sexta-feira, 19 de outubro de 2012

MODERNIDADE VERSUS TRADIÇÃO: A CRISE E O DECLÍNIO DA NARRATIVA NA ÓTICA DE WALTER BENJAMIN


Este trabalho foi apresentado na ocasião do XIV Encontro
de Pesquisa em Filosofia da UNICAMP

RESUMO
Palavras-chaves: Modernidade – Narrativa – Informação – Romance – Experiência – Transmissão.

ABSTRACT
This research discusses the crisis of narrative in the context of the modern era, from the writings of Walter Benjamin. What is sought with it (research) is to understand some of the factors and events that contributed to the modern decay of the narrative, for example, the stagnation in the transmission process of the experiments (which represented the impossibility of continuing the narrative), the romance (which began to stress the issue of individuality, is marking one of the aspects of modernity) and journalistic information (which was preferred in the context of modernity, because of the accelerated process of life that the modern era trousse to the subject), among others aspects.

Keywords: Modernity - Narrative - Information - Romance - Experience - Transmission.


  
1.  INTRODUÇÃO


O trabalho a ser desenvolvido tem como propósito – a partir do pensamento de Walter Benjamin – entender as razões pelas quais se deu a crise e o declínio da narrativa no contexto da era moderna. Cumpre ressaltar que não constitui interesse desta pesquisa determinar precisamente todos os fatores que contribuíram para a queda da narrativa no contexto da era moderna – haja vista serem muitos –, mas apenas procurar entender algumas, tais como a informação jornalística, o romance, a estagnação do processo de transmissão das experiências, o desprezo para com o ancião, dentre tantas.
Em se tratando da estrutura a pesquisa compõe-se de duas partes. A primeira, fazendo um esboço geral sobre a narrativa, procura compreender as razões pelas quais a transmissão das experiências no contexto da era moderna se torna improcedente. Ainda nesse aspecto, buscar-se-á demonstrar que a transmissão sempre foi uma necessidade intransponível para o advento da narrativa. Um subitem desse primeiro tópico intitulado “A atrofiação da memória e o êxito da lembrança” reflete sobre como a memória foi, ao poucos, se tornando inválida para o homem moderno dado a supressão da necessidade de gravar. É como se na modernidade tivesse desaparecido a preocupação pelas gerações futuras em se tratando de cultura. No caso da perda do sentido da memória, o que se leva em conta aqui é a função da memória, a qual consiste em arquivar as histórias e os acontecimentos para depois serem recordados ou lembrados, o que obviamente, não faz parte do projeto da modernidade.
A segunda parte, à sua vez, discorre sobre o romance e a informação jornalista que, em linhas gerais, representaram duas formas severas de ataque à tradição e à própria narrativa. A informação que passa a ser muito difundida na modernidade surge em contraste à narração pelo fato de que enquanto esta é longa e linear, aquela é curta e descontínua. Assim como a informação jornalística, o romance também possui uma posição de contraste com a narrativa. Neste caso, a diferenciação se dá na medida em que o romance vai ser construído a partir de uma perspectiva individualista, onde passará a descrever a vida dos indivíduos isolados, enquanto que a narrativa visa o coletivo, aquilo que se dá em grupo. 

2.   A RELAÇÃO ENTRE EXPERIÊNCIA E TRANSMISSÃO

Dado que a narrativa pressupõe a memória, de forma incondicional, e que esta – no contexto da modernidade – passa por um processo de atrofiação, devido ao processo de aceleração que caracteriza o progresso e os acontecimentos da modernidade, onde tudo o que é feito, é feito para ser deixado de lado e esquecido no momento seguinte em razão de novos feitos que vão sendo realizados, um problema vem alume: como narrar na modernidade e para quem narrar nessa sociedade onde a transformação rápida das coisas é a sua característica primordial e a memória já não comporta tanta importância considerando que o seu papel fundamental é o de gravar, ou registrar, os acontecimentos culturais de uma geração de uma dada época histórica para – num momento posterior – serem transmitidas às outras gerações que naturalmente vão aparecendo?
Partindo do principio de que a narrativa pressupõe uma forma de ligação com a memória, de modo que só se pode narrar àquilo que previamente fora armazenado na mesma, logo, deve se considerar a relevância que essa (memória) possui para o narrador. Ela é como que o depósito das coisas vividas e que agora passam a ser guardadas quando já não mais é possível viver na prática, mas somente através da imaginação por meio de um retorno que se dá pela arte de contar. Em outros termos, pode-se dizer que a memória é como que a caixa preta do sujeito, ou de uma determinada cultura, onde são arquivados as experiências e acontecimentos em geral.
Dois conceitos-chaves fundamentais para o entendimento do que, de fato, constitui a narrativa são: experiência e transmissão. Aqui cumpre ressaltar que só se pode falar de memória se houver o processo de transmissão das experiências que se sucedem em suas respectivas épocas. É por meio desse processo de transmissão que os homens dão vida ao passado distante. Distante e próximo, o passado (enquanto acontecimentos já concretizados) é algo que sobrevive de forma contínua na medida em que é armazenado na memória dos indivíduos perpassando de geração em geração para se manter para sempre. Quanto a isso, Benjamin refere que “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores[1]. Esse processo de transmissão, responsável pela continuidade de idéias, costumes, gestos, atos etc. de uma determinada cultura não somente passa a ter uma importância significativa na arte de narrar, como também representa a própria possibilidade desta vir a ser.
Para a continuidade da experiência, a relação entre a transmissão e a experiência vem a lume como sendo uma relação indissociável. Obviamente, as experiências só podem existir por muito tempo se elas forem continuadas. Entretanto, para isso, elas precisam ser transmitidas. Nesse sentido, Benjamin chama a atenção para um dos problemas que essa relação entre experiência e transmissão vai encontrar no contexto da modernidade. Segundo ele “são cada vez mais rara as pessoas que sabem narrar devidamente”. [2] Uma das conseqüências que disso decorre é o risco de extinção que ameaça a arte de narrar. Quanto a isso, percebe-se, portanto, que na modernidade a relação da experiência com a narrativa passa a ser marcada por grandes crises e tensões constantes, uma vez que a evolução da modernidade se dá em caráter linear.
Cumpre lembrar que a narração pode ser feita de várias maneiras, o que evidentemente, significa que ela não se limita apenas em falar o que aconteceu, o que está posto, mas transcendendo isso avança sempre um pouco mais na medida em que se vale de outras ferramentas tais como os gestos corporais, conforme se verá mais adiante. Não faz parte da preocupação do narrador detalhar os fatos e acontecimentos, pois, como é sabido, isso é competência exclusiva do historiador. Entretanto, tudo o que ele (narrador) quer é conhecer o que se passa nas gerações. Para isso, ele não precisar necessariamente sair da sua e adentrar nas outras em termos concretos, mas, antes de tudo ser um conhecedor da história da sua época com suas respectivas tradições. Sendo assim, Benjamin diz que

[...] existem dois grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se termos presente esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece sua história e tradições. [3]


  O conceito de narrador apresentado por Benjamin parte do princípio de que o narrador não é somente aquele que se desloca de lugar a lugar a fim de conhecer o que nessas localidades se passa em termos de cultura e tradição, mas, também aquele indivíduo que conhece, ou procura conhecer melhor suas raízes históricas, seu passado, ou seja, um passado comum aos seus antecedentes.
No ato de narrar também está implícita a gesticulação, isto é, usa-se não somente a fala, mas também o corpo, o que, certamente, acompanhava a narrativa na prática do trabalho artesão[4], conforme se verá. Nesse sentido, a narração também se dá com os olhos, com as mãos, gestos e demais coisas ligadas ao corpo concreto. Ela tem uma temporalidade comum a diversos indivíduos de uma mesma cultura, ou grupo. Desse modo, ela prevê o coletivo, e as próprias experiências que passam pela narração também são experiências coletivas, comuns dentro de uma determinada cultura. Em outros termos, a narrativa também pressupõe experiências coletivas. Se isso, entretanto, é uma característica da narrativa no âmbito da tradição, essa característica vai ser suprimida no contexto da modernidade, haja vista, nessa (modernidade) haver uma degradação ininterrupta das experiências coletivas, contribuindo assim para o fortalecimento das crises que ameaçam a narrativa. Sem dúvida, uma das razões pela qual esse processo de degradação se viabilizou deveu-se à perda da capacidade dos indivíduos em armazenar coisas nas profundezas da memória. Essa incapacidade também resulta do fato de, na modernidade, o sujeito está o tempo em todo em estado de alerta, o que, obviamente, é uma característica do mundo moderno. Evidentemente, isso decorre do fato do espaço moderno ser marcado por um processo de rapidez onde, sobretudo, já não há lugar para o estar desatento.

2.1. A atrofiação da memória e o êxito da lembrança

Marcada pela inconstância e pela interrupção constante dos acontecimentos, pode-se dizer que na modernidade reina um princípio de incerteza de tal modo que já não se pode prever nem mesmo o que está para acontecer. Nesse sentido, Singer enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fazes anteriores da cultura humana”. [5] Desse modo, pode-se dizer que no ambiente moderno, o homem já não pode mais memorizar, mas apenas lembrar aquelas coisas que anteriormente foram memorizadas, isto é, quando o espaço físico (isento de complexidade) ainda lhe propiciava o gozo de tal privilégio. O sujeito moderno, portanto, é aquele vive de lembranças em razão da descontinuidade – característica intrínseca da modernidade – que obstaculariza a arte de memorizar. Com toda essa estrutura complexa da modernidade, o homem moderno não poderia ser outro senão o homem do alerta, orientado pelo alarme, o homem mecânico. Portanto, Mesmo sendo a lembrança aquela coisa pela qual a modernidade vai se interessar, mesmo assim, é a narrativa que, em meio a tanta pressão, ainda desfruta do privilégio de conter, ou conduzir em seu núcleo a moral da história.
A relação entre a memória é a lembrança, evidentemente é uma relação horizontal de pertença, no sentido de que uma se apresenta como fundamento para a outra. Se por um lado a lembrança é aquilo que faz com que a memória não seja esquecida e se mantenha, portanto, ao longo das gerações, por outro, a memória é ela mesma a possibilidade e o fundamento dessas próprias lembranças. Entretanto, não se pode optar por privilegiar somente as lembranças como se as gerações do presente fossem as ultimas a existir. Assumindo ou não, essas gerações darão origem a outras. O problema que decorre disso consiste em saber como se comportarão essas futuras gerações uma vez que na memória dos seus indivíduos um vazio profundo e constante far-se-á presente. Aqui, poder-se-ia supor, essas gerações como sendo espécie de gerações superficiais na medida em que não comporta uma raiz, um fundo cultural sobre o qual ela possa se destacar fazendo sua história e sua vida, além de preparar os caminhos para as posteriores por vir. É uma geração que caminha para o nada, para o vácuo. Indubitavelmente esse foi o erro da modernidade, que impôs muitas resistências à memória à medida que apertava os cercos contra a narração. Certamente, só está na memória aquilo que passou pelo processo de vida real dos indivíduos desde a infância até os o confins da vida quando a morte, então, se aproxima. Mas, a própria morte também se configura como relevante para a continuidade da narrativa dado que ela igualmente favorece a existência do processo de transmissão. Entretanto, é preciso ressaltar que mesmo a morte – que é algo natural nos indivíduos, da qual nenhum ser vivo consegue escapar eternamente, a não ser passando por ela – o recinto do capitalismo, que é a sociedade moderna, tornou-a estranha aos indivíduos, de tal modo a observa-se hoje a existência de uma sociedade onde ninguém quer morrer. É como se a morte fosse a mais intensa de todas as dores, como se ela representasse o castigo eterno, o tormento que nunca tem fim, a tortura ou o sofrimento que jamais se acaba. Ora, essa sociedade que não quer morrer, é a mesma sociedade que não que envelhecer; é a sociedade do superficial que flutua sobre as ondas da moda, dos salões de beleza, das cirurgias plásticas, etc. A velhice nesse sentido passa a ser objeto de repulsa da maior parte dos indivíduos, sobretudo, os mais jovens, que são – diga-se de passagens – as principais vitimas do sistema capitalista, principalmente aqueles desprovidos de senso crítico e visão de mundo. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, “enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil[6]. Tornar-se velho nessa sociedade dominada pelo capitalismo moderno significa tornar-se insignificante, sendo essa uma das razões pelas quais quem é jovem não quer ser velho. Aquilo que o ancião tem de mais nobre é justamente aquilo que para a sociedade moderna não vai ter nenhum interesse, nenhuma relevância. Essa nobreza que ele possui constitui, portanto, as experiências que foram acumuladas ao longo de sua vida, e que agora dependem de uma transmissão para não se perderem na eternidade. É justamente nesse sentido que a morte contribui para a linearidade da narrativa. Para fins de ilustração do que acima está dado, considera-se o seguinte pensamento benjaminiano:

A idéia de eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia.[7]


Evidentemente, essa mudança ocorrida no rosto da morte foi provocada por razões já esclarecida, mas que aqui cabe reiterar, como por exemplo, o desenvolvimento do capitalismo que, manipulando a consciência das pessoas, deu origem a uma série de elementos que distanciaram do homem aquilo que lhe é natural e intrínseco, dentre elas, a própria morte. “Hoje”, diz Benjamin, “a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivo”. [8] Se, por um lado, a repulsa da morte, vai significar uma possibilidade do fim da narrativa, por outro, o oposto vai significar, então, a sua ininterrupção.  Segundo Benjamin,

[...] é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens [...], assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem a narrativa está essa autoridade. [9]


A relevância da morte para a narrativa se dá, sobretudo, pelo fato dela possibilitar a transmissão dos saberes adquiridos e acumulados ao longo da vida daquele que morre; saberes esses que fazem do ancião uma espécie de rei, todavia, sem trono, sem cátedra e sem coroa. Para a narrativa, portanto, a morte não significa fim ou ruptura, mas a própria possibilidade de continuidade sem interrupção.
Partindo do princípio de que narrar também pode ser entendido como a arte de “contar”, Jeanne Marie Gagnebin refere que “a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem mais na sociedade capitalista moderna[10]. O que se torna aqui passível de percepção é que o espaço para a narrativa passa a ser cada vez mais estreito dentro da estrutura de uma sociedade, qual seja, a sociedade capitalista voltada, primordialmente, para a busca de riqueza. Com a atenção focada para a cultura da aquisição de lucro, a sociedade capitalista passa a dar mais ênfase naquilo que é feito o mais rápido possível, às pressas. Desse modo, algumas das formas tradicionais de produção vão se chocar com uma série de fatores modernos, sobretudo, quando, de algum modo, representam uma espécie de atraso, ou lentidão no projeto de construção da modernidade, que é a idéia de progresso. Uma dessas formas tradicionais, por exemplo, é a atividade do artesanato. De acordo com Gagnebin (refletindo sobre a narrativa em Benjamin),

O artesanato permite, devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho se inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. [11]


Há, portanto, um choque entre os meios tradicionais (pelos quais a narrativa era favorecida) e os do mundo moderno que restringem àqueles. Enquanto na tradição a noção de tempo – no sentido de tranqüilidade, em contraste com a rapidez que constitui um dos traços característicos da modernidade – era fundamental na arte de narra, na era moderna esse tempo só vai ter sentido se ele se encaixar nas estruturas e parâmetros da modernidade. Ou seja, no mundo moderno, o que dá sentido ao tempo é o fato dele ser rápido e descontínuo. Isso porque devido ao devir constante que caracteriza o mundo moderno, tudo muda e de forma muito rápida. Por essa razão é que já não se pode mais pensar na atividade artesã como algo de muita relevância para a sociedade moderna, que é essa sociedade capitalista que está presente, que se apossa de tudo e toma tudo quanto for possível para si. A narrativa não comunga do tempo moderno justamente pelo fato de que nesse tempo o seu tempo não se encaixa. É justamente ai que tanto a narrativa quanto a própria história correm o risco de cair no esquecimento e ser, portanto, extinta, uma vez que o mundo moderno por sua própria diferença da tradição já permite que assim o seja. Como diz Benjamin: “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas”. [12]

3. O ROMANCE E A INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA

Dada a fragilidade da tradição no âmbito do mundo moderno, duas formas de bombardeio à narrativa passam a figurar como elementos fundamentais na estrutura de uma sociedade que busca – a ferro e fogo – se desprender do seu passado. Quanto a isso, Gagnebin diz que “no momento em que a experiência coletiva se perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas de narrativa tornam-se predominantes. Benjamin cita o romance e a informação jornalística”.[13] Há nesse contexto um processo de substituição do velho pelo novo. A informação e o romance, nesse contexto, são, portanto, dois elementos da modernidade sobre os quais o alemão vai dedicar muita reflexão para tentar entender, a partir daí, como se alarga a crise da narrativa nos tempos da era moderna. A autora menciona que há algo em comum entre esses dois elementos, que seria, então, “a necessidade de encontrar uma explicação para o conhecimento, real ou ficcional”. [14] A diferencia básica que há entre ambos reside no fato de que enquanto “a informação jornalística deve ser plausível e controlável; [...] o romance parte da procura do sentido – da vida, da morte, da história[15]. Dessas duas prerrogativas da modernidade, a que mais se contrasta com a narrativa é, sem duvida a informação. Um dos contrastes que permeia entre a informação e narrativa diz respeito ao fato de que enquanto a narrativa é longa e ininterrupta, a informação, por sua vez, é curta e descontínua. Enquanto no contexto da tradição evitava-se ao máximo possível a informação, ou seja, a brevidade, no sentido da narração, na modernidade somente a recíproca é verdadeira. Há, portanto, uma inversão da ordem tradicional de tal modo que enquanto mais próximo da informação si estiver, mais longe da narrativa se permanece, e vice-versa. Com o início da modernidade – que provocou uma aceleração progressiva no ritmo de vida dos indivíduos, de tal modo que a preferência pelo “breve” se torna uma opção inevitável – a informação jornalística ganha espaço no novo mundo que aflora favorecida, sobretudo, pelos acontecimentos desastrosos que simultaneamente iam ocorrendo. Sendo assim, as informações pelas quais os leitores mais se debruçavam, eram aquelas dos jornais sensacionalistas, que abordava, exclusivamente, mortes de pedestres. [16]
No sentido de que a informação se volta para o imediato, para aquilo que acontece no momento presente, Benjamin refere que,

O saber que vem de longe encontra hoje menos ouvinte que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição –, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. [...]. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porem, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. [17]


No mundo moderno, portanto, não há mais lugar para os saberes tradicionais, principalmente, pela razão de que as experiências da modernidade vão se dá a partir de coisas que não fazem parte da tradição, ou que se quer a tradição conheceu, como por exemplo, a televisão, o jornal, etc. Evidentemente, a informação não comporta a mesma riqueza de conhecimento tal como na narrativa. Umas das razões disso decorrem do fato de que – devido à diversidade e quantidade de acontecimentos do mundo moderno – a informação precisa ser rápida e descontínua. Desse modo, a informação nunca oferece o todo, mas apenas parte de um todo que, por sua extensão, não pode ser dado na íntegra. Uma demonstração da descontinuidade da informação é apontada por Benjamin quando ele diz que “a informação só tem valor no momento em que é nova”. [18] É como se a informação fosse descartável de modo a perder a sua validez dado o seu uso. É esse caráter utilitarista da informação que vai deflagrar o engenho da narrativa ao longo da modernidade. Para citar Benjamin: “se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio”. [19]
Outra forma de ataque à narrativa, ainda na modernidade se deu com o advento do romance. De acordo com Benjamin, “a origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselho nem sabe dá-los”. [20] Nessa ótica, a diferença do romance em relação à tradição diz respeito ao fato do romance se debruçar sobre o individual, enquanto que na narrativa o que se considera é o coletivo. Enquanto o romance descreve a vida de um indivíduo isolado, a narrativa busca descrever a vida e as experiências dos grupos, das comunidades. O romance constitui, portanto, uma espécie de cristalização da crise que há entre a experiência e a narrativa, se considerarmos que o interesse da narrativa se volta para as experiências, entretanto, as experiências coletivas, enquanto que o romance vai se interessar pelas experiências pessoais. O empecilho que emerge aqui para a narrativa vai dizer respeito, destarte, ao fato do romance se sobrepor a ela no contexto da modernidade. Desse modo, ela estanca no espaço-tempo moderno, enfraquecendo consideravelmente até não comportar mais tanta relevância, tal como comportava no contexto da tradição. Para além do simples estancá-la (a narrativa) na era da modernidade, o romance vai ser, entretanto, o ponto de partida para a morte dela. Sobre isso Benjamin alude que “o primeiro indicio da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno[21], e prossegue: “o que separa o romance da narrativa é que ele está essencialmente vinculado ao livro[22]. Aqui já estar-se, portanto, diante das diferenças que distinguem uma coisa da outra. O livro – para o romance – se torna fundamental porque na modernidade ele passa a ser o substituto da arte da escuta. As razões disso, evidentemente, decorrem do estilo de vida que a modernidade impôs para o sujeito, e que, por si mesma, diferencia-se do estilo de vida tradicional. Primeiramente, na tradição os indivíduos dispunham de tempo para sentar-se e ouvir as histórias e a sabedoria dos anciões, as quais não constituem objeto de interesse da modernidade. Essa prática da tradição se dava de várias maneiras, umas delas, por exemplo, foi a própria vida de trabalho, especificamente o trabalho artesanal. A elucidação disso dá-se, portanto, quando lê-se em Benjamin que: “A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão [...], é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação”. [23] O que está implícito aqui – e esse é o aspecto fundamental que aqui interessa – é a presença de vários indivíduos reunidos em um determinado lugar, qual seja, a oficina artesanal, para que essa comunicação que aqui está sendo tratada, então, aconteça.
O contraste dessa prerrogativa da tradição – da qual fluía a narrativa – com a modernidade em voga, diz respeito à escassez de tempo dos indivíduos modernos para tais práticas tradicionais. Em outros termos, na modernidade o individuo, ou os indivíduos já não dispõem de tempo necessário para o estar juntos para ouvir. A partir dessa dispersão dos indivíduos – o que também configura umas das razões do individualismo moderno em contraposição ao coletivismo tradicional – é que o livro passará a ter uma relevância fundamental para o progresso do romance na modernidade. Cumpre ressaltar que esse processo de evolução do romance no seio da modernidade teve como matriz prévia– e pilar fundamental – o surgimento da imprensa. Nesse aspecto Benjamin referencia o engenho de Gutemberg[24]. Segundo ele “a difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa”. [25] O triunfo do romance, obviamente, não teria alcançado êxito se fatores precedentes não tivessem contribuído para tanto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se conhecer a modernidade é sempre retornar ao passado para – conhecendo os perigos que ela trousse para o homem – evitar o indesejável, então, esse conhecimento emerge como célebre e desejável na medida em que contribui para a construção de um presente melhor dada a capacidade dos indivíduos para prever e desviar a rota dos erros anteriores que ameaçam voltar. 
Constituída como uma espécie de labirinto, a modernidade trousse para a humanidade, ou ainda, para as culturas antigas e tradicionais um grande risco: o de perder-se sem não mais ter como encontrar-se. Essa impossibilidade do sujeito se reencontrar consigo mesmo, ou com seu passado e sua história, sua cultura e suas tradições, se deu, sobretudo, pelo fato de que a modernidade também se preocupou em destruir os resquícios da tradição que ainda se conservavam, ou atentavam (sem força) para isso. Nesse sentido, esta pesquisa – com base em Benjamin – buscou demonstrar como e de que forma a modernidade alterou a vida e as práticas culturais e cotidianas do mundo tradicional. Foi demonstrado que uma das diferenças fundamentais que há entre a vida moderna e a tradicional diz respeito ao fato de que enquanto a primeira é marcada por uma aceleração progressiva e desenfreada, a segunda é caracterizada por ser lenta e tranqüila, isto é, as coisas e os acontecimentos fluem naturalmente.
Diante das exigências próprias da modernidade, algumas práticas da tradição entraram em crise, enfraqueceram e se estagnaram no tempo, como foi o caso da narrativa, sobre a qual esta pesquisa se debruçou. Uma das primeiras evidências do colapso da narrativa se deu com a crise entre a transmissão e a experiência, o que foi tratado no item dois. Percebeu-se, então, que a transmissão das experiências é uma das condições necessárias para a continuidade da narrativa. Na modernidade, porém, essa transmissão não vai acontecer porque o que vai interessar á modernidade são as coisas, ou os acontecimentos do momento, as quais não dizem respeito às histórias das gerações, ou seja, as culturas e tradições antigas. Como foram demonstrados no segundo tópico, esses acontecimentos, entretanto, não se dão de forma linear, mas, de forma descontínua, assumindo, por essa razão, que uma das características da modernidade – e uma das diferenças que há entre ela e a tradição – diz respeito ao fato dela ser fragmentada dada a impossibilidade de considerar o contexto como no todo, considerando os indivíduos em grupos, as culturas, as tradições, os valores, e etc.
Percebeu-se também que com o ritmo de vida acelerado da modernidade, a informação jornalística, por ser curta, passou a ser mais aceita. Isso, de certa forma, contribui para o alargamento da crise da narrativa que, por ser longa, precisava de tempo e disposição dos indivíduos para ser praticada. Nesse sentido, foi dito que das formas de ataque à narrativa a informação foi a mais intensa de todas. Além da informação, o romance foi outra invenção da vida moderna que também contribui consideravelmente para a decadência da narrativa. Enfim, o que se pretendeu, com essa pesquisa, foi buscar compreender a crise da narrativa na modernidade a partir das mudanças que a modernidade implicou para o ritmo de vida tradicional, tomando como “porto seguro”, o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin.


REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004.

Acesso em: 17 de dezembro de 2010.


[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 198.
[2] Ibid., p. 197.
[3] Ibid., p. 198-199.
[4] “A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Integrando, eles definem uma prática. Essa pratica deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustenta de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olho e da mão [...] é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada”. (Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 220-221)
[5] SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004. P. 96.
[6] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Paulo Sergio Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 10.
[7] Ibid., p. 207.
[8] Ibid., p. 207.
[9] Ibid., p. 207-208.
[10] Ibid., p. 10.
[11] Ibid., p. 10-11.
[12] Ibid., p. 205.
[13] Ibid., p. 14.
[14] Ibid., p. 14.
[15] Ibid., p. 14.
[16] CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif, 2004. P. 103.
[17] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 202-203.
[18] Ibid., p. 204.
[19] Ibid., p. 202.
[20] Ibid., p. 201.
[21] Ibid., p. 201.
[22] Ibid., p. 201.
[23] Ibid., p. 205.
[24] “Em 1455 o alemão Johannes Gutemberg imprimiu 200 Bíblias tipograficamente. Para imprimí-las Gutenberg precisou fundir cerca de 300 caracteres diferentes, que lhe permitiram alcançar uma perfeição gráfica superior aos laboriosos e elegantes manuscritos da época. Essa revolução baseada em técnicas já existentes, aumentou incrivelmente a quantidade de livros e de saber em circulação. Ao longo da história os livros tornaram-se arquivo das mais diversas idéias”. DISPONIVEL EM: <http://fatosquemudaramomundo.blogspot.com/2008/11/inveno-da-imprensa.html>. Acesso em: 17 de dezembro de 2010.  (O autor do texto e dono do blogger, Niceas Romeo Zanchett, é artista plástico, pintor e escultor).
[25] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 201. 

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