sexta-feira, 19 de outubro de 2012

HERMENÊUTICA: DA GÊNESE À REFORMA PROTESTANTE



RESUMO
O intuito deste artigo é fazer uma abordagem histórica da Hermenêutica estendendo-se dos gregos com sua maneira própria de interpretação, até o período no qual veio a lume a reforma protestante. Nesta pesquisa ilustraremos como se deu o processo evolutivo da Hermenêutica dentro daquilo que constitui a proposta do tema. Para isso, partir-se-á do princípio de que a Hermenêutica realmente diz respeito à arte de interpretar. Como objetivo geral, tem-se, portanto, a busca pela compreensão da Hermenêutica fazendo uma viagem histórica mergulhando no seu passado para insurgir-se no seu presente. Como objetivo específico tem-se a proposta de analisá-la a partir de diversos ângulos e pontos de vista diferente que, simultaneamente se interpenetram formando um todo que visualiza o mesmo alvo.
Palavras-chaves: Hermenêutica – Linguagem – pensamento – Renascimento

ABSTRACT                                    
The purpose of this article is to make a historical approach to Hermeneutics extending from the Greeks with their own way of interpretation, until the period came to light in which the Protestant Reformation. In this study illustrate how the evolutionary process took place within the Hermeneutics of what constitutes the proposal of the topic. To do so, since it will be assumed that the Hermeneutics really relates to the art of acting. As a general objective, there is therefore the search for understanding of historical hermeneutics making a diving trip in the past to rise up in your present. The specific goal has been proposed to analyze it from different angles and different points of view that both are intertwined to form a whole which sees the same target.
Keywords: Hermeneutics - Language - thinking – Renaissance
  
  1. INTRODUÇÃO                                                             
O trabalho a ser desenvolvido aborda como tema: Hermenêutica: da gênese à reforma protestante. Este artigo tem como proposta, a partir de uma reflexão histórica, demonstrar como se deu o processo de evolução da hermenêutica num recinto de mutação constante passando por tumultuosas situações até ascender a um nível de aperfeiçoamento tal como se observa hoje. Como formas de enriquecimento desta pesquisa serão analisadas sucintamente obras e autores diversos, de relevância fundamental para o progresso desta investigação. Um desses autores, excelentemente renomado, é o alemão Schileiermarcher.
Este trabalho não tem como escopo exaurir todos os conhecimentos concernentes à hermenêutica em sua totalidade, haja vista a extensão e complexidade do assunto, mas quer sim dar um passo fundamental rumo a essa direção.

2. HERMENÊUTICA: INTERPRETAÇÃO DO SENTIDO DAS PALAVRAS E LINGUAGEM

Tradicionalmente, a hermenêutica foi pensada e definida como a arte da interpretação, o que não estava longe de ser uma verdade. Entretanto, para fins de esclarecimento se tornam importantes, aqui, alguns questionamentos que – como convites à reflexão – ganham pertinência à evolução da pesquisa à medida que contribuem para a cogitação a cerca da temática proposta. Sendo assim, poder-se-á levantar as seguintes indagações: o que de fato vem a ser a Hermenêutica? Como se faz uma interpretação? O que se deve levar em conta no ato de interpretar? O que define a Hermenêutica de hoje em relação a do passado?

Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significa de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contem. Pode-se procurar e definir a significação de conceitos e intenções, fatos e indícios; porque tudo se interpreta; inclusive o silencio[1]


O intérprete é, portanto, aquele que deve ter total afinidade com a coisa interpretada; que detém sólidos conhecimentos da língua a que interpreta, bem como intimidade com as pessoas de cujos gestos e ações, por ele, são esclarecidos. Outra exigência do intérprete (em se tratando de Hermenêutica) é a de que ele saiba reproduzir aquilo que passou do interior para o exterior; o que isso significa; que valor comporta etc. Tudo isso já é suficiente para mostrar que a função de intérprete não é tão simples, como de repente se possa imaginar. Nesse sentido a Hermenêutica se torna complexa, e a aplicação de regras para determinar o sentido correto das coisas interpretadas, faz-se necessário para que haja harmonia e logicidade. Caso contrário, a diversidade de interpretação sem um segmento lógico poderá facilmente conduzir ao caos, o que conseqüentemente, levará a um distanciamento do verdadeiro sentido e originalidade do objeto interpretado. “O interprete é o renovador inteligente e cauto e o seu trabalho rejuvenesce e fecunda a formula prematuramente decrépita.”[2]
Não se pode concluir como errônea a opinião daqueles que professam que a hermenêutica é, de fato, a arte da interpretação, e, sobretudo, da interpretação do sentido das palavras. Em geral, a razão pela entende-se a hermenêutica como arte de interpretar é histórica, tendo o seu início com os gregos, especialmente a partir da mitologia.

O termo Hermenêutica provem do grego Hemeneuein, que significa declarar, anunciar, interpretar ou traduzir [...] não é improvável que a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, o que daria ao termo uma dimensão sagrada na medida em que o relacionava com a compreensão da palavra divina.[3]


Observa-se, portanto, que na raiz da Hermenêutica já está implicada a concepção do divino e, desse modo, sua ligação com os textos sagrados. O mensageiro, como é sabido, é aquele que traz ou leva uma mensagem de um ser para outro. Assim Hermes só poderia transmitir a mensagem dos deuses por meio do dizer. Daí se concebe que o mensageiro, além de condutor da mensagem, é também aquele que faz uso da fala a fim de transmitir aquilo que ouviu. O problema que aqui vem à tona consiste em saber se, de fato, há entendimento ou não por parte daqueles que são o destinatário da mensagem. Considerando que nem sempre se entende ao que se houve falar, surge então a necessidade da explicação daquilo que é dito para que todos tomem conhecimento claro do que ouvem.  Levando em conta a diversidade lingüista, bem como a própria distinção dos homens entre si no que diz respeito ao conhecimento e, por conseguinte, à cultura intelectual, de modo que enquanto alguns gozam de muito entendimento, outros gozam de pouco, a grande questão que se coloca é a necessidade da tradução da mensagem do original para as particularidades a fim de favorecer a assimilação e o entendimento. Nesse sentido, o mensageiro é, portanto, aquele encarregado de uma tripla função: anunciar, explicar e traduzir.


Hermes seria então aquele que trazia uma <<mensagem>> o que nos remete para três usos possíveis da noção de Hermenêutica: o dizer, o explicar e o traduzir [...] Nos três casos há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é, de certo modo, tornado compreensível, interpretado.[4]


Desse modo, percebe-se que a função anunciadora de Hermes é uma função dotada de carências e necessidades, cuja supressão se torna condição necessária indispensável para o surgimento da hermenêutica. A primeira dessas necessidades cabe ressaltar, é a da linguagem oral, passível de percepção, sobretudo, nas sagradas escrituras onde a voz alta se tona fundamental para o ouvinte.
Que, em princípio, a Hermenêutica estava voltada à compreensão e interpretação das sagras escrituras, ninguém disso pode duvidar. Pode se pensar até mesmo que ela nasce justamente com essa proposta na medida em que a mensagem dos desuses precisava de um interprete. Não obstante, a evolução dos acontecimentos no decorrer da história foi aos poucos impondo algumas mudanças necessárias. Desse modo, a Hermenêutica, comungando dessas mudanças, vai gradativamente se transformando na medida em que essa transformação se fazia necessária. Sendo assim, uma das primeiras mutações ocorridas na Hermenêutica foi sofrida no que diz respeito à semântica.


O termo compreensão começou ele mesmo a ser encarado como um problema que interessava resolve, a ponto da questão não se colocar apenas em relação à das escrituras, ou de outros textos, mas havendo antes a necessidade de elucidar o que era compreender na sua essência, isto é, as condições e os limites em que este se exercia.[5] 


Ou seja, diante dos problemas ou dificuldades que surgiram, parecia haver certa mudança no sentido do caráter inicial. Aqui parece desencadear-se, portanto, um processo de orientação filológica, onde a preocupação se volta para um estudo semântico e lingüístico. Ora se essa orientação da Hermenêutica para a filologia se deu, especialmente, a partir da necessidade de uma compreensão semântica dos termos ou das palavras no contexto de sua determinada origem, ou língua, “vai ser, então, a partir da evolução e disseminação do cristianismo que essas transformações vão se desenvolver e se alterar levando em conta, sobretudo, a necessidade de conciliação do antigo com o novo testamento. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que entre o antigo e o novo testamento há um abismo muito grande no que diz respeito à linguagem. Enquanto a linguagem do novo testamento, por si mesma, está mais próxima da compreensão por ser uma linguagem, diga-se de passagem, menos enigmática, a do antigo testamento na medida em que consta de metáforas em demasia dificulta a compreensão, sobretudo quando não se tem nenhuma certeza de muitos acontecimentos que metaforicamente estão relatados. No período patrístico, com Santo Agostinho, doutor da igreja, surge a hermenêutica cristã, que se tornou fundamental em toda a idade media.[6] Com a restrição da Hermenêutica no campo da teologia, a grande questão que daí deriva consiste essencialmente em saber como se devem compreender corretamente as sagradas escrituras[7]
Diante dessa realidade, no que diz respeito à hermenêutica, entendida enquanto arte de interpretar, a evolução natural dos acontecimentos, da sociedade e da humanidade como no todo, acompanhada pelo progresso das ciências que gradativamente vão ganhando espaço, foi aos poucos fazendo com que aquelas antigas e medievais formas de explicação e interpretação fossem passo a passo enfraquecendo. A continuidade, portanto, desses moldes arcaicos de interpretação já não tinham mais força. Já não se podia mais insistir no pensamento e na continuidade da hermenêutica a partir dos protótipos da antiguidade e, sobretudo, da idade media, pois,

As interpretações durante este período da humanidade foram as mais diversas e absurdas. Tanto judeus quanto cristãos estavam inteiramente envolvidos, cada qual no seu ponto central, logicamente. Após esse período de negro, em que a humanidade permeou a ignorância, onde tudo, ou quase tudo se vinculava ao pensamento divino, surgiram os renascentistas, enfatizando a razão humana em detrimento aos princípios religiosos. [8]


Dada a superação desse momento “turbulento” da antiguidade, surge então o renascimento. Com este, a Hermenêutica é repensada e ganha, portanto, uma nova configuração.
O surgimento da Hermenêutica moderna coincide especialmente com aquele momento da humanidade que teve como pretensão primordial a construção da autonomia do sujeito a partir da elevação da razão (que passa a ser o distintivo fundamental do renascimento) em detrimento da fé (caractere principal do período anterior, ou seja, medieval). Com o renascimento, buscou-se construir um homem mais racional e independente da religião. Cumpre ressaltar que no processo de aquisição da autonomia é necessário que o sujeito enquanto criação se afaste do seu criador, afim de que (enquanto sujeito) tome ciência daquilo que ele, de fato, é. Foi justamente o que aconteceu no renascimento. Esse período marca, destarte, o advento da cultura antropocêntrica.
Nesse momento de desconstrução e reconstrução, de ruptura e linearidade, de descontinuidade e continuidade, o renascimento vai significar o abandono do antigo e a busca pelo novo.[9]    

Sem a velha e conhecida segurança dada pela igreja, e por seus ‘homens’ de Deus, a humanidade procura unicamente a si mesmo, na alto-certeza do sujeito pensante, uma base segura, e um ponto de partida para o conhecimento filosófico. A hermenêutica dessa época preocupa-se com a correta utilização da palavra e da língua.[10]


Se, por um lado, o renascimento favoreceu aos homens tornarem-se autônomos, por outro, introduziu entre eles a necessidade de relação mútua na medida em que eles passam a procurar entre si um “porto seguro” capaz de nortear sues pensamentos, seus conhecimentos e até mesmo suas ações. Isso de algum modo desembocou num problema mais amplo, a saber, o problema da linguagem, ou até mesmo a relação entre ela e o pensamento, uma vez que vai ser somente por meio dela que aquele vai se exteriorizado e, portanto, manifestado. Schileiermarcher, por exemplo, vai mostrar como essa relação se torna inextrincável. Para tanto, ele parte do princípio da relatividade do pensamento, considerando que se o pensamento é relativo, o saber também não escapa a isso. Como a interpretação gramatical “é arte de encontrar o sentido determinado pela linguagem[11]", essa, por sua vez, vai ser a válvula de escape por onde o pensamento se dá a conhecer, desse modo, ela se tornará, por excelência a fonte dessa relatividade. Opondo-se à concepção de que a explicação existe por si mesma, Schileiermarcher compreende que ela (compreensão), na verdade, resulta de uma combinação de pensamentos daqueles que falam com aqueles que escutam. Sendo assim, a compreensão se torna metódica e a aquisição do saber exige, acima de tudo, esforço, cuidado e disciplina.
O problema da linguagem na Hermenêutica tende a se intensificar de modo especial com a reforma protestante que apregoava que “todos os fiéis deveriam ter acesso ao termo escrito em linguagem comum” [12], o que fez com que a hermenêutica se voltasse à questão filológica e lingüística. O objetivo disso era fazer com que o povo pudesse lê e interpretar a sagrada escritura de modo que o sentindo literal e histórico captado pelo autor humano fosse o sentido divino.

A reforma reclama o regresso à verdade do texto, à autenticidade da mensagem divina, bem como a abolição definitiva das adulterações e obstáculos erguidos pela autoridade católico-romana para impedir a comunicação entre os fiéis e Deus.[13]


A reforma, portanto, entendeu que a tradição católica funcionava como uma espécie de bloqueio que impedia o contato entre Deus e os fiéis. Era necessário, portanto, tornar essa passagem livre para todos aqueles que a isso pretendessem. Daí, a liberdade de interpretação. O próprio regresso á verdade do texto, já introduz a noção da necessidade do uso da leitura. Desse modo, a autenticidade da significação passa a ser objeto de busca constante da hermenêutica.

3.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como pretensão primeira discorrer a cerca da trajetória histórica da hermenêutica partindo de sua origem – que se deu com os gregos, como, de fato, foi mostrado – e passando pela idade média para alcançar o renascimento.
O intuito primordial era de encerrar a discussão logo que se chegasse ao período renascentista. Entretanto, a diversificação das fontes introduziu alguns conceitos e reflexões que, com o evoluir da pesquisa, tornou-se necessário estendê-la até a reforma protestante. Cumpre ressaltar que esse pequeno prolongamento em nada enfraqueceu a pesquisa, pelo contrário, enriqueceu-a mais ainda.
Uma das reflexões cruciais desta pesquisa convém lembrar, foi aquela que disse respeito à inseparabilidade entre o pensamento e a linguagem, à luz de Schileiermarcher. Ainda em se tratando desse autor, outro ponto relevante foi a noção de que a linguagem constitui a fonte da relatividade do saber, uma vez que ela expressa o pensamento, que também, é relativo.
No que diz respeito à origem, percebeu-se que a hermenêutica nasceu atrelada ao ideal de tradução, explicação e interpretação da mensagem divina. Nesse período e em grande parte da idade media instala-se um caos na medida em que as disputas religiosas entram em cena, como por exemplo, judaísmo e o cristianismo.
Em suma, percebeu-se que com o renascimento a hermenêutica foi reconfigurada e redimensionada, ao mesmo tempo em que surgiram novas exigências, sobretudo, a partir da reforma protestante que, diga-se de passagem, foi herdeira direta do renascimento.     

REFERÊNCIAS

HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001.
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf>. Acesso em: 04 de maio de 2010.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. (Coleção Pensamento e Filosofia)
PIRES, Maria João. Teologia e o poder da palavra: o desafio renascentista.
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003.



[1] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 9.
[2] Cf. ibidem, P. 12.
[3] Cf. HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001. P. 44-45.
[4] Cf. ibidem, P. 45.
[5] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 46.
[6] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[7] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[8] Disponível em: http://www.professorallan.com.br/UserFiles/Arquivo/Artigo/artigo_prof_fabio_sombrio_hermeneutica.pdf
[9] Cf. Idem.
[10] Cf. ibidem.
[11] SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003. P. 70. Outras reflexões sobre esse autor que aqui não aparecem com referência foram extraídas de fichamento de conteúdos assimilados em sala de aula.
[12] Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf
[13] Cf. Ibidem.

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