BAUMAN,
Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.
Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
1998.
A CRIAÇÃO E ANULAÇÃO DOS ESTRANHOS
- todas
as sociedades produzem seus estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua
própria espécie de estranho, e os produz de sua própria maneira, inimitável.
(P. 27).
- se
os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou
estético desse do mundo [...] cada sociedade produz esses estranhos. (P. 27).
-
[...] uma vez que a humanidade tolera mal todo tempo de reclusão, os seres
humanos que transgridem os limites se convertem em estranhos – cada um deve ter
motivos para temer a bota de cano alto feita para pisar no pó a face dos
estranhos, para espremer o estranho do humano e manter aqueles ainda não
pisados [...] (P. 27-28).
-
Botas de cano alto fazem parte de uniformes. [...] Em algum momento de nosso
século se tornou comum a compreensão de que os homens uniformizados devem ser
mais temidos. (P. 28).
-
Envergando uniformes, os homens se tornam esse poder em ação; envergando botas
de cano alto, eles pisam, e pisam em ordem, em nome do estado. (P. 28).
- O
estado que vestiu homens de uniforme, de modo que estes pudessem ser
reconhecidos e instruídos para pisar, e antecipadamente absolvidos da culpa de
pisar, foi o estado que se encarou como a fonte, o defensor e a única garantia
da vida ordeira: a ordem que protege o dique do caos. (P. 28).
- Foi
à visão da ordem que os estranhos modernos não se ajustaram. (P.
28).
-
Quando se traçam linhas divisórias e se separa o assim dividido, tudo o que
borra as linhas e atravessa as divisões solapa esse trabalho e destroça-lhe os
produtos. (P. 28).
- Os
estranhos exalaram incerteza onde a certeza e a clareza deviam ter imperado.
(P. 28).
- Constituir
a ordem foi uma guerra de atrito empreendida contra os estranhos e o
indiferente. (P. 28).
- nessa
guerra [...] duas estratégias alternativas foram inteiramente desenvolvidas.
Uma era antropofágica: aniquilar os
estranhos devorando-os e depois, metabolicamente, transformando-os num tecido indistinguível
do que já havia. [...] A outra estratégia era antropoêmica: vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo
ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro. (P. 28-29).
- A
expressão mais comum das duas estratégias foi o notório entrechoque entre as
versões liberal e racista-nacionalista. (P. 29).
- As
pessoas são diferentes, dá a entender o projeto liberal, mas diferentes por
causa da diversidade das tradições locais e particularistas em que elas crescem
e amadurecem. São produtos da educação, criaturas da cultura e, por isso,
flexíveis e dóceis a serem transformadas. (P. 29).
-
Não é assim, objetou a opinião racista-nacionalista. A reconstrução cultural
tem limites que nenhum esforço poderia transcender. Certas pessoas nunca serão
convertidas em alguma coisa mais do que são. Estão, por assim dizer, fora do
alcance do reparo. Não se pode livrá-la de seus defeitos: se pode deixá-las
livres delas próprias [...]. (P. 29).
- Na
sociedade moderna, e sob a égide do estado moderno, a aniquilação cultural e
física dos estranhos e do diferente foi uma destruição criativa, demolindo, mas
construído ao mesmo tempo, mutilando, mas corrigindo [...] (P. 29).
- [...]
onde quer que a planejada ordem de constituição esteja em andamento, certos
habitantes do território a ser ordeiramente feito de maneira nova convertem-se
em estranhos que precisam ser eliminados. (P. 30).
- Os
estranhos eram, por definição, uma anomalia a ser retificada. Sua presença a
priori era definida como temporária [...]. (P. 30).
Do desencaixe à navegação
- O
projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou,
porem, uma firme posição contra a identidade [...] Só transformou a identidade,
que era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma tarefa
individual e da responsabilidade do indivíduo. (P. 30).
- A
identidade devia ser erigida sistematicamente, de degrau em degrau, de tijolo
em tijolo, seguindo um esquema concluído antes de iniciado o trabalho. A
construção requeria uma clara percepção da forma final [...] e a visão através
das conseqüências de cada movimento. (P. 31).
- Havia,
assim, um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a
vida individual como projeto, sendo a ultima impensável sem a primeira. (P.
31).
- Na
sociedade moderna, que comprometeu seus integrantes principalmente com os
papeis de produtores e soldados, o ajustamento e a adaptação indicavam apenas
um único caminho: era a volúvel escolha individual que precisava inventariar
sua vida [...]. (P. 32).
- Os
projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que
acomodem uma âncora, e os esforços de constituição de identidade individual não
podem retificar as conseqüências do desencaixe [...] (P. 32).
- A
imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida é destituída da
genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada
das estruturas modernas. (P. 32).
- O
mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza
que é permanente e irredutível. (P. 32).
Dimensões da incerteza presente
- [...] a incerteza radical
a propósito dos mundos material e social que habitamos e dos nossos métodos de
atividade política dentro deles (...) é o que a indústria da imagem nos oferece
(...). (P. 36).
- [...]
a mensagem hoje carregada de grande poder de persuasão pelos mais ubiquamente
eficazes meios de comunicação cultural [...] é uma mensagem da indeterminação e
maleabilidade do mundo: neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode
ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas – e o que quer que
aconteça chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso. (P. 36).
-
[...] há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar sólida e digna de
confiança [...] (P. 36).
- [...]
a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada para
receber novas imagens [...]. (P. 36-37).
- Viver
sob condições de esmagadora e auto-eternizante incerteza é uma experiência
inteiramente distinta da de uma vida subordinada à tarefa de construir a
identidade, e vivida num mundo voltado para a constituição da ordem. (P. 37).
- Os estranhos de hoje são subprodutos, mas
também os meios de produção no incessante, porque jamais conclusivo, processo
de construção da identidade. (P. 37).
Liberdade, incerteza e liberdade da
incerteza
- O que
faz certas pessoas estranhas e, por isso, irritantes, enervantes,
desconcertantes e, sob outros aspectos, “um problema”, é – vamos repetir – sua
tendência a obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem ser
claramente vistas. (P. 37).
- Em
diferentes épocas e em diferentes situações sociais, são diferentes as
fronteiras que devem ser vistas mais claramente do que outras. (P. 38).
- [...]
é característica muito difundida dos homens e mulheres contemporâneos, no nosso
tipo de sociedade, eles viverem permanentemente com o “problema da identidade”
não resolvido. (P. 38).
-
Eles sofrem, pode-se dizer, de uma crônica falta de recursos com os quais
pudesse construir uma identidade verdadeiramente sólida e duradora, ancorá-la e
suspender-lhe a deriva. (P. 38).
- [...] a própria pessoa fazer uma
identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a
interoscilações, tê-la “pela vida”, revela mais uma desvantagem do que uma
qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as
circunstâncias do seu itinerário de vida [...] (P. 38).
- [...]
isso, pode-se dizer, é um traço universal dos nossos tempos e, portanto, a
angústia relacionada com os problemas da identidade e com a disposição para se
preocupar com toda coisa “estranha” [...] é potencialmente universal.
(P. 38).
- [...]
quanto menos as pessoas controlem e possam controlar as suas vidas, bem como as
fecundas identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente
tentarão desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma envolvente,
sufocante, absorvente e informe substancia. (P. 40).
- Na
cidade pós-moderna, os estranhos significam uma coisa aos olhos daqueles para
quem a “área inútil” [...] significa “não vou entrar” e outras coisas aos olhos
daqueles para quem “inútil” quer dizer “não posso sair”. (P. 40-41).
- Os
estranhos são pessoas que você paga pelos sérvios que elas prestam e pelo
direito de terminar com os serviços delas logo que já não tragam prazer.
(P. 41).
- A
viscosidade dos estranhos [...] é reflexo de sua própria falta de poder. É essa
sua carência de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrível força
dos estranhos. (P.42).
- As
idéias, e as palavras que as transportam, mudam de significado quanto mais
longe elas viajam. (P. 42).
A
teoria da diferença, ou o sinuoso caminho para a humanidade partilhada
- A
viscosidade dos estranhos e a política de exclusão originam-se da lógica da
polarização [...] para a oprimida a que foram negados os recursos de construção
da identidade e, assim [...] todos os instrumentos da cidadania. (P. 48).
-
Não é meramente renda e riqueza, expectativa de vida e condições de vida, mas
também – e talvez mais fundamentalmente – o direito à individualidade, que está
sendo crescentemente polarizado. (P. 48).
Muito obrigado
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