A temática da história como mestra no cerne da filosofia política de Maquiavel, indubitavelmente, é de uma magnitude fundamental para a compreensão das lições que, a partir, dela ele pretendera dar aos príncipes, ou ao príncipe [leia-se: Lourenço de Medici].
Em sendo artífice de uma
nova teoria política – que pretendera ser diferente de todas as outras que a
precedera – Maquiavel se vale da história para essa laboriosa construção. Para
um entendimento adequado dessa nova teoria que está sendo proposta cabe
ressaltar aqui – dentre tantas outras – duas das preocupações fundamentais de
Maquiavel que consistem em, primeiro, compreender as razões pelas quais os
homens são levados a agir de determinada forma em determinadas circunstâncias
(o que equivale ao que ele chamara de verita
efetuale de la cosa, ou seja, “verdade efetiva das coisas”) e, segundo, conferir
à política a autonomia que lhe é devida. Cumpre precisar que é a partir da
noção de verdade efetiva das coisas – que nada mais é senão os acontecimentos
concretos de uma realidade vivida – que Maquiavel caminha no sentido de tornar a
política uma ciência autônoma. Nesse sentido, tornar a política uma ciência
autônoma consiste nada mais nada menos que numa distinção entre aquilo que é
próprio dela e aquilo que não o é, e, consequentemente, promover a sua
independência a partir dai. Sendo assim, o primeiro esforço de Maquiavel será
dirigido no sentido de ir de encontro com uma tradição secular ancorada,
sobretudo, em Platão e Aristóteles. Essa empreitada de Maquiavel contra a
tradição se expressa com maior clareza no capítulo XV de O Príncipe onde ele refere a máxima que norteia a construção da sua
teoria, conforme se lê:
[...] sendo meu
intento escrever algo útil para quem me ler, parece-me mais conveniente
procurar a verdade efetiva das coisas do que uma imaginação sobre ela. [e tecendo
uma crítica direta a Platão, diz] Muitos imaginaram republicas e principados
que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram na verdade, porque há
tamanha distancia entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que
trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes sua ruína do
que sua preservação; pois um homem que queira fazer em todas as coisas
profissão de bondade deve arruinar-se entre tanto que não são bons. Daí ser
necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a
se valer ou não disso segundo a necessidade. [1]
Essa passagem possui uma
relevância magnífica para a compreensão da teoria política de Maquiavel dado
que nela está contida a fórmula maquiaveliana que marca definitivamente o rompimento
desse filósofo com a tradição do pensamento político antigo e medieval. E a
formula é a verdade efetiva das coisas,
a qual consiste em tomar as coisas, ou ainda, considerá-las a partir do que
elas são, tal como ela se nos apresentam e se nos aparecem.
Com a noção de “verdade
efetiva”, Maquiavel mostra sua contraposição em relação àqueles que se ocupavam
de assuntos políticos, no entanto, considerando as coisas a partir daquilo que
elas deveriam ser como, por exemplo, Platão com o seu mundo das idéias. Sendo
assim, Maquiavel critica esse filósofo mostrando que a preocupação com aquilo
que deveria ser – em vez de ser com aquilo que é – nada mais seria do que uma
contribuição para a ruína de quem assim procedesse. Com essa reflexão,
Maquiavel insinua que o príncipe deve ser profundo observador da vida humana.
Deve também, observar as ações dos homens, seus comportamentos e outras coisas
conforme se pode ver também em outras partes da obra, como, por exemplo, no
capítulo XVIII, onde ele compara o príncipe a um centauro e exemplifica fazendo
uma referência aos antigos que, segundo ele, “escreveram que Aquiles e muitos
outros príncipes antigos haviam sidos criados por Quíron, o centauro que os
guardara sob sua disciplina”. [2]
E é precisamente nesse sentido que a história se torna mestra dos homens,
sobretudo, daqueles que pretendem alcançar a vitória. Como mestras, a história
mostras aos homens de um tempo presente os grandes feitos dos homens do
passado. Obviamente, são as ações vitoriosas que mais devem interessar para os
príncipes que visão sucesso em seus empreendimentos. É nesse sentido, portanto,
que Maquiavel fixa a história como mestra ao dizer no capítulo XIV o que se
segue:
[...] deve o príncipe
ler as histórias e refletir sobre as ações dos homens excelentes, ver como se
comportaram nas guerras, examinar as causas das vitórias e derrotas, afim de
poder escapar destas e imitar aquelas. Mas, sobretudo, deve agir como agiram
antes alguns homens excelentes que se espelharam no exemplo de outros que,
antes deles, haviam sido louvados e glorificados e cujos gestos e ações
procuram ter sempre em mente [...]. [3]
Aqui fica claro, portanto, a
importância da história e a posição que ela ocupa [leia-se: o privilégio] no
seio da teoria política de Maquiavel. E é recorrendo sempre à história que o
filósofo inaugura uma nova forma de se pensar a política. Cumpre ressaltar que
não é com um intuito de erigir modelos de ação ou conduta que Maquiavel faz um
retorno eterno à história, mas sim com o intuito de falar da ação política. Se
é possível falar em um modelo de ação em Maquiavel, esse modelo só pode ser a
própria história repleta de acontecimentos, mas jamais um homem em particular
por mais que tenha sido vitorioso. Pois, os homens sempre mudam tanto interna –
em se tratando da palavra que pode facilmente ser quebrada – quanto
externamente – tratando-se aqui das influências que os homens sofrem do meio no qual habitam e que podem interferir
no curso de suas ações. O que se deve, portanto, relevar ao se considerar os
acontecimentos históricos pelos quais muitos homens foram louvados é,
sobretudo, o conjunto das ações que tomaram para saírem vitoriosos. Também
sobre a história como mestra e máxima de ação Maquiavel refere
Ouvir dizer que a
história é a mestra das nossas ações e máxime [sic] dos príncipes: e o mundo
foi sempre, de certo modo, habitado por homens que têm tido sempre as mesmas
paixões; e sempre existiu quem serve e quem manda, e quem serve de má vontade e
quem serve de bom grado, e quem se rebela e quem se rende. [4]
Como
a concepção de natureza humana em Maquiavel é dinâmica, então, ratificando-se o
que fora dito mais acima, somente a história permite formular máximas sobre o
comportamento humano. Como tal, é ela que ensina aos homens como eles devem
agir em determinadas circunstâncias. Sendo o conhecimento da história uma
estratégia de ação na política teorizada por Maquiavel, ela (história) se
tornara por excelência a base das lições que ele pretendera dar aos príncipes. Em
suma, a história é uma verdadeira mestra, dado que com ela se aprende a partir
da observação das ações dos grandes homens.
REFERÊNCIAS
AQUINO,
João Emiliano Fortaleza de. Memória e
consciência histórica. Fortaleza: EdUECE, 2006. (coleção Argentum Nostrum)
LIMONGI,
Maria Isabel. O Príncipe. IN: Discutindo
textos filosóficos. SESC-PR, 2006.
LOPES,
Marcos Antônio. Antimaquiavelismo. In: FILOSOFIA,
São Paulo, ano II, n. 23, p. 34-41.
NICOLAU,
Maquiavel. O Príncipe. Trad. Maria
Júlia Goldwasser. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (clássicos)
[1] NICOLAU,
Maquiavel. O Príncipe. Trad. Maria
Júlia Goldwasser. 2 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (clássicos), p. 73.
[2] Idem, p. 83.
[3] Idem, p. 71
[4] Maquiavel.
Apud. AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Memória
e consciência histórica. Fortaleza: EdUECE, 2006. (coleção Argentum Nostrum), p. 67.
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