___________________________________________________________
ENSAIO SOBRE FILOSOFIA E LITERATURA A PARTIR DA D’ A
REPÚBLICA E DA POÉTICA
___________________________________________________________
FÁBIO
COIMBRA[1]
Em
uma época longínqua, aproximadamente dois mil e quinhentos anos atrás nascia
aquela que viria a ser, até certa medida, a maior de todas as ramificações do
saber que se constituiria como um todo a partir da junção das partes dispersas,
para existir como um todo até a separação das partes, o que se deu com a
divisão das ciências. Essa que, que pode ser concebida como a ciência mãe, chama-se
Filosofia.
Derivada
da junção de dois termos gregos, respectivamente, philos +
sophia, em sua fórmula etimológica ela assume, portanto, a
conotação amor pela sabedoria, sendo esse o seu significado genérico, mais
comum e de maior alcance. Seu ilustre nascimento – que, até certo ponto,
resulta de um processo de evolução da consciência que gradativamente instiga a
evolução a vir a ser – deveu-se, antes de tudo, a fatores intrínsecos à própria
constituição da natureza humana, quais sejam, a curiosidade, em outros termos,
o desejo de saltar do conhecido ao desconhecido para, conhecendo no plano da
racionalidade, construir o até então não construído, ou ainda, construir o novo
a partir da desconstrução do “velho”, leia-se, as formas de construção de
conhecimento que precederam a filosofia e que dominaram antes dela. Essas
formas de que aqui se trata fazem referência a duas modalidades de
conhecimento, a saber, o mito e a poesia que, fundindo-se, compuseram um todo
designado literatura.
Antes
do surgimento da filosofia, como é sabido, a forma de conhecimento predominante
era a mitologia. O mito era, portanto, a fonte de explicação para a origem de
tudo o que existe, como, por exemplo, o homem, os deuses, o “céu”, a terra, o
cosmo etc. Um detalhe importante de ser assinalado diz respeito ao fato de que,
em sua essência, o mito não quer detalhar como se deu o acontecimento das
coisas que existem, mas sim mostrar que algum dia isso que existe, e que não
existia, passou a existir. Ou seja, o mito, neste sentido, se constitui como
uma forma de explicação que se vale da imaginação para descrever eventos, ou
acontecimentos que ocorreram e cuja origem não pode ser presenciada por ninguém.
É justamente com esse caráter imaginativo da mitologia que a filosofia, em
princípio, vai se confrontar, dado que esta ultima irá propor como método para
o alcance da verdade das coisas a razão em detrimento da imaginação, até então
vigente.
Dado
que a imaginação expressa a emoção, e que essa manifesta a subjetividade que, à
sua vez, se constitui como um dos elementos fundamentais da poesia, ela (imaginação) passa a ser, então, a ponte
que liga o mito à poesia. Mito e poesia, portanto, como precedentes à
filosofia, dominando o discurso, liderando o conhecimento e constituindo a
literatura passam a ter uma relação mais próxima um do outro do que qualquer de
deles com a filosofia. Ao contrário, a filosofia sob a forma de um discurso
novo passa a ser, então, aquela com a qual a literatura – leia-se o mito e a
poesia – vai travar um jogo de força pela disputa de um espaço onde os
discursos tentam se impor, como num jogo de poder. Dado que a filosofia e a
poesia passaram a ocupar o mesmo espaço, e que a tensão gerada a partir dai,
sob alguma ótica, contribuira para uma manifestação da razão em graus mais
elevados – como se tivesse ocorrido no homem um despertar para o verdadeiro
conhecimento, ou seja, aquele que a partir de então não mais se pautaria na
imaginação, mas sim na razão –, o enfraquecimento da explicação mitológica e
poética para a origem das coisas fora gradativamente cedendo lugar ao
conhecimento filosófico, o que resultou num progressivo sobressair da filosofia
sobre a poesia. Ainda que a filosofia passasse à categoria de discurso vigente
naquela época, mesmo assim, ela e literatura compartilhavam de um campo, o qual
compartilham ainda hoje, aproximadamente dois mil e quinhentos anos depois.
Esse campo é a linguagem propriamente dita, sem a qual não é possível haver nem
filosofia e nem literatura. Se, por um lado, é preciso reconhecer o predomínio
do discurso filosófico a partir de então, por outro, igualmente é preciso
exaltar o mito e a poesia, ou seja, a literatura cujo engenho e magnitude consistem
em ter sido a primeira forma de conhecimento a prover a necessidade e
curiosidade natural do homem de saber do saberes das coisas.
Dado
que a tradição filosófica não se inicia com a escrita propriamente dita, mas
com a contemplação do mundo e da natureza, tal como faziam “os pré-socráticos,
que não escreveram obras, mas apenas fragmentos”, pode-se, a título de
hipótese, postular que a oralidade – objeto próprio das praticas literárias precedentes
à filosofia – não deixava de ser, até certo ponto, objeto de uso também da
filosofia, donde se deduz certa proximidade entre filosofia e literatura no que
a isso diz respeito. Sendo assim, ainda é possível postular que o poeta, em
princípio, utiliza muito mais a palavra do que o filosofo que para falar é
preciso pensar, ou contemplar. Enquanto, o discurso do filósofo se restringe a
certas particularidades do mundo, o do poeta, por sua vez, é muito mais amplo
dado que busca abarcar esse mundo em sua totalidade, o que torna imprescindível
o recurso da imaginação. Sendo assim, um elemento relevante, nesse contexto, se
torna fundamental para a compreensão do alcance dos discursos. Esse elemento é
a liberdade em posse da qual, a literatura se destaca em relação à filosofia,
dado que o discurso do poeta é livre uma vez que decorre da imaginação que é
livre por excelência. O mesmo não se pode dizer do discurso do filósofo que ao
se dá ao trabalho da busca da verdade, passa a possuir a partir daí certo
rigor. Sendo a busca da verdade, o, ou um, dos problemas centrais da filosofia,
o filósofo passa a ser, então, um homem de ação. Essa ação, passa a ser, à sua
vez, a base sobre a qual se estrutura o discurso do filósofo, donde se conclui
que a liberdade escapa ao filósofo justamente porque o seu discurso está preso
à sua ação, ao contrário da poesia. No filósofo, enquanto alguém que busca
incansavelmente a verdade, não deve haver nenhuma contradição entre pensamento
e prática. É justamente, essa busca pela verdade que faz com que o filósofo, ao
se dispor ao filosofar, não seja livre dado que sua ação deve seguir seu
pensamento.
Como
é sabido, Platão, é considerado o filosofo que expulsa os poetas da cidade, tal
como se pode ver nitidamente em sua engenhosa obra “A República”. Entre os
principais argumentos usados pelo filósofo, destacam-se três que se resumem da
seguinte forma, a saber, primeiro, o não é capaz de atingir a verdade, segundo,
o poeta em nada contribui para a purificação da alma e, terceiro, o poeta não
contribui para o bem da república. Se analisado mais detalhadamente o conjunto
dos argumentos, ver-se-á que o problema central que se coloca – ao que tudo
indica – é o problema da verdade, donde se segue que a verdade passa a ser o
principal elemento gerador da tensão entre filosofia e literatura. Não que ela
gere essa tensão por si mesma, mas porque a busca constante que os filósofos
vão fazer dela leva-os a desconsiderar os pressupostos próprios da poesia, como
por exemplo, a imaginação. Consequentemente é esse uso que a poesia faz da
imaginação que os impossibilita de alcançar a verdade.
Um
aspecto que deve ser notado também, em se tratando do não alcance da verdade
por parte dos poetas, decorre do fato, segundo Platão, deles serem inspirados
pelas musas. Em razão disso – se deve observar – é que os poetas, na ótica
platônica, não estão preocupados com a verdade. É essa não preocupação dos
poetas para com a verdade e, atrelado a isso, a inspiração deles pelas musas
que leva Platão a rejeitá-los da cidade. Para melhor ilustrar como a poesia é
incompatível com o bem da república, Platão parte do princípio de que o poeta
apenas imita o real, ou seja, aquilo que já está posto. Um problema que aqui se
pode levantar consiste em saber se Platão é um combatente de todo e qualquer
tipo de poesia, ou de apenas algumas. Ao que tudo indica a reposta a essa
problemática seria negativa se si considerar o que ele expõe no capitulo
primeiro do livro X da obra aqui tratada quando diz que “refutamos toda aquela
poesia que se fundamenta na imitação”. [2]
Sendo assim, cumpre investigar a razão dessa recusa a poesia que se pauta na
imitação.
Platão,
em principio, compara o poeta ao pintor. Ele diz que “há [por exemplo] três
espécies de cama: a natural [...] obra de um deus [...]. A segunda espécie é
obra do artesão. [....]. A terceira é obra do pintor”. [3]
Com isso, Platão quer mostra que uma coisa pode ter até três autores, dos
quais, os dois primeiros são os verdadeiros criadores, e o terceiro apenas
imita. O primeiro é deus – compreendendo por deus a idéia –, o segundo é aquele
que realiza essa idéia, ou seja, aquele que da à idéia de um determinado objeto
um corpo material que faz com que essa coisa se torne algo real, e o terceiro é
aquele que, a partir da criação de um objeto criado por deus e pelo artesão,
faz uma imitação. E esse que imita, é justamente o poeta que, segundo Platão, “está
a três graus de distancia da verdade”. [4]
Assim
como em Platão, em Aristóteles a arte e a poesia também são imitações, conforme
se pode observar no capítulo primeiro da Poética, onde se lê sobre a arte
Pois
tal como há os que imitam muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras
[...], assim acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o
ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou
conjuntamente. [5]
Entendendo
– vulgarmente – como poeta, também, aquele que compõe versos, ele (Aristóteles)
refere:
[...]
se alguém fizer obra de imitação, ainda que misture versos de todas as
espécies, como o fez Querémon no Centauro,
que é uma rapsódia tecida de todas as causas de metros, nem por isso se lhes
deve recusar o nome de poeta. [6]
Daqui
se conclui pela similaridade das concepções de Platão e Aristóteles em se
tratando da poesia enquanto imitação. É importante salientar que em
Aristóteles, o modo como se efetua a imitação demarca também a diferença entre
as varias espécies de poesia. A imitação, entretanto, é feita por meios
diversos, como por exemplo, a comedia e a tragédia e os objetos da imitação são
as ações dos homens, as quais podem ser boas ou más. Das boas ações se ocupa a
tragédia, enquanto que das más se ocupa a comedia. [7]
Uma
observação relevante que Aristóteles coloca, e que talvez não apareça na
República é a origem da imitação. Segundo ele “Sendo, pois, a imitação própria
da nossa natureza [...], o que ao princípio foram mais naturalmente propensos
para tais coisas pouco a pouco deram origem à poesia [...]”. [8]
Aristóteles para ser mais compreensível do que Platão, e nele já se expressa
certa ciência da natureza humana. Aristóteles parece dar, portanto, uma
justificativa ontológica para poesia. Ora, dado que em Aristóteles a imitação é
própria da natureza humana, e em Platão a imitação é justamente a razão pela
qual o poeta não atinge a verdade, um grande problema vem a lume: como o homem
pode alcançar a verdade se o obstáculo ao alcance da verdade é inerente à
própria natureza humana? É como se a natureza humana trousse em si mesma a
impossibilidade do alcance da verdade. Ora, como falar de verdade se a própria
natureza humana não é capaz de alcançar a verdade pela razão de que a imitação
é própria dela, e ao mesmo aquilo que coloca o indivíduo a três graus de
distancia da realidade.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo:
Nova cultura, 1987.
PLATÃO. A República. 2 ed. Trad. Ciro Mioranza,
São Paulo: Escala, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário