Este trabalho é parte de um artigo que apresentei na UNICAMP
na ocasião do XIV Encontro de Pesquisa em Filosofia
Marcada
pela inconstância e pela interrupção constante dos acontecimentos, pode-se
dizer que na modernidade reina um princípio de incerteza. Nesse sentido, Singer
enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente
urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador
do que as fazes anteriores da cultura humana”. [1]
Desse modo, pode-se dizer que no ambiente moderno, o homem já não pode mais
memorizar, mas apenas lembrar aquelas coisas que anteriormente foram
memorizadas.
Certamente,
só está na memória aquilo que passara pelo processo de vida real dos indivíduos
concretos desde a infância até os o confins da vida quando a morte, então, se
aproxima. Mas, a própria morte também se configura como relevante para a continuidade
da narrativa dado que ela favorece o processo de transmissão. Segundo Jeanne
Marie Gagnebin, “enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o
depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens,
hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil” [2].
Aquilo que o ancião tem de mais nobre é justamente aquilo que para a modernidade
não vai ter tanto, ou talvez, nenhuma relevância. Essa nobreza que ele possui
diz respeito, portanto, as experiências que foram acumuladas ao longo de sua
vida, e que agora dependem de uma transmissão para não se perderem na eternidade.
Nesse sentido, Benjamin refere:
[...] é
no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo, sua
existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem
pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante
desfilam inúmeras imagens [...], assim o inesquecível aflora de repente em seus
gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade
que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na
origem da narrativa está essa autoridade. [3]
A
relevância da morte para a narrativa se dá, sobretudo, pelo fato dela
possibilitar a transmissão dos saberes adquiridos e acumulados ao longo da vida
daquele que morre. Para a narrativa, portanto, a morte não significa fim ou
ruptura, mas a própria possibilidade de continuidade sem interrupção.
Partindo
do princípio de que narrar também pode ser entendido como a arte de “contar”,
Jeanne Marie Gagnebin refere que “a arte de contar torna-se cada vez mais rara
porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no
sentido pleno, cujas condições de realização já não existem mais na sociedade
capitalista moderna” [4].
O que se torna aqui passível de percepção é que o espaço para a narrativa passa
a ser cada vez mais estreito dentro da estrutura de uma sociedade pautada na
busca de riqueza. Uma das formas tradicionais de produção, por exemplo, que vai
perder a sua significância é o trabalho artesão. De acordo com Gagnebin,
O
artesanato permite, devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez
do processo de trabalho industrial [...], por exemplo, uma sedimentação
progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do
trabalho se inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha,
justamente, tempo para contar. [5]
Há,
neste aspecto, um choque entre a tradição e o mundo moderno. Enquanto na
tradição o tempo era fundamental na arte de narrar, na era moderna esse tempo só
vai ter sentido se ele se encaixar nas estruturas e parâmetros da modernidade.
Ou seja, no mundo moderno, o que dá sentido ao tempo é o fato dele ser consumido
muito rapidamente. A narrativa não comunga do tempo moderno justamente pelo
fato de que nesse tempo o seu tempo não se encaixa. É nesse aspecto que as histórias
e a narrativa correm o risco de cair no esquecimento e se perderem. Como diz
Benjamin: “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se
perde quando as histórias não são mais conservadas”. [6]
[1] SINGER, Ben. Modernidade,
hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo,
SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e
invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac
Naif, 2004. P. 96.
[2] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Paulo Sergio
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 10.
[3] Ibid., p. 207-208.
[4] Ibid., p. 10.
[5] Ibid., p. 10-11.
[6] Ibid., p. 205.
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