Dado
que a narrativa pressupõe a memória, de forma incondicional, e que esta – no
contexto da modernidade – passa por um processo de atrofiação, devido ao
processo de aceleração que caracteriza o progresso e os acontecimentos da
modernidade, onde tudo o que é feito, é feito para ser deixado de lado e
esquecido no momento seguinte em razão de novos feitos que vão sendo
realizados, um problema vem alume: como narrar na modernidade e para quem
narrar nessa sociedade onde a transformação rápida das coisas é a sua
característica primordial e a memória já não comporta tanta importância
considerando que o seu papel fundamental é o de gravar, ou registrar, os
acontecimentos culturais de uma geração de uma dada época histórica para – num
momento posterior – serem transmitidas às outras gerações que naturalmente vão
aparecendo?
Partindo
do principio de que a narrativa pressupõe uma forma de ligação com a memória,
de modo que só se pode narrar àquilo que previamente fora armazenado na mesma,
logo, deve se considerar a relevância que essa (memória) possui para o
narrador. Ela é como que o depósito das coisas vividas e que agora passam a ser
guardadas quando já não mais é possível viver na prática, mas somente através
da imaginação por meio de um retorno que se dá pela arte de contar. Em outros
termos, pode-se dizer que a memória é como que a caixa preta do sujeito, ou de
uma determinada cultura, onde são arquivados as experiências e acontecimentos
em geral.
Dois
conceitos-chaves fundamentais para o entendimento do que, de fato, constitui a
narrativa são: experiência e transmissão. Aqui cumpre ressaltar que só se pode
falar de memória se houver o processo de transmissão das experiências que se
sucedem em suas respectivas épocas. É por meio desse processo de transmissão que
os homens dão vida ao passado distante. Distante e próximo, o passado (enquanto
acontecimentos já concretizados) é algo que sobrevive de forma contínua na
medida em que é armazenado na memória dos indivíduos perpassando de geração em
geração para se manter para sempre. Quanto a isso, Benjamin refere que “a experiência que passa de pessoa para
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” [1].
Esse processo de transmissão, responsável pela continuidade de idéias,
costumes, gestos, atos etc. de uma determinada cultura não somente passa a ter
uma importância significativa na arte de narrar, como também representa a
própria possibilidade desta vir a ser.
Para
a continuidade da experiência, a relação entre a transmissão e a experiência
vem a lume como sendo uma relação indissociável. Obviamente, as experiências só
podem existir por muito tempo se elas forem continuadas. Entretanto, para isso,
elas precisam ser transmitidas. Nesse sentido, Benjamin chama a atenção para um
dos problemas que essa relação entre experiência e transmissão vai encontrar no
contexto da modernidade. Segundo ele “são
cada vez mais rara as pessoas que sabem narrar devidamente”. [2]
Uma das conseqüências que disso decorre é o risco de extinção que ameaça a arte
de narrar. Quanto a isso, percebe-se, portanto, que na modernidade a relação da
experiência com a narrativa passa a ser marcada por grandes crises e tensões
constantes, uma vez que a evolução da modernidade se dá em caráter linear.
Cumpre
lembrar que a narração pode ser feita de várias maneiras, o que evidentemente,
significa que ela não se limita apenas em falar o que aconteceu, o que está
posto, mas transcendendo isso avança sempre um pouco mais na medida em que se
vale de outras ferramentas tais como os gestos corporais, conforme se verá mais
adiante. Não faz parte da preocupação do narrador detalhar os fatos e
acontecimentos, pois, como é sabido, isso é competência exclusiva do
historiador. Entretanto, tudo o que ele (narrador) quer é conhecer o que se
passa nas gerações. Para isso, ele não precisar necessariamente sair da sua e
adentrar nas outras em termos concretos, mas, antes de tudo ser um conhecedor
da história da sua época com suas respectivas tradições. Sendo assim, Benjamin
diz que
[...]
existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do
narrador só se torna plenamente tangível se termos presente esses dois grupos.
“Quem viaja tem muito que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador
como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que
ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece sua história e
tradições. [3]
O conceito de narrador apresentado por
Benjamin parte do princípio de que o narrador não é somente aquele que se
desloca de lugar a lugar a fim de conhecer o que nessas localidades se passa em
termos de cultura e tradição, mas, também aquele indivíduo que conhece, ou
procura conhecer melhor suas raízes históricas, seu passado, ou seja, um
passado comum aos seus antecedentes.
No
ato de narrar também está implícita a gesticulação, isto é, usa-se não somente
a fala, mas também o corpo, o que, certamente, acompanhava a narrativa na
prática do trabalho artesão[4],
conforme se verá. Nesse sentido, a narração também se dá com os olhos, com as
mãos, gestos e demais coisas ligadas ao corpo concreto. Ela tem uma
temporalidade comum a diversos indivíduos de uma mesma cultura, ou grupo. Desse
modo, ela prevê o coletivo, e as próprias experiências que passam pela narração
também são experiências coletivas, comuns dentro de uma determinada cultura. Em
outros termos, a narrativa também pressupõe experiências coletivas. Se isso,
entretanto, é uma característica da narrativa no âmbito da tradição, essa
característica vai ser suprimida no contexto da modernidade, haja vista, nessa
(modernidade) haver uma degradação ininterrupta das experiências coletivas,
contribuindo assim para o fortalecimento das crises que ameaçam a narrativa.
Sem dúvida, uma das razões pela qual esse processo de degradação se viabilizou
deveu-se à perda da capacidade dos indivíduos em armazenar coisas nas
profundezas da memória. Essa incapacidade também resulta do fato de, na
modernidade, o sujeito está o tempo em todo em estado de alerta, o que,
obviamente, é uma característica do mundo moderno. Evidentemente, isso decorre
do fato do espaço moderno ser marcado por um processo de rapidez onde,
sobretudo, já não há lugar para o estar
desatento.
[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 198.
[2] Ibid., p. 197.
[3] Ibid., p. 198-199.
[4] “A alma, o olho e a mão estão assim
inscritos no mesmo campo. Integrando, eles definem uma prática. Essa pratica
deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais
modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a
narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da
voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos,
aprendidos na experiência do trabalho, que sustenta de cem maneiras o fluxo do
que é dito). A antiga coordenação da alma, do olho e da mão [...] é típica do
artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja
praticada”. (Cf. BENJAMIN, Walter. Magia
e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 220-221)
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