Tradicionalmente, a hermenêutica foi pensada e definida como a
arte da interpretação, o que não estava longe de ser uma verdade. Entretanto,
para fins de esclarecimento se tornam importantes, aqui, alguns questionamentos
que – como convites à reflexão – ganham pertinência à evolução da pesquisa à
medida que contribuem para a cogitação a cerca da temática proposta. Sendo
assim, poder-se-á levantar as seguintes indagações: o que de fato vem a ser a
Hermenêutica? Como se faz uma interpretação? O que se deve levar em conta no
ato de interpretar? O que define a Hermenêutica de hoje em relação a do
passado?
Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significa de vocábulo,
atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado;
mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou
norma tudo o que na mesma se contem. Pode-se procurar e definir a significação
de conceitos e intenções, fatos e indícios; porque tudo se interpreta; inclusive
o silencio[1]
O intérprete é, portanto, aquele que deve ter total afinidade com
a coisa interpretada; que detém sólidos conhecimentos da língua a que
interpreta, bem como intimidade com as pessoas de cujos gestos e ações, por
ele, são esclarecidos. Outra exigência do intérprete (em se tratando de
Hermenêutica) é a de que ele saiba reproduzir aquilo que passou do interior
para o exterior; o que isso significa; que valor comporta etc. Tudo isso já é
suficiente para mostrar que a função de intérprete não é tão simples, como de
repente se possa imaginar. Nesse sentido a Hermenêutica se torna complexa, e a
aplicação de regras para determinar o sentido correto das coisas interpretadas,
faz-se necessário para que haja harmonia e logicidade. Caso contrário, a diversidade
de interpretação sem um segmento lógico poderá facilmente conduzir ao caos, o
que conseqüentemente, levará a um distanciamento do verdadeiro sentido e
originalidade do objeto interpretado. “O
interprete é o renovador inteligente e cauto e o seu trabalho rejuvenesce e
fecunda a formula prematuramente decrépita.”[2]
Não se pode concluir como errônea a opinião daqueles que professam
que a hermenêutica é, de fato, a arte da interpretação, e, sobretudo, da
interpretação do sentido das palavras. Em geral, a razão pela qual se entende a
hermenêutica como arte de interpretar é histórica, tendo o seu início com os
gregos, especialmente a partir da mitologia.
O termo Hermenêutica provem do grego Hemeneuein, que significa declarar, anunciar, interpretar ou
traduzir [...] não é improvável que a palavra derive de Hermes, o mensageiro
dos deuses, o que daria ao termo uma dimensão sagrada na medida em que o
relacionava com a compreensão da palavra divina.[3]
Observa-se, portanto, que na raiz da Hermenêutica já está implicada
a concepção do divino e, desse modo, sua ligação com os textos sagrados. O
mensageiro, como é sabido, é aquele que traz ou leva uma mensagem de um ser
para outro. Assim Hermes só poderia
transmitir a mensagem dos deuses por meio do dizer. Daí se concebe que o mensageiro, além de condutor da
mensagem, é também aquele que faz uso da fala a fim de transmitir aquilo que
ouviu. O problema que aqui vem à tona consiste em saber se, de fato, há
entendimento ou não por parte daqueles que são o destinatário da mensagem.
Considerando que nem sempre se entende ao que se houve falar, surge então a
necessidade da explicação daquilo que é dito para que todos tomem conhecimento
claro do que ouvem. Levando em conta a
diversidade lingüista, bem como a própria distinção dos homens entre si no que
diz respeito ao conhecimento e, por conseguinte, à cultura intelectual, de modo
que enquanto alguns gozam de muito entendimento, outros gozam de pouco, a
grande questão que se coloca é a necessidade da tradução da mensagem do original
para as particularidades a fim de favorecer a assimilação e o entendimento.
Nesse sentido, o mensageiro é, portanto, aquele encarregado de uma tripla
função: anunciar, explicar e traduzir.
Hermes seria então aquele que trazia uma <<mensagem>>
o que nos remete para três usos possíveis da noção de Hermenêutica: o dizer, o
explicar e o traduzir [...] Nos três casos há algo de diferente, de estranho e
de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar,
presente e compreensível; há algo que requer representação, explicação ou
tradução e que é, de certo modo, tornado compreensível, interpretado.[4]
Desse modo, percebe-se que a função anunciadora de Hermes é uma função dotada de carências
e necessidades, cuja supressão se torna condição necessária indispensável para
o surgimento da hermenêutica. A primeira dessas necessidades cabe ressaltar, é
a da linguagem oral, passível de percepção, sobretudo, nas sagradas escrituras
onde a voz alta se tona fundamental para o ouvinte.
Que, em princípio, a Hermenêutica estava voltada à compreensão e
interpretação das sagras escrituras, ninguém disso pode duvidar. Pode se pensar
até mesmo que ela nasce justamente com essa proposta na medida em que a
mensagem dos desuses precisava de um interprete. Não obstante, a evolução dos
acontecimentos no decorrer da história foi aos poucos impondo algumas mudanças
necessárias. Desse modo, a Hermenêutica, comungando dessas mudanças, vai
gradativamente se transformando na medida em que essa transformação se fazia necessária.
Sendo assim, uma das primeiras mutações ocorridas na Hermenêutica foi sofrida
no que diz respeito à semântica.
O termo compreensão começou ele mesmo a ser encarado como um
problema que interessava resolve, a ponto da questão não se colocar apenas em
relação à das escrituras, ou de outros textos, mas havendo antes a necessidade
de elucidar o que era compreender na sua essência, isto é, as condições e os
limites em que este se exercia.[5]
Ou seja, diante dos problemas ou dificuldades que surgiram, parecia
haver certa mudança no sentido do caráter inicial. Aqui parece desencadear-se,
portanto, um processo de orientação filológica, onde a preocupação se volta
para um estudo semântico e lingüístico. Ora, se essa orientação da Hermenêutica
para a filologia se deu, especialmente, a partir da necessidade de uma
compreensão semântica dos termos ou das palavras no contexto de sua determinada
origem, ou língua, “vai ser, então, a partir da evolução e disseminação do
cristianismo que essas transformações vão se desenvolver e se alterar levando
em conta, sobretudo, a necessidade de conciliação do antigo com o novo
testamento. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que entre o
antigo e o novo testamento há um abismo muito grande no que diz respeito à linguagem.
Enquanto a linguagem do novo testamento, por si mesma, está mais próxima da
compreensão por ser uma linguagem, diga-se de passagem, menos enigmática, a do
antigo testamento na medida em que consta de metáforas em demasia dificulta a
compreensão, sobretudo quando não se tem nenhuma certeza de muitos
acontecimentos que metaforicamente estão relatados. No período patrístico, com
Santo Agostinho, doutor da igreja, surge a hermenêutica cristã, que se tornou
fundamental em toda a idade media.[6]
Com a restrição da Hermenêutica no campo da teologia, a grande questão que daí
deriva consiste essencialmente em saber como se devem compreender corretamente
as sagradas escrituras[7]
Diante dessa realidade, no que diz respeito à hermenêutica,
entendida enquanto arte de interpretar, a evolução natural dos acontecimentos,
da sociedade e da humanidade como no todo, acompanhada pelo progresso das
ciências que gradativamente vão ganhando espaço, foi aos poucos fazendo com que
aquelas antigas e medievais formas de explicação e interpretação fossem passo a
passo enfraquecendo. A continuidade, portanto, desses moldes arcaicos de
interpretação já não tinham mais força. Já não se podia mais insistir no
pensamento e na continuidade da hermenêutica a partir dos protótipos da antiguidade
e, sobretudo, da idade media, pois,
As interpretações durante este período da humanidade foram as mais
diversas e absurdas. Tanto judeus quanto cristãos estavam inteiramente
envolvidos, cada qual no seu ponto central, logicamente. Após esse período negro, em que a humanidade permeou a ignorância, onde tudo, ou quase tudo se
vinculava ao pensamento divino, surgiram os renascentistas, enfatizando a razão
humana em detrimento aos princípios religiosos. [8]
Dada a superação desse momento “turbulento” da antiguidade, surge
então o renascimento. Com este, a Hermenêutica é repensada e ganha, portanto,
uma nova configuração.
A HERMENÊUTICA MODERNA
O surgimento da Hermenêutica moderna coincide especialmente com
aquele momento da humanidade que teve como pretensão primordial a construção da
autonomia do sujeito a partir da elevação da razão (que passa a ser o
distintivo fundamental do renascimento) em detrimento da fé (caractere
principal do período anterior, ou seja, medieval). Com o renascimento,
buscou-se construir um homem mais racional e independente da religião. Cumpre
ressaltar que no processo de aquisição da autonomia é necessário que o sujeito
enquanto criação se afaste do seu criador, afim de que (enquanto sujeito) tome
ciência daquilo que ele, de fato, é. Foi justamente o que aconteceu no
renascimento. Esse período marca, destarte, o advento da cultura
antropocêntrica.
Nesse momento de desconstrução e reconstrução, de ruptura e
linearidade, de descontinuidade e continuidade, o renascimento vai significar o
abandono do antigo e a busca pelo novo.[9]
Sem a velha e conhecida segurança dada pela igreja, e por seus
‘homens’ de Deus, a humanidade procura unicamente a si mesma, na alto-certeza
do sujeito pensante, uma base segura, e um ponto de partida para o conhecimento
filosófico. A hermenêutica dessa época preocupa-se com a correta utilização da
palavra e da língua.[10]
Se, por um lado, o renascimento favoreceu aos homens tornarem-se
autônomos, por outro, introduziu entre eles a necessidade de relação mútua na
medida em que eles passam a procurar entre si um “porto seguro” capaz de
nortear sues pensamentos, seus conhecimentos e até mesmo suas ações. Isso de
algum modo desembocou num problema mais amplo, a saber, o problema da
linguagem, ou até mesmo a relação entre ela e o pensamento, uma vez que vai ser
somente por meio dela que aquele vai se exteriorizado e, portanto, manifestado.
Schileiermarcher, por exemplo, vai mostrar como essa relação se torna
inextrincável. Para tanto, ele parte do princípio da relatividade do pensamento,
considerando que se o pensamento é relativo, o saber também não escapa a isso.
Como a interpretação gramatical “é arte
de encontrar o sentido determinado pela linguagem[11]",
essa, por sua vez, vai ser a válvula de escape por onde o pensamento se dá a conhecer,
desse modo, ela se tornará, por excelência a fonte dessa relatividade.
Opondo-se à concepção de que a explicação existe por si mesma, Schileiermarcher
compreende que ela (compreensão), na verdade, resulta de uma combinação de
pensamentos daqueles que falam com aqueles que escutam. Sendo assim, a
compreensão se torna metódica e a aquisição do saber exige, acima de tudo,
esforço, cuidado e disciplina.
O problema da linguagem na Hermenêutica tende a se intensificar de
modo especial com a reforma protestante que apregoava que “todos os fiéis deveriam ter acesso ao termo escrito em linguagem comum”
[12],
o que fez com que a hermenêutica se voltasse à questão filológica e
lingüística. O objetivo disso era fazer com que o povo pudesse lê e interpretar
a sagrada escritura de modo que o sentindo literal e histórico captado pelo
autor humano fosse o sentido divino.
A reforma reclama o regresso à verdade do texto, à autenticidade
da mensagem divina, bem como a abolição definitiva das adulterações e
obstáculos erguidos pela autoridade católico-romana para impedir a comunicação
entre os fiéis e Deus.[13]
A reforma, portanto, entendeu que a tradição católica funcionava
como uma espécie de bloqueio que impedia o contato entre Deus e os fiéis. Era
necessário, portanto, tornar essa passagem livre para todos aqueles que a isso pretendessem.
Daí, a liberdade de interpretação. O próprio regresso á verdade do texto, já
introduz a noção da necessidade do uso da leitura. Desse modo, a autenticidade
da significação passa a ser objeto de busca constante da hermenêutica.
[1] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica
e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 9.
[2] Cf. ibidem, P. 12.
[3] Cf. HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica
e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001. P.
44-45.
[4] Cf. ibidem, P. 45.
[5] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica
e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 46.
[6] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[7] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[8] Disponível em: http://www.professorallan.com.br/UserFiles/Arquivo/Artigo/artigo_prof_fabio_sombrio_hermeneutica.pdf
[9] Cf. Idem.
[10] Cf. ibidem.
[11] SCHLEIERMACHER,
Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso
Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003. P.
70. Outras reflexões sobre esse autor que aqui não aparecem com referência
foram extraídas de fichamento de conteúdos assimilados em sala de aula.
[12] Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf
[13] Cf. Ibidem.
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