Este artigo é a penas parte de um trabalho que apresentei
em uma mesa redonda na ocasião do XI Encontro Humanístico
da Universidade Federal do Maranhão
Tudo o que aparece, é
passível de ser interpretado; tudo o que é passível de ser interpretado foi
passível de ser conhecido. O conhecimento não é obra do acaso. Ele nasce da
curiosidade inerente ao indivíduo pensante e consciente. Enquanto agente de
modificação, transformação e revolução, o conhecimento não é algo dado e
acabado, mas construído gradativamente no âmbito de um espaço-tempo onde tudo é
alterado e nada permanece. Dada a sua construção, já não se pode mais
argumentar em prol da linearidade do ser enquanto sujeito permanente no sentido
de não sofrer nenhuma alteração.
No decorrer da
história, o conhecimento – fruto da ação humana – foi usado muitas vezes como
meio para a aquisição de fins diversos de grupos específicos, ou seres
individuais. Como se tivesse uma dupla face, ou uma dupla natureza, o
conhecimento fora usado ora para o bem, ora para o mal. Nesse espaço-tempo de
construção e reconstrução do conhecimento nascem os costumes e desses a
cultura. Aqui, Importa questionar: O que é cultura? Em linhas gerais, portanto,
poder-se-ia dizer que cultura é aquilo que sobrou depois do que se esqueceu do
resto; é o necessário que fica depois que o contingente se esgota; é a parte, o
sumo que fica depois que o todo se esvai. A cultura que é vida que pulsa nos
sangue, e que compõe – enquanto conjunto de valores, costumes e práticas – a
essência de um povo, pode-se dizer que, em suma, é parte constituinte daquilo
que de mais nobre um povo pode ter. Ela, que emerge do interior do homem,
enquanto expressão do seu desejo de viver e criar valores, conserva a sua
naturalidade e originalidade enquanto mais afastada tiver da cobiça e dos
interesses financeiros do mercado. É como se a vida dela residisse nesse
distanciamento seu em relação aos negócios. Quando, porém, essa aproximação
acontece e ela é coagida a integrar a esfera mercadológica, ela entra, então,
num processo de transformação no qual ela perde parcialmente a sua
originalidade. Isso se dá, primordialmente, em razão do capitalismo que,
buscando seu desenvolvimento e sua disseminação, relativiza todos os valores
humanos, sociais e culturais até atingir seu objetivo, a aquisição e acumulação
de lucro. Para fazê-lo com mais precisão, uma das primeiras preocupações dele
(o capitalismo) é integrar tudo numa esfera global, o que lhe possibilita
melhor controlar os fatos e manipular a realidade conforme melhor lhe
aprouver.
Com ênfase nessa
problemática, Paul Ricoeur refere que esse problema
[...] é comum
tanto às nações altamente industrializadas e regidas por um estado nacional
antigo, quanto às nações que saem do desenvolvimento e da independência
recente. O problema é este: a humanidade como um corpo único, ingressa numa
única civilização planetária que representa ao mesmo tempo um progresso
gigantesco para todos e uma tarefa esmagadora de sobrevivência e adaptação da
herança cultural a esse quadro novo. Sentimos todos, em graus diferentes e de
maneiras variáveis, a tensão entre de um lado a necessidade dessa ascensão e
desse progresso e, por outro, a exigência de salvaguardar o patrimônio que
herdamos[1].
Essa civilização dita
global surge, tal como se percebe, com uma dupla face, das quais podem surgir
diversas consequências. Se por um lado ela é capaz de integrar todos os
indivíduos num processo de melhoramento da vida, por exemplo, na medida em que
favorece o crescimento em diversos setores sociais, e econômicos, por outro,
ela exigi desses mesmos indivíduos a renuncia de diversos valores culturais aos
quais ele desfruta enquanto membro de um grupo e que foram construídos e
fortificados pelo tempo e pela história. A preocupação de Ricoeur, nesse
sentido, parece consistir em buscar uma alternativa ou um meio teórico pelo
qual os indivíduos possam desfrutar das prerrogativas do progresso, sem que para
isso seja preciso romper com suas fontes ou origens culturais. Daí ser
necessário que as culturas passem por um processo de adaptação à nova
realidade, o que, de algum modo, já implica em mudanças que deverão ocorrer.
Isso significa dizer que as perdas de algumas características da cultura, ou
das culturas frente às novas exigências impostas pelo progresso se tornam
inevitáveis.
Embora reconheça que
perante o fator da universalização cultural – que se observa com mais nitidez
nos tempos modernos com o advento da técnica e do progresso – as culturas ficam
passíveis de modificações, Ricoeur não manifesta desprezo à modernidade, mas
apenas tenta expor o problema que pode se observar a partir do surgimento dela.
Devo dizer de
imediato que minha reflexão não se origina de nenhum desprezo em relação à
civilização moderna universal; se existe um problema, é justamente porque
sofremos a pressão de duas solicitações divergentes, mas igualmente
imperiosa.[2]
Essas duas solicitações
são, portanto, de um lado, o progresso, que para continuar evoluindo necessita
da abertura da cultura para as devidas modificações, e, de outro, a própria
cultura que diante da pressão que lhe é imposta procura encontrar caminhos
pelos quais possa continuar.
Dada tal situação, o
passo seguinte de Ricoeur consiste em caracterizar essa civilização. Em
princípio, ele aparenta refutar a concepção de que ela se caracteriza pela
técnica. Isto porque a técnica não seria o pano de fundo primeiro através do
qual a figura se destaca (figura aqui pode ser entendido como sendo os
resultados do progresso). Nesse sentido, diz Ricoeur:
A técnica não é,
entretanto, o fato decisivo e fundamental; o centro de difusão da técnica é o
próprio espírito científico; é ele que primeiramente unifica a humanidade em
nível bastante abstrato, puramente racional, e que, nessa base, dá à
civilização humana seu caráter universal.[3]
É do espírito
científico que brota a técnica. Ele, entretanto, surgir dentro de um núcleo
abstrato que aqui pode ser chamado de racionalidade. A racionalidade, por
conseguinte, é uma prerrogativa inalienável da humanidade, ou da espécie
humana. Segundo Ricoeur “é ela que arrasta todas as outras manifestações da
civilização moderna” [4].
A técnica que nasce do
espírito científico não permanece estática, mas desenvolve pouco a pouco num
circulo interminável.
Esse
desenvolvimento compreende-se como uma retomada do instrumental tradicional a
partir das consequências e das aplicações dessa única ciência. Esse
instrumental que pertence ao fundo cultural primitivo da humanidade tem por si
mesmo uma inércia muito grande; entregue às suas próprias forças, ele tende a
sedimentar-se em uma tradição invencível; não é por força de um movimento
interno que um instrumental se modifica, mas pelo contragolpe sobre ele
exercido pelo conhecimento científico; é pelo pensamento que o instrumental se
revoluciona e se transforma em maquinas.[5]
Dois pontos essenciais
à compreensão do progresso são enfatizados aqui: primeiro, o conhecimento
científico, e, segundo, o surgimento das maquinas. Com essa ultima – que pode
ser concebida como decorrente da primeira – um processo de revolução foi
desencadeado no seio da sociedade moderna. Essa revolução diz respeito,
sobretudo, às transformações ocorridas, e que mudaram o rosto, ou a fisionomia
das cidades[6], das sociedades e, por conseguinte, das culturas. Com o advento
das maquina tem-se, portanto, o desenvolvimento da indústria. Como o lugar de
difusão da indústria foram as grandes cidades, para essas, portanto, passou a
se dirigir um contingente bastante elevado de indivíduos. Foi nesse período que
teve inicio o processo de massificação das cidades. Como resultado disso,
apareceu, então, a dita cultura de massa.
Para fins de reflexão
poder-se-ia aqui levantar o seguinte questionamento: Como seria o
desenvolvimento, ou o progresso do Estado sem as máquinas? Seria possível haver
maquinas sem o conhecimento científico? Certamente a resposta à primeira
questão diria que esse progresso seria muito lento, caso houvesse, de fato. Já
a reposta à segunda questão seria certamente negativa. Pois, dificilmente
haveria máquinas sem um conhecimento científico revolucionador, capaz de
questionar, inovar, criar e executar. De qualquer forma, ressalta-se a
importância do conhecimento em geral, para dizer que é ele que a tudo
revoluciona.
Assim como do conhecimento científico
veio à máquina, do conhecimento comum veio as ferramentas primeiras através das
quais se deu o relacionamento do homem com a natureza. É válido ressaltar que
esse contato homem-natureza se tornou fundamental e contribuiu relevantemente
para o desenvolvimento da espécie humana. Desse modo, deve-se reconhecer o
papel fundamental que a natureza desenvolve no processo de vivificação,
manutenção e permanência da diversidade cultural existente. Nesse sentido,
Ricoeur refere:
A humanidade se
desenvolve na natureza como um ser artificial, isto é, como um ser que cria
todas as suas relações com a natureza por meio de um instrumental sem cessar
revolucionado pelo conhecimento científico; o homem é uma espécie de artifício
universal; pode-se dizer nesse sentido que as técnicas na medida em que são a
retomada dos utensílios tradicionais a partir de uma ciência aplicada, não tem
mais pátria.[7]
Diante da mundialização
da cultural, percebe-se em princípio, que esse fenômeno parece ter sua origem
no uso de ferramentas antigas que foram não somente retomada, mas também
aperfeiçoadas pela técnica. É a partir do momento em que se dá a “purificação”
desses utensílios tecnicamente, é que Ricoeur vai falar, então, do
expatriamento dos mesmos. A impressão que se tem é de que essa universalização
que é operada pela técnica, consiste justamente na libertação desses utensílios
de sua condição primitiva para serem então propriedade de todos ou um bem de
qualquer um independente do lugar onde ele se encontre o que, de algum modo,
assemelha-se bastante aos interesses do mercado. Esse fenômeno da civilização
universal que pretende suprimir total ou parcialmente os traços, ou costumes
das culturas primitivas não passa de uma mascara que esconde os interesses do
mercado. Não à toa que autores como Benjamim e Baudelaire já haviam apontado
para o progresso e a técnica como responsáveis pelas mazelas das cidades a
partir da modernidade.
Paul Ricoeur tem total
razão ao dizer que “é graças a esse fenômeno de difusão que podemos ter hoje
uma consciência planetária” [8]. Talvez a única falha dele, nesse sentido,
reside no fato dele não ter alertado para o fato de que essa consciência
planetária não passava de uma maneira pela qual o sistema capitalista buscava
também seu desenvolvimento. Entretanto, deve-se reconhecer que talvez não fosse
esse seu objetivo.
REFERÊNCIA
MARX,
Karl. ENGELS, Friedric. A ideologia
alemã. Trad. Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes,
1998. (coleção clássicos Filosofia Ciências/Sociais)
MARTINS,
Carlos Benedito. O que é a sociologia.
São Paulo: Brasiliense, 2004. (coleção primeiros passos; 57).
RICOEUR,
Paul. História e verdade. Trad. F.
A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968
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