Este trabalho foi apresentado na ocasião do XIV Encontro
de Pesquisa em Filosofia da UNICAMP
RESUMO
A presente
pesquisa discorre sobre a crise da narrativa no contexto da era moderna, a
partir do pensamento de Walter Benjamin. O que se busca com ela (pesquisa) é
compreender alguns dos fatores e acontecimentos da modernidade que contribuíram
para a decadência da narrativa como, por exemplo, o estancamento do processo de
transmissão das experiências (que representou a impossibilidade de continuidade
da narrativa), o romance (que passou a dar ênfase na questão da
individualidade, já demarcando um dos aspectos da modernidade) e a informação
jornalística (que teve preferência no contexto da modernidade, devido ao
processo de vida acelerada que a era moderna trousse para o sujeito), dentre
outros aspectos.
Palavras-chaves: Modernidade – Narrativa – Informação – Romance –
Experiência – Transmissão.
ABSTRACT
This research discusses the crisis of narrative in the context of the
modern era, from the writings of Walter Benjamin. What is sought with it
(research) is to understand some of the factors and events that contributed to
the modern decay of the narrative, for example, the stagnation in the
transmission process of the experiments (which represented the impossibility of
continuing the narrative), the romance (which began to stress the issue of
individuality, is marking one of the aspects of modernity) and journalistic
information (which was preferred in the context of modernity, because of the
accelerated process of life that the modern era trousse to the subject), among
others aspects.
Keywords: Modernity - Narrative - Information - Romance - Experience - Transmission.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho a ser desenvolvido tem como propósito –
a partir do pensamento de Walter Benjamin – entender as razões pelas quais se
deu a crise e o declínio da narrativa no contexto da era moderna. Cumpre
ressaltar que não constitui interesse desta pesquisa determinar precisamente
todos os fatores que contribuíram para a queda da narrativa no contexto da era
moderna – haja vista serem muitos –, mas apenas procurar entender algumas, tais
como a informação jornalística, o romance, a estagnação do processo de
transmissão das experiências, o desprezo para com o ancião, dentre tantas.
Em se tratando da estrutura a pesquisa compõe-se de
duas partes. A primeira, fazendo um esboço geral sobre a narrativa, procura
compreender as razões pelas quais a transmissão das experiências no contexto da
era moderna se torna improcedente. Ainda nesse aspecto, buscar-se-á demonstrar
que a transmissão sempre foi uma necessidade intransponível para o advento da
narrativa. Um subitem desse primeiro tópico intitulado “A atrofiação da memória
e o êxito da lembrança” reflete sobre como a memória foi, ao poucos, se
tornando inválida para o homem moderno dado a supressão da necessidade de
gravar. É como se na modernidade tivesse desaparecido a preocupação pelas
gerações futuras em se tratando de cultura. No caso da perda do sentido da
memória, o que se leva em conta aqui é a função da memória, a qual consiste em
arquivar as histórias e os acontecimentos para depois serem recordados ou
lembrados, o que obviamente, não faz parte do projeto da modernidade.
A segunda parte, à sua vez, discorre sobre o
romance e a informação jornalista que, em linhas gerais, representaram duas
formas severas de ataque à tradição e à própria narrativa. A informação que
passa a ser muito difundida na modernidade surge em contraste à narração pelo
fato de que enquanto esta é longa e linear, aquela é curta e descontínua. Assim
como a informação jornalística, o romance também possui uma posição de
contraste com a narrativa. Neste caso, a diferenciação se dá na medida em que o
romance vai ser construído a partir de uma perspectiva individualista, onde
passará a descrever a vida dos indivíduos isolados, enquanto que a narrativa
visa o coletivo, aquilo que se dá em grupo.
2. A RELAÇÃO
ENTRE EXPERIÊNCIA E TRANSMISSÃO
Dado que a narrativa pressupõe a memória, de forma
incondicional, e que esta – no contexto da modernidade – passa por um processo
de atrofiação, devido ao processo de aceleração que caracteriza o progresso e
os acontecimentos da modernidade, onde tudo o que é feito, é feito para ser
deixado de lado e esquecido no momento seguinte em razão de novos feitos que
vão sendo realizados, um problema vem alume: como narrar na modernidade e para
quem narrar nessa sociedade onde a transformação rápida das coisas é a sua
característica primordial e a memória já não comporta tanta importância considerando
que o seu papel fundamental é o de gravar, ou registrar, os acontecimentos
culturais de uma geração de uma dada época histórica para – num momento
posterior – serem transmitidas às outras gerações que naturalmente vão
aparecendo?
Partindo do principio de que a narrativa pressupõe
uma forma de ligação com a memória, de modo que só se pode narrar àquilo que
previamente fora armazenado na mesma, logo, deve se considerar a relevância que
essa (memória) possui para o narrador. Ela é como que o depósito das coisas
vividas e que agora passam a ser guardadas quando já não mais é possível viver
na prática, mas somente através da imaginação por meio de um retorno que se dá
pela arte de contar. Em outros termos, pode-se dizer que a memória é como que a
caixa preta do sujeito, ou de uma determinada cultura, onde são arquivados as
experiências e acontecimentos em geral.
Dois conceitos-chaves fundamentais para o
entendimento do que, de fato, constitui a narrativa são: experiência e
transmissão. Aqui cumpre ressaltar que só se pode falar de memória se houver o
processo de transmissão das experiências que se sucedem em suas respectivas
épocas. É por meio desse processo de transmissão que os homens dão vida ao
passado distante. Distante e próximo, o passado (enquanto acontecimentos já
concretizados) é algo que sobrevive de forma contínua na medida em que é
armazenado na memória dos indivíduos perpassando de geração em geração para se
manter para sempre. Quanto a isso, Benjamin refere que “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que
recorreram todos os narradores” [1]. Esse processo de
transmissão, responsável pela continuidade de idéias, costumes, gestos, atos
etc. de uma determinada cultura não somente passa a ter uma importância
significativa na arte de narrar, como também representa a própria possibilidade
desta vir a ser.
Para a continuidade da experiência, a relação entre
a transmissão e a experiência vem a lume como sendo uma relação indissociável.
Obviamente, as experiências só podem existir por muito tempo se elas forem
continuadas. Entretanto, para isso, elas precisam ser transmitidas. Nesse
sentido, Benjamin chama a atenção para um dos problemas que essa relação entre
experiência e transmissão vai encontrar no contexto da modernidade. Segundo ele
“são cada vez mais rara as pessoas que
sabem narrar devidamente”. [2] Uma das conseqüências que
disso decorre é o risco de extinção que ameaça a arte de narrar. Quanto a isso,
percebe-se, portanto, que na modernidade a relação da experiência com a
narrativa passa a ser marcada por grandes crises e tensões constantes, uma vez
que a evolução da modernidade se dá em caráter linear.
Cumpre lembrar que a narração pode ser feita de
várias maneiras, o que evidentemente, significa que ela não se limita apenas em
falar o que aconteceu, o que está posto, mas transcendendo isso avança sempre
um pouco mais na medida em que se vale de outras ferramentas tais como os
gestos corporais, conforme se verá mais adiante. Não faz parte da preocupação
do narrador detalhar os fatos e acontecimentos, pois, como é sabido, isso é
competência exclusiva do historiador. Entretanto, tudo o que ele (narrador)
quer é conhecer o que se passa nas gerações. Para isso, ele não precisar
necessariamente sair da sua e adentrar nas outras em termos concretos, mas,
antes de tudo ser um conhecedor da história da sua época com suas respectivas
tradições. Sendo assim, Benjamin diz que
[...] existem dois
grupos que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se
torna plenamente tangível se termos presente esses dois grupos. “Quem viaja tem
muito que contar” diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem
de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua
vida sem sair do seu país e que conhece sua história e tradições. [3]
O conceito
de narrador apresentado por Benjamin parte do princípio de que o narrador não é
somente aquele que se desloca de lugar a lugar a fim de conhecer o que nessas
localidades se passa em termos de cultura e tradição, mas, também aquele
indivíduo que conhece, ou procura conhecer melhor suas raízes históricas, seu
passado, ou seja, um passado comum aos seus antecedentes.
No ato de narrar também está implícita a
gesticulação, isto é, usa-se não somente a fala, mas também o corpo, o que,
certamente, acompanhava a narrativa na prática do trabalho artesão[4], conforme se verá. Nesse
sentido, a narração também se dá com os olhos, com as mãos, gestos e demais
coisas ligadas ao corpo concreto. Ela tem uma temporalidade comum a diversos
indivíduos de uma mesma cultura, ou grupo. Desse modo, ela prevê o coletivo, e
as próprias experiências que passam pela narração também são experiências
coletivas, comuns dentro de uma determinada cultura. Em outros termos, a
narrativa também pressupõe experiências coletivas. Se isso, entretanto, é uma
característica da narrativa no âmbito da tradição, essa característica vai ser
suprimida no contexto da modernidade, haja vista, nessa (modernidade) haver uma
degradação ininterrupta das experiências coletivas, contribuindo assim para o
fortalecimento das crises que ameaçam a narrativa. Sem dúvida, uma das razões
pela qual esse processo de degradação se viabilizou deveu-se à perda da
capacidade dos indivíduos em armazenar coisas nas profundezas da memória. Essa
incapacidade também resulta do fato de, na modernidade, o sujeito está o tempo
em todo em estado de alerta, o que, obviamente, é uma característica do mundo
moderno. Evidentemente, isso decorre do fato do espaço moderno ser marcado por
um processo de rapidez onde, sobretudo, já não há lugar para o estar desatento.
2.1.
A atrofiação da memória e o êxito da lembrança
Marcada pela inconstância e pela interrupção
constante dos acontecimentos, pode-se dizer que na modernidade reina um
princípio de incerteza de tal modo que já não se pode prever nem mesmo o que
está para acontecer. Nesse sentido, Singer enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano –
que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que
as fazes anteriores da cultura humana”. [5] Desse modo, pode-se dizer
que no ambiente moderno, o homem já não pode mais memorizar, mas apenas lembrar
aquelas coisas que anteriormente foram memorizadas, isto é, quando o espaço
físico (isento de complexidade) ainda lhe propiciava o gozo de tal privilégio.
O sujeito moderno, portanto, é aquele vive de lembranças em razão da
descontinuidade – característica intrínseca da modernidade – que obstaculariza
a arte de memorizar. Com toda essa estrutura complexa da modernidade, o homem
moderno não poderia ser outro senão o homem do alerta, orientado pelo alarme, o
homem mecânico. Portanto, Mesmo sendo a lembrança aquela coisa pela qual a
modernidade vai se interessar, mesmo assim, é a narrativa que, em meio a tanta pressão,
ainda desfruta do privilégio de conter, ou conduzir em seu núcleo a moral da
história.
A relação entre a memória é a lembrança,
evidentemente é uma relação horizontal de pertença, no sentido de que uma se
apresenta como fundamento para a outra. Se por um lado a lembrança é aquilo que
faz com que a memória não seja esquecida e se mantenha, portanto, ao longo das
gerações, por outro, a memória é ela mesma a possibilidade e o fundamento
dessas próprias lembranças. Entretanto, não se pode optar por privilegiar
somente as lembranças como se as gerações do presente fossem as ultimas a
existir. Assumindo ou não, essas gerações darão origem a outras. O problema que
decorre disso consiste em saber como se comportarão essas futuras gerações uma
vez que na memória dos seus indivíduos um vazio profundo e constante far-se-á
presente. Aqui, poder-se-ia supor, essas gerações como sendo espécie de
gerações superficiais na medida em que não comporta uma raiz, um fundo cultural
sobre o qual ela possa se destacar fazendo sua história e sua vida, além de
preparar os caminhos para as posteriores por vir. É uma geração que caminha
para o nada, para o vácuo. Indubitavelmente esse foi o erro da modernidade, que
impôs muitas resistências à memória à medida que apertava os cercos contra a
narração. Certamente, só está na memória aquilo
que passou pelo processo de vida real dos indivíduos desde a infância até os o
confins da vida quando a morte, então, se aproxima. Mas, a própria morte também
se configura como relevante para a continuidade da narrativa dado que ela
igualmente favorece a existência do processo de transmissão. Entretanto, é
preciso ressaltar que mesmo a morte – que é algo natural nos indivíduos, da
qual nenhum ser vivo consegue escapar eternamente, a não ser passando por ela –
o recinto do capitalismo, que é a sociedade moderna, tornou-a estranha aos
indivíduos, de tal modo a observa-se hoje a existência de uma sociedade onde
ninguém quer morrer. É como se a morte fosse a mais intensa de todas as dores,
como se ela representasse o castigo eterno, o tormento que nunca tem fim, a
tortura ou o sofrimento que jamais se acaba. Ora, essa sociedade que não quer
morrer, é a mesma sociedade que não que envelhecer; é a sociedade do
superficial que flutua sobre as ondas da moda, dos salões de beleza, das
cirurgias plásticas, etc. A velhice nesse sentido passa a ser objeto de repulsa
da maior parte dos indivíduos, sobretudo, os mais jovens, que são – diga-se de
passagens – as principais vitimas do sistema capitalista, principalmente
aqueles desprovidos de senso crítico e visão de mundo. Segundo Jeanne Marie
Gagnebin, “enquanto no passado o ancião
que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência
que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é
inútil” [6].
Tornar-se velho nessa sociedade dominada pelo capitalismo moderno significa
tornar-se insignificante, sendo essa uma das razões pelas quais quem é jovem
não quer ser velho. Aquilo que o ancião tem de mais nobre é justamente aquilo
que para a sociedade moderna não vai ter nenhum interesse, nenhuma relevância.
Essa nobreza que ele possui constitui, portanto, as experiências que foram
acumuladas ao longo de sua vida, e que agora dependem de uma transmissão para
não se perderem na eternidade. É justamente nesse sentido que a morte contribui
para a linearidade da narrativa. Para fins de ilustração do que acima está
dado, considera-se o seguinte pensamento benjaminiano:
A idéia de
eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa idéia está se
atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro
aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da
experiência à medida que a arte de narrar se extinguia.[7]
Evidentemente, essa mudança ocorrida no rosto da
morte foi provocada por razões já esclarecida, mas que aqui cabe reiterar, como
por exemplo, o desenvolvimento do capitalismo que, manipulando a consciência
das pessoas, deu origem a uma série de elementos que distanciaram do homem aquilo
que lhe é natural e intrínseco, dentre elas, a própria morte. “Hoje”, diz Benjamin, “a morte é cada vez mais expulsa do universo
dos vivo”. [8]
Se, por um lado, a repulsa da morte, vai significar uma possibilidade do fim da
narrativa, por outro, o oposto vai significar, então, a sua ininterrupção. Segundo Benjamin,
[...] é no momento
da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua existência vivida
– e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez
uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras
imagens [...], assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares,
conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um
pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem a narrativa
está essa autoridade. [9]
A relevância da morte para a narrativa se dá,
sobretudo, pelo fato dela possibilitar a transmissão dos saberes adquiridos e
acumulados ao longo da vida daquele que morre; saberes esses que fazem do
ancião uma espécie de rei, todavia, sem trono, sem cátedra e sem coroa. Para a
narrativa, portanto, a morte não significa fim ou ruptura, mas a própria
possibilidade de continuidade sem interrupção.
Partindo do princípio de que narrar também pode ser
entendido como a arte de “contar”, Jeanne Marie Gagnebin refere que “a arte de contar torna-se cada vez mais rara
porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no
sentido pleno, cujas condições de realização já não existem mais na sociedade
capitalista moderna” [10]. O que se torna aqui
passível de percepção é que o espaço para a narrativa passa a ser cada vez mais
estreito dentro da estrutura de uma sociedade, qual seja, a sociedade
capitalista voltada, primordialmente, para a busca de riqueza. Com a atenção
focada para a cultura da aquisição de lucro, a sociedade capitalista passa a
dar mais ênfase naquilo que é feito o mais rápido possível, às pressas. Desse
modo, algumas das formas tradicionais de produção vão se chocar com uma série
de fatores modernos, sobretudo, quando, de algum modo, representam uma espécie
de atraso, ou lentidão no projeto de construção da modernidade, que é a idéia
de progresso. Uma dessas formas tradicionais, por exemplo, é a atividade do
artesanato. De acordo com Gagnebin (refletindo sobre a narrativa em Benjamin),
O artesanato
permite, devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez do
processo de trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em
oposição ao caráter fragmentário do trabalho, por exemplo, uma sedimentação
progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do
trabalho se inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha,
justamente, tempo para contar. [11]
Há, portanto, um choque entre os meios tradicionais
(pelos quais a narrativa era favorecida) e os do mundo moderno que restringem
àqueles. Enquanto na tradição a noção de tempo – no sentido de tranqüilidade,
em contraste com a rapidez que constitui um dos traços característicos da
modernidade – era fundamental na arte de narra, na era moderna esse tempo só
vai ter sentido se ele se encaixar nas estruturas e parâmetros da modernidade.
Ou seja, no mundo moderno, o que dá sentido ao tempo é o fato dele ser rápido e
descontínuo. Isso porque devido ao devir constante que caracteriza o mundo
moderno, tudo muda e de forma muito rápida. Por essa razão é que já não se pode
mais pensar na atividade artesã como algo de muita relevância para a sociedade
moderna, que é essa sociedade capitalista que está presente, que se apossa de
tudo e toma tudo quanto for possível para si. A narrativa não comunga do tempo
moderno justamente pelo fato de que nesse tempo o seu tempo não se encaixa. É
justamente ai que tanto a narrativa quanto a própria história correm o risco de
cair no esquecimento e ser, portanto, extinta, uma vez que o mundo moderno por
sua própria diferença da tradição já permite que assim o seja. Como diz
Benjamin: “contar histórias sempre foi a
arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais
conservadas”. [12]
3. O ROMANCE
E A INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA
Dada a fragilidade da tradição no âmbito do mundo
moderno, duas formas de bombardeio à narrativa passam a figurar como elementos
fundamentais na estrutura de uma sociedade que busca – a ferro e fogo – se
desprender do seu passado. Quanto a isso, Gagnebin diz que “no momento em que a experiência coletiva se
perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras
formas de narrativa tornam-se predominantes. Benjamin cita o romance e a
informação jornalística”.[13] Há nesse contexto um
processo de substituição do velho pelo novo. A informação e o romance, nesse
contexto, são, portanto, dois elementos da modernidade sobre os quais o alemão
vai dedicar muita reflexão para tentar entender, a partir daí, como se alarga a
crise da narrativa nos tempos da era moderna. A autora menciona que há algo em
comum entre esses dois elementos, que seria, então, “a necessidade de encontrar uma explicação para o conhecimento, real ou
ficcional”. [14]
A diferencia básica que há entre ambos reside no fato de que enquanto “a informação jornalística deve ser plausível
e controlável; [...] o romance parte da procura do sentido – da vida, da morte,
da história” [15]. Dessas duas
prerrogativas da modernidade, a que mais se contrasta com a narrativa é, sem
duvida a informação. Um dos contrastes que permeia entre a informação e
narrativa diz respeito ao fato de que enquanto a narrativa é longa e
ininterrupta, a informação, por sua vez, é curta e descontínua. Enquanto no
contexto da tradição evitava-se ao máximo possível a informação, ou seja, a
brevidade, no sentido da narração, na modernidade somente a recíproca é
verdadeira. Há, portanto, uma inversão da ordem tradicional de tal modo que
enquanto mais próximo da informação si estiver, mais longe da narrativa se
permanece, e vice-versa. Com o início da modernidade – que provocou uma
aceleração progressiva no ritmo de vida dos indivíduos, de tal modo que a
preferência pelo “breve” se torna uma opção inevitável – a informação
jornalística ganha espaço no novo mundo que aflora favorecida, sobretudo, pelos
acontecimentos desastrosos que simultaneamente iam ocorrendo. Sendo assim, as
informações pelas quais os leitores mais se debruçavam, eram aquelas dos jornais
sensacionalistas, que abordava, exclusivamente, mortes de pedestres. [16]
No sentido de que a informação se volta para o
imediato, para aquilo que acontece no momento presente, Benjamin refere que,
O saber que vem de
longe encontra hoje menos ouvinte que a informação sobre acontecimentos
próximos. O saber que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas,
ou do longe temporal contido na tradição –, dispunha de uma autoridade que era
válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação
aspira a uma verificação imediata. [...]. Muitas vezes não é mais exata que os
relatos antigos. Porem, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao
miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é
incompatível com o espírito da narrativa. [17]
No mundo moderno, portanto, não há mais lugar para
os saberes tradicionais, principalmente, pela razão de que as experiências da
modernidade vão se dá a partir de coisas que não fazem parte da tradição, ou
que se quer a tradição conheceu, como por exemplo, a televisão, o jornal, etc.
Evidentemente, a informação não comporta a mesma riqueza de conhecimento tal
como na narrativa. Umas das razões disso decorrem do fato de que – devido à
diversidade e quantidade de acontecimentos do mundo moderno – a informação
precisa ser rápida e descontínua. Desse modo, a informação nunca oferece o
todo, mas apenas parte de um todo que, por sua extensão, não pode ser dado na
íntegra. Uma demonstração da descontinuidade da informação é apontada por Benjamin
quando ele diz que “a informação só tem
valor no momento em que é nova”. [18] É como se a informação
fosse descartável de modo a perder a sua validez dado o seu uso. É esse caráter
utilitarista da informação que vai deflagrar o engenho da narrativa ao longo da
modernidade. Para citar Benjamin: “se a
arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente
responsável por esse declínio”. [19]
Outra forma de ataque à narrativa, ainda na
modernidade se deu com o advento do romance. De acordo com Benjamin, “a origem do romance é o individuo isolado,
que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes
e que não recebe conselho nem sabe dá-los”. [20] Nessa ótica, a diferença
do romance em relação à tradição diz respeito ao fato do romance se debruçar
sobre o individual, enquanto que na narrativa o que se considera é o coletivo.
Enquanto o romance descreve a vida de um indivíduo isolado, a narrativa busca
descrever a vida e as experiências dos grupos, das comunidades. O romance constitui,
portanto, uma espécie de cristalização da crise que há entre a experiência e a
narrativa, se considerarmos que o interesse da narrativa se volta para as
experiências, entretanto, as experiências coletivas, enquanto que o romance vai
se interessar pelas experiências pessoais. O empecilho que emerge aqui para a
narrativa vai dizer respeito, destarte, ao fato do romance se sobrepor a ela no
contexto da modernidade. Desse modo, ela estanca no espaço-tempo moderno,
enfraquecendo consideravelmente até não comportar mais tanta relevância, tal
como comportava no contexto da tradição. Para além do simples estancá-la (a
narrativa) na era da modernidade, o romance vai ser, entretanto, o ponto de
partida para a morte dela. Sobre isso Benjamin alude que “o primeiro indicio da evolução que vai culminar na morte da narrativa é
o surgimento do romance no início do período moderno” [21], e prossegue: “o que separa o romance da narrativa é que
ele está essencialmente vinculado ao livro” [22]. Aqui já estar-se,
portanto, diante das diferenças que distinguem uma coisa da outra. O livro –
para o romance – se torna fundamental porque na modernidade ele passa a ser o
substituto da arte da escuta. As razões disso, evidentemente, decorrem do
estilo de vida que a modernidade impôs para o sujeito, e que, por si mesma,
diferencia-se do estilo de vida tradicional. Primeiramente, na tradição os
indivíduos dispunham de tempo para sentar-se e ouvir as histórias e a sabedoria
dos anciões, as quais não constituem objeto de interesse da modernidade. Essa
prática da tradição se dava de várias maneiras, umas delas, por exemplo, foi a
própria vida de trabalho, especificamente o trabalho artesanal. A elucidação
disso dá-se, portanto, quando lê-se em Benjamin que: “A narrativa que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão
[...], é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação”.
[23] O que está implícito aqui
– e esse é o aspecto fundamental que aqui interessa – é a presença de vários
indivíduos reunidos em um determinado lugar, qual seja, a oficina artesanal,
para que essa comunicação que aqui está sendo tratada, então, aconteça.
O contraste dessa prerrogativa da tradição – da
qual fluía a narrativa – com a modernidade em voga, diz respeito à escassez de
tempo dos indivíduos modernos para tais práticas tradicionais. Em outros
termos, na modernidade o individuo, ou os indivíduos já não dispõem de tempo
necessário para o estar juntos para ouvir.
A partir dessa dispersão dos indivíduos – o que também configura umas das
razões do individualismo moderno em contraposição ao coletivismo tradicional –
é que o livro passará a ter uma relevância fundamental para o progresso do
romance na modernidade. Cumpre ressaltar que esse processo de evolução do
romance no seio da modernidade teve como matriz prévia– e pilar fundamental – o
surgimento da imprensa. Nesse aspecto Benjamin referencia o engenho de
Gutemberg[24].
Segundo ele “a difusão do romance só se
torna possível com a invenção da imprensa”. [25] O triunfo do romance,
obviamente, não teria alcançado êxito se fatores precedentes não tivessem
contribuído para tanto.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Se conhecer a modernidade é sempre retornar ao
passado para – conhecendo os perigos que ela trousse para o homem – evitar o
indesejável, então, esse conhecimento emerge como célebre e desejável na medida
em que contribui para a construção de um presente melhor dada a capacidade dos
indivíduos para prever e desviar a rota dos erros anteriores que ameaçam
voltar.
Constituída como uma espécie de labirinto, a modernidade
trousse para a humanidade, ou ainda, para as culturas antigas e tradicionais um
grande risco: o de perder-se sem não mais ter como encontrar-se. Essa
impossibilidade do sujeito se reencontrar consigo mesmo, ou com seu passado e
sua história, sua cultura e suas tradições, se deu, sobretudo, pelo fato de que
a modernidade também se preocupou em destruir os resquícios da tradição que
ainda se conservavam, ou atentavam (sem força) para isso. Nesse sentido, esta
pesquisa – com base em Benjamin – buscou demonstrar como e de que forma a
modernidade alterou a vida e as práticas culturais e cotidianas do mundo
tradicional. Foi demonstrado que uma das diferenças fundamentais que há entre a
vida moderna e a tradicional diz respeito ao fato de que enquanto a primeira é
marcada por uma aceleração progressiva e desenfreada, a segunda é caracterizada
por ser lenta e tranqüila, isto é, as coisas e os acontecimentos fluem
naturalmente.
Diante das exigências próprias da modernidade,
algumas práticas da tradição entraram em crise, enfraqueceram e se estagnaram
no tempo, como foi o caso da narrativa, sobre a qual esta pesquisa se debruçou.
Uma das primeiras evidências do colapso da narrativa se deu com a crise entre a
transmissão e a experiência, o que foi tratado no item dois. Percebeu-se,
então, que a transmissão das experiências é uma das condições necessárias para
a continuidade da narrativa. Na modernidade, porém, essa transmissão não vai
acontecer porque o que vai interessar á modernidade são as coisas, ou os acontecimentos
do momento, as quais não dizem respeito às histórias das gerações, ou seja, as
culturas e tradições antigas. Como foram demonstrados no segundo tópico, esses
acontecimentos, entretanto, não se dão de forma linear, mas, de forma
descontínua, assumindo, por essa razão, que uma das características da
modernidade – e uma das diferenças que há entre ela e a tradição – diz respeito
ao fato dela ser fragmentada dada a impossibilidade de considerar o contexto
como no todo, considerando os indivíduos em grupos, as culturas, as tradições,
os valores, e etc.
Percebeu-se também que com o ritmo de vida
acelerado da modernidade, a informação jornalística, por ser curta, passou a
ser mais aceita. Isso, de certa forma, contribui para o alargamento da crise da
narrativa que, por ser longa, precisava de tempo e disposição dos indivíduos
para ser praticada. Nesse sentido, foi dito que das formas de ataque à
narrativa a informação foi a mais intensa de todas. Além da informação, o
romance foi outra invenção da vida moderna que também contribui
consideravelmente para a decadência da narrativa. Enfim, o que se pretendeu,
com essa pesquisa, foi buscar compreender a crise da narrativa na modernidade a
partir das mudanças que a modernidade implicou para o ritmo de vida tradicional,
tomando como “porto seguro”, o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987.
SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo
popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson.
São Paulo: Cosac Naif, 2004.
Acesso em: 17 de dezembro de 2010.
[1] BENJAMIN, Walter. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 198.
[2] Ibid., p.
197.
[3] Ibid., p.
198-199.
[4] “A alma, o
olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Integrando, eles definem uma
prática. Essa pratica deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho
produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração
está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo
algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém
decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que
sustenta de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma,
do olho e da mão [...] é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre,
onde quer que a arte de narrar seja praticada”. (Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 220-221)
[5] SINGER,
Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson.
São Paulo: Cosac Naif, 2004. P. 96.
[6] BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Paulo Sergio
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 10.
[7] Ibid., p.
207.
[8] Ibid., p. 207.
[9] Ibid., p. 207-208.
[10] Ibid., p. 10.
[11] Ibid., p. 10-11.
[12] Ibid., p. 205.
[13] Ibid., p. 14.
[14] Ibid., p. 14.
[15] Ibid., p. 14.
[16] CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e
invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac Naif,
2004. P. 103.
[17] BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo Rounnet.
São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 202-203.
[18] Ibid., p.
204.
[19] Ibid., p. 202.
[20] Ibid., p. 201.
[21] Ibid., p. 201.
[22] Ibid., p.
201.
[23] Ibid., p.
205.
[24] “Em 1455 o alemão Johannes Gutemberg imprimiu 200 Bíblias
tipograficamente. Para imprimí-las Gutenberg precisou fundir cerca de 300
caracteres diferentes, que lhe permitiram alcançar uma perfeição gráfica
superior aos laboriosos e elegantes manuscritos da época. Essa revolução
baseada em técnicas já existentes, aumentou incrivelmente a quantidade de livros
e de saber em circulação. Ao longo da história os livros tornaram-se arquivo
das mais diversas idéias”. DISPONIVEL EM:
<http://fatosquemudaramomundo.blogspot.com/2008/11/inveno-da-imprensa.html>.
Acesso em: 17 de dezembro de 2010. (O
autor do texto e dono do blogger, Niceas Romeo Zanchett, é artista plástico, pintor e escultor).
[25] BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 201.
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