domingo, 19 de agosto de 2012

A DEGRADAÇÃO DA MEMÓRIA E O ÊXITO DA LEMBRANÇA NA MODERNIDADE


Este trabalho é parte de um artigo que apresentei na UNICAMP
na  ocasião do XIV Encontro de Pesquisa em Filosofia

Marcada pela inconstância e pela interrupção constante dos acontecimentos, pode-se dizer que na modernidade reina um princípio de incerteza. Nesse sentido, Singer enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fazes anteriores da cultura humana”. [1] Desse modo, pode-se dizer que no ambiente moderno, o homem já não pode mais memorizar, mas apenas lembrar aquelas coisas que anteriormente foram memorizadas.
Certamente, só está na memória aquilo que passara pelo processo de vida real dos indivíduos concretos desde a infância até os o confins da vida quando a morte, então, se aproxima. Mas, a própria morte também se configura como relevante para a continuidade da narrativa dado que ela favorece o processo de transmissão. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, “enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil” [2]. Aquilo que o ancião tem de mais nobre é justamente aquilo que para a modernidade não vai ter tanto, ou talvez, nenhuma relevância. Essa nobreza que ele possui diz respeito, portanto, as experiências que foram acumuladas ao longo de sua vida, e que agora dependem de uma transmissão para não se perderem na eternidade. Nesse sentido, Benjamin refere:
[...] é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens [...], assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade. [3]
A relevância da morte para a narrativa se dá, sobretudo, pelo fato dela possibilitar a transmissão dos saberes adquiridos e acumulados ao longo da vida daquele que morre. Para a narrativa, portanto, a morte não significa fim ou ruptura, mas a própria possibilidade de continuidade sem interrupção.
Partindo do princípio de que narrar também pode ser entendido como a arte de “contar”, Jeanne Marie Gagnebin refere que “a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem mais na sociedade capitalista moderna” [4]. O que se torna aqui passível de percepção é que o espaço para a narrativa passa a ser cada vez mais estreito dentro da estrutura de uma sociedade pautada na busca de riqueza. Uma das formas tradicionais de produção, por exemplo, que vai perder a sua significância é o trabalho artesão. De acordo com Gagnebin,
O artesanato permite, devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial [...], por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho se inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. [5]
Há, neste aspecto, um choque entre a tradição e o mundo moderno. Enquanto na tradição o tempo era fundamental na arte de narrar, na era moderna esse tempo só vai ter sentido se ele se encaixar nas estruturas e parâmetros da modernidade. Ou seja, no mundo moderno, o que dá sentido ao tempo é o fato dele ser consumido muito rapidamente. A narrativa não comunga do tempo moderno justamente pelo fato de que nesse tempo o seu tempo não se encaixa. É nesse aspecto que as histórias e a narrativa correm o risco de cair no esquecimento e se perderem. Como diz Benjamin: “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas”. [6]


[1] SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004. P. 96.
[2] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Paulo Sergio Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 10.
[3] Ibid., p. 207-208.
[4] Ibid., p. 10.
[5] Ibid., p. 10-11.
[6] Ibid., p. 205.

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