domingo, 19 de agosto de 2012

CULTURA E CONHECIMENTO CIENTÍFICO EM PAUL RICOEUR

Este artigo é  a penas parte de um trabalho que apresentei
em uma mesa redonda na ocasião do XI Encontro Humanístico 
da Universidade Federal do Maranhão


Tudo o que aparece, é passível de ser interpretado; tudo o que é passível de ser interpretado foi passível de ser conhecido. O conhecimento não é obra do acaso. Ele nasce da curiosidade inerente ao indivíduo pensante e consciente. Enquanto agente de modificação, transformação e revolução, o conhecimento não é algo dado e acabado, mas construído gradativamente no âmbito de um espaço-tempo onde tudo é alterado e nada permanece. Dada a sua construção, já não se pode mais argumentar em prol da linearidade do ser enquanto sujeito permanente no sentido de não sofrer nenhuma alteração.
No decorrer da história, o conhecimento – fruto da ação humana – foi usado muitas vezes como meio para a aquisição de fins diversos de grupos específicos, ou seres individuais. Como se tivesse uma dupla face, ou uma dupla natureza, o conhecimento fora usado ora para o bem, ora para o mal. Nesse espaço-tempo de construção e reconstrução do conhecimento nascem os costumes e desses a cultura. Aqui, Importa questionar: O que é cultura? Em linhas gerais, portanto, poder-se-ia dizer que cultura é aquilo que sobrou depois do que se esqueceu do resto; é o necessário que fica depois que o contingente se esgota; é a parte, o sumo que fica depois que o todo se esvai. A cultura que é vida que pulsa nos sangue, e que compõe – enquanto conjunto de valores, costumes e práticas – a essência de um povo, pode-se dizer que, em suma, é parte constituinte daquilo que de mais nobre um povo pode ter. Ela, que emerge do interior do homem, enquanto expressão do seu desejo de viver e criar valores, conserva a sua naturalidade e originalidade enquanto mais afastada tiver da cobiça e dos interesses financeiros do mercado. É como se a vida dela residisse nesse distanciamento seu em relação aos negócios. Quando, porém, essa aproximação acontece e ela é coagida a integrar a esfera mercadológica, ela entra, então, num processo de transformação no qual ela perde parcialmente a sua originalidade. Isso se dá, primordialmente, em razão do capitalismo que, buscando seu desenvolvimento e sua disseminação, relativiza todos os valores humanos, sociais e culturais até atingir seu objetivo, a aquisição e acumulação de lucro. Para fazê-lo com mais precisão, uma das primeiras preocupações dele (o capitalismo) é integrar tudo numa esfera global, o que lhe possibilita melhor controlar os fatos e manipular a realidade conforme melhor lhe aprouver.  
Com ênfase nessa problemática, Paul Ricoeur refere que esse problema


[...] é comum tanto às nações altamente industrializadas e regidas por um estado nacional antigo, quanto às nações que saem do desenvolvimento e da independência recente. O problema é este: a humanidade como um corpo único, ingressa numa única civilização planetária que representa ao mesmo tempo um progresso gigantesco para todos e uma tarefa esmagadora de sobrevivência e adaptação da herança cultural a esse quadro novo. Sentimos todos, em graus diferentes e de maneiras variáveis, a tensão entre de um lado a necessidade dessa ascensão e desse progresso e, por outro, a exigência de salvaguardar o patrimônio que herdamos[1].  


Essa civilização dita global surge, tal como se percebe, com uma dupla face, das quais podem surgir diversas consequências. Se por um lado ela é capaz de integrar todos os indivíduos num processo de melhoramento da vida, por exemplo, na medida em que favorece o crescimento em diversos setores sociais, e econômicos, por outro, ela exigi desses mesmos indivíduos a renuncia de diversos valores culturais aos quais ele desfruta enquanto membro de um grupo e que foram construídos e fortificados pelo tempo e pela história. A preocupação de Ricoeur, nesse sentido, parece consistir em buscar uma alternativa ou um meio teórico pelo qual os indivíduos possam desfrutar das prerrogativas do progresso, sem que para isso seja preciso romper com suas fontes ou origens culturais. Daí ser necessário que as culturas passem por um processo de adaptação à nova realidade, o que, de algum modo, já implica em mudanças que deverão ocorrer. Isso significa dizer que as perdas de algumas características da cultura, ou das culturas frente às novas exigências impostas pelo progresso se tornam inevitáveis.
Embora reconheça que perante o fator da universalização cultural – que se observa com mais nitidez nos tempos modernos com o advento da técnica e do progresso – as culturas ficam passíveis de modificações, Ricoeur não manifesta desprezo à modernidade, mas apenas tenta expor o problema que pode se observar a partir do surgimento dela.


Devo dizer de imediato que minha reflexão não se origina de nenhum desprezo em relação à civilização moderna universal; se existe um problema, é justamente porque sofremos a pressão de duas solicitações divergentes, mas igualmente imperiosa.[2]


Essas duas solicitações são, portanto, de um lado, o progresso, que para continuar evoluindo necessita da abertura da cultura para as devidas modificações, e, de outro, a própria cultura que diante da pressão que lhe é imposta procura encontrar caminhos pelos quais possa continuar.
Dada tal situação, o passo seguinte de Ricoeur consiste em caracterizar essa civilização. Em princípio, ele aparenta refutar a concepção de que ela se caracteriza pela técnica. Isto porque a técnica não seria o pano de fundo primeiro através do qual a figura se destaca (figura aqui pode ser entendido como sendo os resultados do progresso). Nesse sentido, diz Ricoeur:


A técnica não é, entretanto, o fato decisivo e fundamental; o centro de difusão da técnica é o próprio espírito científico; é ele que primeiramente unifica a humanidade em nível bastante abstrato, puramente racional, e que, nessa base, dá à civilização humana seu caráter universal.[3]


É do espírito científico que brota a técnica. Ele, entretanto, surgir dentro de um núcleo abstrato que aqui pode ser chamado de racionalidade. A racionalidade, por conseguinte, é uma prerrogativa inalienável da humanidade, ou da espécie humana. Segundo Ricoeur “é ela que arrasta todas as outras manifestações da civilização moderna” [4].
A técnica que nasce do espírito científico não permanece estática, mas desenvolve pouco a pouco num circulo interminável.


Esse desenvolvimento compreende-se como uma retomada do instrumental tradicional a partir das consequências e das aplicações dessa única ciência. Esse instrumental que pertence ao fundo cultural primitivo da humanidade tem por si mesmo uma inércia muito grande; entregue às suas próprias forças, ele tende a sedimentar-se em uma tradição invencível; não é por força de um movimento interno que um instrumental se modifica, mas pelo contragolpe sobre ele exercido pelo conhecimento científico; é pelo pensamento que o instrumental se revoluciona e se transforma em maquinas.[5]


Dois pontos essenciais à compreensão do progresso são enfatizados aqui: primeiro, o conhecimento científico, e, segundo, o surgimento das maquinas. Com essa ultima – que pode ser concebida como decorrente da primeira – um processo de revolução foi desencadeado no seio da sociedade moderna. Essa revolução diz respeito, sobretudo, às transformações ocorridas, e que mudaram o rosto, ou a fisionomia das cidades[6], das sociedades e, por conseguinte, das culturas. Com o advento das maquina tem-se, portanto, o desenvolvimento da indústria. Como o lugar de difusão da indústria foram as grandes cidades, para essas, portanto, passou a se dirigir um contingente bastante elevado de indivíduos. Foi nesse período que teve inicio o processo de massificação das cidades. Como resultado disso, apareceu, então, a dita cultura de massa.
Para fins de reflexão poder-se-ia aqui levantar o seguinte questionamento: Como seria o desenvolvimento, ou o progresso do Estado sem as máquinas? Seria possível haver maquinas sem o conhecimento científico? Certamente a resposta à primeira questão diria que esse progresso seria muito lento, caso houvesse, de fato. Já a reposta à segunda questão seria certamente negativa. Pois, dificilmente haveria máquinas sem um conhecimento científico revolucionador, capaz de questionar, inovar, criar e executar. De qualquer forma, ressalta-se a importância do conhecimento em geral, para dizer que é ele que a tudo revoluciona.
Assim como do conhecimento científico veio à máquina, do conhecimento comum veio as ferramentas primeiras através das quais se deu o relacionamento do homem com a natureza. É válido ressaltar que esse contato homem-natureza se tornou fundamental e contribuiu relevantemente para o desenvolvimento da espécie humana. Desse modo, deve-se reconhecer o papel fundamental que a natureza desenvolve no processo de vivificação, manutenção e permanência da diversidade cultural existente. Nesse sentido, Ricoeur refere:

A humanidade se desenvolve na natureza como um ser artificial, isto é, como um ser que cria todas as suas relações com a natureza por meio de um instrumental sem cessar revolucionado pelo conhecimento científico; o homem é uma espécie de artifício universal; pode-se dizer nesse sentido que as técnicas na medida em que são a retomada dos utensílios tradicionais a partir de uma ciência aplicada, não tem mais pátria.[7]


Diante da mundialização da cultural, percebe-se em princípio, que esse fenômeno parece ter sua origem no uso de ferramentas antigas que foram não somente retomada, mas também aperfeiçoadas pela técnica. É a partir do momento em que se dá a “purificação” desses utensílios tecnicamente, é que Ricoeur vai falar, então, do expatriamento dos mesmos. A impressão que se tem é de que essa universalização que é operada pela técnica, consiste justamente na libertação desses utensílios de sua condição primitiva para serem então propriedade de todos ou um bem de qualquer um independente do lugar onde ele se encontre o que, de algum modo, assemelha-se bastante aos interesses do mercado. Esse fenômeno da civilização universal que pretende suprimir total ou parcialmente os traços, ou costumes das culturas primitivas não passa de uma mascara que esconde os interesses do mercado. Não à toa que autores como Benjamim e Baudelaire já haviam apontado para o progresso e a técnica como responsáveis pelas mazelas das cidades a partir da modernidade.
Paul Ricoeur tem total razão ao dizer que “é graças a esse fenômeno de difusão que podemos ter hoje uma consciência planetária” [8]. Talvez a única falha dele, nesse sentido, reside no fato dele não ter alertado para o fato de que essa consciência planetária não passava de uma maneira pela qual o sistema capitalista buscava também seu desenvolvimento. Entretanto, deve-se reconhecer que talvez não fosse esse seu objetivo.



REFERÊNCIA

 MARX, Karl. ENGELS, Friedric. A ideologia alemã. Trad. Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (coleção clássicos Filosofia Ciências/Sociais)
  
MARTINS, Carlos Benedito. O que é a sociologia. São Paulo: Brasiliense, 2004. (coleção primeiros passos; 57).
  
RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968



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