BAUMAN,
Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.
Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed,
1998.
O SONHO DA PUREZA
- Os
grandes crimes, frequentemente, partem de grandes idéias. (P. 13).
- Nos primeiros anos da idade moderna, como
Michel Foucault nos lembrou, os loucos eram arrebanhados pelas autoridades
citadinas, amontoados dentro de Narrenschiffen (“naus dos loucos”) e jogados ao
mar; os loucos representavam “uma obscura desordem, um caos movediço (...) que
se opõe a estabilidade adulta e luminosa da mente”, e o mar representava a
água, que “leva deste mundo, mas faz mais: purifica”. (P. 13).
- A
intervenção humana decididamente não suja a natureza, e a torna imunda: ela
insere na natureza a própria distinção entre pureza e imundície, cria a própria
possibilidade de uma determinada parte do mundo ser “limpa” ou “suja”.
(P. 14).
- A
pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas
ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas,
arrastadas ou incitadas; é uma visão da ordem – isto é, de uma situação
em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não
há nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”,
sem atribuir às coisa seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorrem
serem aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente” por sua livre
vontade. (P. 14).
- O
oposto da pureza [...] são as coisas fora do lugar. (P. 14).
- Não
são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, mas,
tão somente sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que
procuram a pureza. (P. 14).
- As
coisas que são sujas num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem
colocadas num outro lugar – e vice-versa. Sapatos magnificamente
lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeição,
restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam sua prístina e pureza. (p.
14).
- Ordem
significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em
que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas
arrumadas numa hierarquia estrita [...]. (P. 15).
- A sujeira, sugeriu Douglas (Mary Douglas)
“é essencialmente desordem. Não há nenhuma coisa que seja sujeira absoluta. Ela
existe ao olhar do observador. (...) A sujeira transgride a ordem. Eliminá-la
não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente.
[...] se o desasseio é coisa inapropriada, devemos atacá-lo através da ordem. O
desasseio ou a sujeira é o que não deve ser incluído se um padrão precisa ser
mantido. (P. 16).
-
Conforme a análise de Mary Douglas, o interesse pela pureza e a obsessão com a
luta contra a sujeira emergem como características universais dos seres humanos:
os
modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para
outra, de uma cultura para outra – mas cada época e cada cultura tem um certo
modelo de pureza e um certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes
às disparidades. (P. 16).
- O
criador da sociologia fenomenológica, Alfred Schütz, fez nos conscientes das
características da vida humana que parecem obvias no momento em que são
ressaltadas: de que, se nós, humanos, podemos “achar nossas posições dentro de
nosso ambiente natural e sociocultural e chegamos a um acordo sobre isso” é
graças ao fato de que esse ambiente foi antes “pré-selecionado e
pré-interpretado (...) por uma serie de constructos de senso comum da realidade
da vida diária”. (P. 17).
- Nenhum
de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada:
cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são
importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem
certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. (P. 17).
- “Só
posso compreender os atos de outra pessoa”, diz Schütz, “se puder imaginar que
eu mesmo praticaria atos análogos caso tivesse na mesma situação, regulada
pelos mesmos motivos de por que, ou orientadas pelos mesmos motivos de para que
[...]. (P. 18).
- [...] a chegada de um estranho tem o
impacto de um terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a
segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições do local
– e, desse modo, “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão
quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado.
Ele “tem de” cometer esse ato, perigoso e deplorável porque não tem nenhum
status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe
“natural” [...]. (P. 19).
- Se a
“sujeira” é um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e
a sujeira automática, autolocomotora e autocondutora é um elemento que desafia
a própria possibilidade de esforços eficientes, então, o estranho é a
verdadeira síntese desta ultima. (P. 19).
- [...]
o cuidado com a ordem significou a introdução de uma nova ordem, ainda por
cima, artificial – constituindo, por assim dizer, um novo começo. De fato, PODE-SE
DEFINIR A MODERNIDADE COMO A ÉPOCA, OU O ESTILO DE VIDA, EM QUE A COLOCAÇÃO EM
ORDEM DEPENDE DO DESMANTELAMENTO DA ORDEM “TRADICIONAL”, HERDADA E RECEBIDA; EM
QUE “SER” SIGNIFICA UM NOVO COMEÇO PERMANENTE. (P. 20).
- Cada
ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria
sujeira que precisa ser varrida. (P. 20).
- O
cuidado com a pureza concentra-se não tanto no combate à “sujeira primária” quanta
na luta contra a “metassujeira” – contra afrouxar ou negligenciar totalmente o
esforço de manter as coisas como são [...] (P. 20).
- “Vizinhos
do lado” inteiramente familiares e sem nenhum problema podem da noite para o
dia converter-se em estranhos aterrorizantes, desde que uma nova ordem se
idealiza [...]. (P. 21).
-
Quase todas as fantasias modernas de um “mundo bom” foram em tudo profundamente
antimodernas, visto que visualizaram o fim da história comprometida com um
processo de mudança. (P. 21).
- Uma
vez que o critério da pureza é aptidão de participar do jogo consumista, os
deixados de fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida,
são consumidores falhos – pessoas incapacitadas de responder aos atrativos do
mercado consumidor porque lhes faltam recursos requeridos, pessoas incapazes de
ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do
poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros” que nãos e ajustam
ao novo esquema de pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado
consumidor, eles são redundantes – verdadeiramente “objetos fora do lugar”.
(P. 24).
- Os centros comerciais e os supermercados,
templos do novo credo consumista, [...] impedem a entrada dos consumidores
falhos à suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes
eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades
onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas
liberdades [...]. (P. 24).
- A
modernidade viveu num estado permanente de guerra à tradição, legitimada pelo
anseio de coletivizar o destino humano num plano mais alto e novo, que
substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor.
Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca
irreverência contra os seus próprios princípios. (P. 26).
- A
pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se
despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para
desregulamentar e privatiza. (P. 26).
- A
mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os
revolucionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas
próprias mãos – assaltantes, gatunos, ladrões de carros [...]. (P. 26).
- A
busca da pureza moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as
classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a
ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas
proibidas, os vagabundos e indolentes. (P. 26).
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