Atrelada ao estado aparece a reflexão
ricoeuriana com ênfase na economia, também em âmbito racional universal. Um
aspecto importante de ser notado no que tange ao assunto diz respeito ao fato
de que no meio econômico também há toda uma preocupação por buscar instrumentos
que de algum modo contribuam para a sua universalização. Com exemplo pode-se
citar as técnicas de manutenção e regularização dos mercados. Nesse sentido,
Ricoeur refere que
Pode-se
falar de uma única ciência e de uma técnica econômica de caráter internacional
integrada em finalidades econômicas diferentes e que, ao mesmo passo, criam de
bom ou malgrado fenômenos de convergência, cujos efeitos parecem, de fato,
inelutáveis. [1]
Assim
como os instrumentos, que são redimensionados pela técnica, a economia também
não possui uma pátria definida. Isso decorre justamente do fato dela ser parte
da atividade humana em caráter mundial. Um exemplo disso pode ser observado
sempre que uma bolsa de valor tende a cair bruscamente. Os efeitos logo são
sentidos no mundo todo. Para constatar isso, basta lembrar a quebra da bolsa de
nova Iorque em 1929 que pôs o mundo em crise. De todos os fenômenos da globalização,
talvez esse (econômico) seja aquele que melhor se percebe e que com mais
intensidade se sente os seus efeitos, dadas as suas alterações. Talvez seja
também aquele que com mais eficiência interliga os habitantes de todo o mundo
numa conexão indissolúvel. Diante do fenômeno da mundialização é que Ricoeur
diz que “a universalidade de origem e de caráter cientifico colore finalmente
de racionalidade todas as técnicas humanas” [2].
Ou seja, nada escapa a esse processo, ele abrange tudo e universaliza tudo.
Impõem sobre todo o mundo as mesmas necessidades. Tudo isso só possível por
causa da técnica que se deu em graus variados.
E
estas não são apenas técnicas de produção, mas também de transporte, de
relações, de bem-estar, de lazer, de informação; poder-se-ia falar de técnicas
de cultura elementar mais precisamente de cultura de consumo de caráter mundial
que elabora um gênero de vida de caráter universal. [3]
Essa é, portanto, a civilização mundial;
algumas de suas características; algumas de suas procedências e alguns de seus
efeitos. Ela, na verdade, é uma imposição do sistema capitalista que age
subjugando os valores humanos e culturais aos seus interesses, tornando-os
vulneráveis. Foi ele (capitalismo) que provocou o processo de massificação das
sociedades e a própria cultura de massa; que enriqueceu a uns poucos e
empobreceu a uns muitos e extinguiu total ou parcialmente diversas culturas.
Questionando o significado dessa civilização,
Ricoeur refere que, “pode-se dizer [...] que ela constituiu um progresso
verdadeiro [...]. Existe progresso quando são satisfeitas duas condições
seguintes: de um lado, um fenômeno de acumulação e, de outro, um fenômeno de
melhoramento”.[4]
Essa reflexão sobre a acumulação é uma reflexão de destaque não somente em
Ricoeur, mas também em autores como, por exemplo, Marx. Comparando esses dois
autores, pode-se dizer que há alguma semelhança em seus pensamentos. Um exemplo
disso é quando Ricoeur diz que “a transformação dos meios em novo meios constitui
o fenômeno da acumulação, o que faz, aliás, com que exista uma história uma
história humana” [5].
A semelhança com Marx, neste caso, reside no fato de Marx – em a Ideologia Alemã
– defender a idéia de que o homem só faz história depois que ele garante a sua
subsistência. A noção de garantia da subsistência, de algum modo, já introduz a
noção de acumulação.
Mesmo diante dos impactos sofridos pelas
culturas em vista da civilização universal, Ricoeur não teme em dizer que elas
também significaram um bem para a humanidade. Esse bem reside, sobretudo, no
fato de que elas “representam o acesso das massas da humanidade aos bens
elementares”.[6]
É a partir daí que Ricoeur chega à conclusão de que “nenhuma espécie de crítica
da técnica poderá contrabalançar o benefício absolutamente positivo da
libertação da inércia e do acesso em massa ao bem-estar”. [7]
Ricoeur, portanto, não é um crítico ferrenho da técnica e do progresso.
Todavia, se, por um lado, ele reconhece a importância que ambas tiveram, ou
representaram, para a humanidade no decorrer da sua história, por outro, ele
igualmente reconhece seu lado negativo.
É,
entretanto, de outra parte necessário admitir que tal desenvolvimento apresenta
um caráter contrario. Ao mesmo tempo que uma promoção da humanidade constituiu
o fenômeno da universalização uma espécie de sutil destruição, não somente das
culturas tradicionais, o que talvez não fosse um mal irreparável, mas aquilo
que eu chamaria provisoriamente [...] o núcleo criador das grandes civilização,
das grandes culturas, esse núcleo a partir do qual interpretamos a vida e que
denomino por antecipação, o núcleo ético
e mítico da humanidade.[8]
Ricoeur toma ciência do perigo que a técnica
representa no que diz respeito à extinção total ou parcial das culturas, dada a
intervenção no núcleo ético e mítico. Essa ameaça decorre, sobretudo, da
universalização em face da qual tudo tende a mudar. Desse modo, Ricoeur parece
chegar ao cerne do problema. Eis, ai seu questionamento: “Para entrar na via da
modernização, será preciso lançar fora o velho passado cultural que tem sido a
razão de ser de um povo?”. [9]
Essa é, portanto, a grande pergunta e, por conseguinte, o mistério ao qual ele
procura desvendar.
Ricoeur parte do princípio de que as culturas
podem ser definidas como um conjunto de valores ou valorações, embora seja
difícil de entender o significado disso. “Esses valores próprios de um povo,
que o constituem como povo, devem ser buscado muito abaixo”. [10]
Esse último termo aqui significa as raízes ou origens aonde os valores foram
produzidos, ou iniciados. Nesse sentido, ele afirma que “se se quer atingir o
núcleo cultural, é preciso escavar até aquelas camadas de imagens e símbolos
que constituem as representações básicas de um povo”. [11]
Imagens e símbolos, nesse contexto, não dizem respeito somente a utensílios
reais, ou materiais que as culturas ou os povos usam para expressar seus
costumes e suas práticas, mas também “constituem aquilo que se poderia chamar o
sonho em estado de vigília de um grupo histórico”.[12]
Ou seja, os anseios, desejos e aspirações, enfim, a utopia de um povo, enquanto
marco norteador das suas práticas e de seus valores culturais. Daí, conclui
Ricoeur, “é nesse sentido que falo do núcleo ético-mítico que constitui o fundo
cultural de um povo”.[13]
No escrito sobre o qual este artigo discorre,
Ricoeur faz ainda inúmeras considerações sobre as culturas. Entretanto, não
serão enfatizadas neta investigação. Para isso, seria necessário outro trabalho
mais amplo, pois, a continuidade aqui extrapolaria os limites deste.
REFERÊNCIA
RICOEUR, Paul. História
e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968.
[2] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[3] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[4] Cf. Id. Ibidem, p. 281
[5] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[6] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[7] Cf. Id. Ibidem, p. 282.
[8] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[9] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[10] Cf. Id. Ibidem, p. 285.
[11] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[12] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[13] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
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