é a
atividade nascida de uma força – “eu quero, “eu posso” – e de uma carência ou
lacuna que exige preenchimento significativo.[5]
(p. 468.).
O
espírito selvagem é, destarte, aquela ação necessária a partir da qual um
espaço é preenchido, onde algo que ainda não era vem a ser, e algo que já era
deixa de ser. O vazio que deixa de ser ausência para ser presença, aparece aqui
como cenário primordial para a realização da experiência dado o seu
preenchimento. Anteriormente foi dito que a experiência se dá sempre a partir
de algo, ao qual foi chamado de ser, entendido enquanto criação. Esse ser
criação é, justamente, aquilo que resulta da atividade do espírito selvagem,
que age criando o que ainda não tinha sido criado. Nesta circunstância, a
autora afirma que “o que torna possível a experiência é a existência de uma
falta ou de uma lacuna a serem preenchidas, sentidas, pelo sujeito com a
intenção de significar alguma coisa precisa e determinada” [6].
Ora,
é exatamente diante da lacuna que está para ser preenchida, que se pode
entender com perspicácia o artista enquanto criador. Neste sentido, Marilena
Chauí, se reportando a Senso e não-senso,
refere que “o criador não se contenta em
ser um animal culto, mas vai à origem da cultura para fundá-la novamente” [7].
Logo, pode-se dizer que o trabalho pelo qual o artista cria as coisas exige seu
contato continuo com a sua cultura. Desse modo, ao criar, ele recria-a de novo
quando se volta para a origem dela. A criação é, por essa razão, a via
condutora à experiência.
A
arte enquanto fenômeno criador exige, acima de tudo, a renúncia do sujeito de
si mesmo, afim de que ele se veja e se reconheça como tal. Ou seja, o sujeito
ou o artista se reconhece como criador somente na medida em que ele é, ou se
torna capaz, de sair de si mesmo. Nesse sair de si, ele exterioriza aquilo que
nele mesmo está dado como interior. A criação passa a ser, portanto, a
expressão daquilo que o artista pensa, ou imagina. Ou seja, é o reflexo de uma
subjetividade que se objetiva e que, por isso mesmo, se dá a conhecer.
No que
diz respeito ao ser bruto, a autora
refere que
O ser bruto é o ser de indivisão,
desconhecendo a separação entre sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e
mundo. [...]. Ser de indivisão, o ser bruto é o invisível que faz ver porque
sustenta por dentro o visível, o indizível que faz dizer por que sustenta por
dentro o dizível, o impensável que faz pensar porque sustenta por dentro o
pensável. [8]
O
ser bruto é, portanto, um todo que jamais se desfaz em partes; é uma
indissociabilidade de elementos, ou seres que se unem, ou que se co-penetram
mutuamente. Ele é, em suma, aquela estrutura que de perceptível se tornou
imperceptível para trazer à percepção aquilo que consta dentro de si. É como se
ele desaparecesse sem, nem por isso, deixar de ser visto. Ele deixa de ser
visto, justamente quando se volta para dentro de si mesmo. Ao retornara para a
visibilidade, ele traz algo novo: aquilo que ele mesmo criou ao sair de si e
que já estava dado dentro de si. “O ser bruto é a distância interna entre um
visível e outro que é seu invisível”. [9]
É o lapso de espaço-tempo que há entre “eu” e o meu “eu”, ou seja, entre “eu”
enquanto ser exterior e o meu “eu” enquanto ser interior. É a estrada que leva
de fora para dentro e traz de dentro para fora.
O
ser bruto e o espírito selvagem são justamente aquelas condições essências, por
meio das quais vai se dá o rompimento com a tradição. Nesse sentido, Chauí
refere que
Buscá-los
é desamarrar os laços que amarravam o pensamento à tradição filosófica e
recomeçar a interrogação, interpelando, de um, lado, as obras filosóficas para
nelas encontrar as questões que as fizeram nascer e viver em seu tempo e sua
hora, mas por outro, lado, interpelando a obra de arte como abertura para
aquilo que a filosofia e a ciência deixaram de interrogar ou imaginaram haver
respondido. “A ciência manipula as coisas e se recusa a habitá-las.” [10]
Essa
é, portanto, a crítica Merleua-pontyana feita a um modelo de ciência que
falsifica as coisas e se esquiva delas. É preciso questionar, tanto a
filosofia, quanto a arte. É justamente com essa proposta de crítica e questionamento
que aparecem o ser bruto e o espírito selvagem. Segundo a autora “a
tradição filosófico-científica e seu efeito principal – tecnologia como domínio
instrumental dos constructos – é o abandono [...] do pensamento encarnado num
corpo que pensa”.[11]
É
como se o advento da técnica troucesse – alem do progresso, tal com se deu no
início da modernidade – mecanismos capazes de substituir no homem a sua
capacidade de raciocinar e pensar, transformando-o, talvez, num instrumento
mecânico e não mais humano. É neste sentido que a ciência se torna manipuladora
do ser: justamente quando ele fica submetido à ação dela e não se vê mais como
ser criador, portador de uma subjetividade e com plenas capacidades de “criar”
e “recriar” o mundo.
Desfazer
a tradição filosófica graças ao ensinamento da arte é jamais esquecer que o
artista tem seu corpo como sentinela em vigília às portas do sensível e que
cabe à filosofia recuperar a dignidade ontológica do sensível [...] é preciso
abandonar o ser como coisa empírica, mas também como resultado da analise e da
síntese intelectuais que o fazem posto pelo entendimento. [12]
Deve-se,
portanto, procurar o afastamento dos extremos. Assim, se de um lado é preciso
romper com a tradição filosófica, por outro é preciso ter o cuidado para não se
cair no intelectualismo, evitando desse modo a possibilidade de se conceber o
homem como produto do entendimento.
Na
segunda parte do texto, Marilena Chauí discorre sobre a obra de arte, entendida
enquanto algo interminável. Segundo ela refere, “a obra de arte não é efeito
das condições dadas, mas resposta a elas, por isso é enraizamento e
ultrapassamento, isto é, rigorosamente, criação radical. Se assim é,
compreendemos porque a obra de arte é interminável” [13].
A obra de ate se torna interminável justamente porque as condições dadas – as
quais ela aparece como resposta – constituem apenas um aspecto particular de
uma realidade, que, por ser total, é mais ampla e, portanto, inesgotável. Como
toda resposta a uma questão suscita novas questões que requerem novas respostas,
num jogo dialético, logo, a obra de arte, enquanto resposta a uma determinada
questão, nunca estará totalmente terminada. Será, pelo contrário, algo em
constante construção. Desse modo, ela nunca se fecha, mas permanece sempre
aberta diante de um mundo onde a única coisa que permanece é a mudança.
O
artista, como o filósofo, nunca está no centro de si mesmo, estão sempre fora
de si. Rodeados pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem realizar
e revelar pela obra. [...] sua obra é interminável porque nunca abandonamos
nossa vida e o mundo, nunca vemos a idéia, o sentido e a liberdade cara a cara.
[14]
Neste
sentido, sair de si é entrar no mundo para está em constante contato com ele
numa perspectiva de construção e reconstrução do mesmo. Essa experiência de
entrada no mundo é como que a iniciação ao mistério
do próprio mundo. Esse mundo – que diz respeito à realidade em imparcial
amplitude – é como que a síntese daquilo que ao ser se apresenta como diverso,
numa multiplicidade infinita.
Na
terceira (e ultima) parte do texto, a autora discorre sobre “a obra de arte como filosofia selvagem”.
O ponto inicial dessa, é uma reflexão de Chauí sobre a pintura, onde ela refere
que
A
pintura é transubstanciação entre o corpo do pintor e corpo das coisas. Como
isso é possível? É que a visão e o movimento são inseparáveis, embora
diferentes: ver não é apropriar-se do mundo em imagens, mas aproximar-se das
coisas, tê-las, mas à distância; mover-se não é realizar comandos que a alma
envia ao corpo, mas o resultado imanente do amadurecimento de uma visão. (p.
482).
O
que se propõe aqui é uma união entre o ver e o mover-se, embora o movimento apareça
como posterior à visão. Como tal, ele é sempre fruto de um processo de
maturação das imagens, ou visões que se tem do mundo. Desse modo, já não se
pode mais conceber o movimento como fruto de uma ordem sobrenatural que é dada
ao corpo, mas sim como resultante de um processo de experiência no qual o
individuo experiencia as imagens que estão propostas no mundo. Nessa
perspectiva, o corpo assume uma função importante enquanto elemento mediador
entre o mundo e o próprio artista, por exemplo. “Nosso corpo, coisa sensível
entre as coisas, é sensível para si. É ele que nos faz ver as coisas no lugar
em que estão e segundo o desejo delas” [15].
A sensibilidade, aqui, se torna relevante pelo fato de que ela favorece ao
artista sentir as coisas com mais profundidade. Como resultado dessa sensibilidade
que o indivíduo possui perante as coisas tem-se, como resultado, a obra de
arte. Nesse sentido, Chauí refere que
Pela
primeira vez na história da filosofia, graças à obra de arte, descobrimos que a
reflexão não é privilégio da consciência, nem essência da consciência, mas que
esta recolhe uma reflexão mais antiga que ensina a refletir: A reflexão
corporal. [16]
Há,
portanto um reconhecimento do corpo como sendo anterior à consciência, bem como
ao intelecto ou a razão. É desse modo que “as artes, como filosofia selvagem do
sensível, desvendam as ilusões da razão ocidental como desejo de purificação
intelectual do mundo”. [17]
[1] Cf. CHAUÍ, Marilena: Obra de arte e Filosofia. In NOVAES,
Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia da Letras, s/d. P. 467.
[2]
Cf. CHAUÍ, Marilena: Obra de arte e
Filosofia. In NOVAES, Adalto (Org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia
da Letras, s/d. P. 467
[3] Idem. P. 467.
[4] Idem. P. 468.
[5] Idem. P. 468.
[6] Idem. P. 468.
[7] Idem. P. 468.
[8] Idem. P. 468.
[9] Idem. P. 469.
[10] Idem. P. 470.
[11] Idem. P. 470.
[12] Idem. P. 471.
[13]
Idem. P. 481.
[14] Idem. P. 481.
[15]
Idem. P. 483.
[16] Idem. P. 483
[17] Idem. P. 485.
Nenhum comentário:
Postar um comentário