No
contexto da modernidade são obviamente notáveis as transformações ocorridas na
sociedade em razão da aceleração gradual do progresso e da técnica. Pode-se
dizer, de algum modo, que ambos constituíram, então, o motor central da era
moderna, na qual puseram tudo em um movimento inevitável. Esse movimento, portanto,
foi o principal agente de transformação, ou de construção das
características que identificam a modernidade.
Ora,
seria ingenuidade pretender negar que o progresso e o aperfeiçoamento técnico
não contribuíram para a construção de cidades que se tornaram encantadoras e
atrativas, em virtude de sua exuberante beleza, tal como, por exemplo, Paris,
capital francesa. Por outro lado, também seria ingênuo não reconhecer as
contribuições que a mesma técnica e progresso deram para o assolapamento da
miséria humana na medida em que empurrou uma parcela considerável de pessoas
para habitar as ruas e lugares inaptos à convivência humana nas grandes cidades.²
O
progresso e a técnica favoreceram o surgimento e o desenvolvimento da indústria
e das fábricas. Com essas, a sociedade se tornou capitalista. O capitalismo
aqui é – pode-se dizer – aquela pressão exercida pelo mercado sobre o
indivíduo, o qual muitas vezes, passa a ser, até mesmo, confundido com os
próprios objetos fabris e industriais. Como consequência das produções
industriais, um quantitativo considerável de transeuntes passou a se movimentar
pelas ruas superlotando-as, portanto. Desse modo, se conclui que na sociedade
capitalista já "não é mais possível andar tranquilamente pelas ruas" das cidades,
de modo especial, as ruas comerciais. ³ Essa drástica realidade que tirou a tranqüilidade se instalou, sobretudo, pelo
fato de que na sociedade de massa são os objetos da indústria que passam a
dominar. Ou seja, nessa sociedade é a indústria quem dita as regras do jogo,
que é sempre lucrar.
Diante
da totalidade dessa realidade (marcada pela crueldade; pelo desprezo para com
o humano; pelas contradições impostas pela lógica do sistema capitalista; pelas
inversões dos valores, onde o indivíduo ora é sujeito, ora objeto) é que
apareceu a figura do ilustre poeta francês Charles Baudelaire. Devido a esses eventos que marcaram a modernidade, é que a poesia baudelaireana vai ser marcada
exclusivamente pelo sentimento de tristeza, de melancolia. Nesse sentido, Benjamin refere que “o engenho de Baudelaire, nutrindo-se de
melancolia, é alegórico. Pela primeira vez com Baudelaire, Paris se torna
objeto da poesia lírica”. [4]
O conceito “alegórico”, aqui, se
torna, muito importante, justamente, porque é a partir da visão alegórica do
homem moderno, que a teoria crítica de Benjamin, tenta entender a modernidade.
Baudelaire faz, portanto, um resgate da poesia lírica para o seu contexto,
mudando-lhe os temas. A construção poética de Baudelaire já expressa a
profundidade do seu pensamento, ou de suas concepções no que diz respeito ao
olhar do poeta lançado sobre a cidade. Quanto a isso, segundo Benjamin
Essa
poesia não é nenhuma arte nacional e familiar; pelo contrário, o olhar
alegórico a perpassar a cidade é o olhar de estranhamento. É o olhar do flâneur, cuja forma de vida envolve com
um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade.
[5]
O
poeta, portanto, possui posicionamento e ponto de vista diferente daqueles que
são assumidos pelas massas, no que diz respeito à cidade. Enquanto o poeta vê a
cidade com um olhar não só de estranhamento, mas também de desconfiança, a
massa, por sua vez, vê-la com grande encanto admiração e fascinação. É nesse
cenário que vem à tona uma daquelas imagens pela qual Baudelaire expressa o seu
pensamento em relação à modernidade: trata-se do flâneur. É com este que a arte definitivamente se dirige para o
mercado e se transforma em mercadoria. Sendo Assim, a arte na modernidade,
diferentemente, da tradição, se torna uma forma de ganhar dinheiro. O flâneur na poesia baudelaireana seria uma tendência do indivíduo para o mercado, para o
consumo. “Com o flâneur, a
intelectualidade parte para o mercado” [6].
Ou seja, esse fenômeno não arrasta somente as massas, que na sua maioria, isto
é, na generalidade, é passível de ser movida por qualquer sinal de fascinação,
com muita facilidade, mas atinge também, os intelectuais, num choque
inevitável. Nesse sentido,
Baudelaire
sabia como se situava, em verdade, o literato: como flâneur ele se dirige à feira; pensa que é para olhar, mas, na
verdade, já é para procurar um comprador. Ao olhar, penetra na alma de qualquer
um, realizando o que Baudelaire, no poema “As
multidões”, denomina “santa
prostituição da alma” e, mais adiante, a “ebriedade religiosa da cidade grande”. “A ebriedade a que se
entrega o flâneur”, diz Benjamin “é a
da mercadoria em torno da qual brame a corrente dos fregueses” [7]
O
flâneur seria ainda uma espécie de instrumento
por meio do qual o capitalismo, na busca pela aquisição de lucro, foi fortemente
favorecido; aquele instrumento de persuasão
que convence qualquer um a parar diante de uma vitrine e dela tirar o produto
para, dada a compra, efetuar o consumo. Como instrumento do capitalismo, ele
também tem a capacidade de criar necessidades nas pessoas, das quais elas não
se dão conta naquele exato momento, mas somente num momento posterior.
Outra
personagem poética criada por Baudelaire é o dândi[8].
Segundo ele, o dândi é caracterizado por ser.
O homem
rico, ociosos, e que, mesmo eterno entediado, não tem outra ocupação senão a de
correr atrás da felicidade; o homem educado no luxo e acostumado desde a sua
juventude à observância dos outros homens, aquele, enfim, que não tem outra
profissão senão a da elegância sempre gozará em todos os tempos de uma
fisionomia distinta, inteiramente à parte.[9]
Aparentemente,
o dândi é aquele ser que se volta à procura dos prazeres e das comodidades da
vida. No entanto, isso é apenas um aspecto da sua aparência, quando na verdade
, ele é um ser misterioso. Ele é sempre
notável dentro de uma sociedade, sobretudo, porque a educação e a elegância
constituem parte de seus traços característicos. É o indivíduo criado no luxo e
que, portanto, não conhece o outro lado da existência, a saber, o sofrimento, a
miséria, a tristeza, dentre outras. Mas nem por isso – ou seja, pelo fato de
viver no luxo – ele é um ser de total felicidade. Tanto é que Baudelaire
insinua que sua ocupação primordial é a busca dessa. De acordo com Baudelaire,
O Dândi
não visa o amor como objetivo especial. [...]. O Dândi não aspira ao dinheiro
como a uma coisa essencial; um crédito infinito ser-lhe-ia insuficiente; ele
deixa essa grosseira paixão para os mortais vulgares. O dandismo não é sequer,
como muitas pessoas de pouca reflexão parecem acreditar, um gosto imoderado
pelo vestir bem e pela elegância material. Essas coisas são para o perfeito
Dândi apenas um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. [...].
Mas um Dândi nunca pode ser um homem vulgar.[10]
Em princípio, o Dândi aparenta ser complexo e de difícil entendimento;
aquele ser insatisfeito que aparece não ter objetivos definidos. Sendo rico,
ele não tem preocupações com o “andar bem arrumado”, entretanto, também não é
vulgar. De acordo com Baudelaire, “o dandismo
surge principalmente nas épocas transitória em que a Democracia ainda não era
todo-poderosa, em que a Aristocracia só em parte é indolente e aviltada”. [11]
Sendo, portanto, um ser de resistência e de difícil entendimento, pode
se concluir que o Dândi é aquele ser que sempre quer dar uma mensagem;
sempre quer fazer um alerta, ou chamar a atenção para alguma coisa que está por
vir. Talvez seja pelo fato de voltar-se para algo fora do real, mas que, como
previsão, poderá se realizar, é que o dândi se torna esse ser incompreensível,
embora seja notado por todos. “O dandismo
é o ultimo brilho de heroísmo nas decadências”.[12]
Justamente pelo fato de fazer frente às decadências, não aceitar ser engolido
pelo sistema e, portanto, resistir (até às ultima conseqüências) é que
“os dândis são cada vez mais raros entre nós”.[13]
No
sentido da resistência que aqui está sendo tratado é que Baudelaire fala da
imagem do herói. Em “A Paris do segundo império em Baudelaire”, Benjamin refere
que “Baudelaire moldou a sua imagem de artista segundo a imagem do herói”.[14]
O herói é aquele que busca certa autonomia; é aquele que sabe diferenciar uma
coisa da outra. Ele está em constante luta contra as concepções vigentes de sua
época e que distorcem a realidade. Sendo herói, Baudelaire não cai no
extremismo de se adequar apenas a um lado da realidade, mas procura conhecê-la
em sua integridade. É por isso que ele sempre estava presente em diversos
lugares. Baudelaire andava tanto no luxo como no lixo. Desse modo, da mesma
forma como ele ia aos lugares precários da cidade, ele também ia aos lugares
nobres, como, por exemplo, os salões. Foi justamente isso que fez dele – mais
do que um poeta – um herói. Baudelaire sabia que a sua sociedade era uma
sociedade voltada para a busca do dinheiro e era essa uma das razões pelas
quais uns eram ricos e outros, miseráveis. Foi justamente pelo fato de conhecer
a pobreza de uma parcela considerável da população, é que a poesia de
Baudelaire vai tratar de demonstrar as mazelas da cidade. Uma cidade que está
em contato direto com a morte. Morte essa que se inicia por causa da busca de
riquezas, o capitalismo. Essa cidade que se arruína, é aquela para onde todas
as massas convergem. Para lá se dirigem porque no seu imaginário (da
massa) a cidade passa a ser o local onde se encontra a felicidade. Nessa
cidade, o homem não deixa rastro, pois, ele é dissolvido na multidão. Para
Baudelaire é na cidade, portanto, que está a modernidade. A crítica que ele
faz, não faz diretamente a ela, mas ao desenvolvimento da técnica, que trousse
o progresso para uns e o regresso para outros. Diante da massificação da
sociedade, é preciso reconhecer que Baudelaire não é massa, entretanto, ele que
se envolver com ela. Tudo o que ele não quer é ser escravo de um sistema que
atua, principalmente, na manipulação da consciência das pessoas.
[1]
Escritor francês, nasceu em Paris no
ano 1821 e morreu em 1867, aos 46 anos. Publicou antes de 1848, o período
chamado dandy, os salões de 1845, 1846 e outros textos. Mas foi no período da
maturidade, entre 1852 e 1863, que ele mais produziu os textos que marcaram
época. Teremos na prosa baudelaireana, mesmo considerando a estética interna da
poesia e na poesia em prosa, os antológicos escritores Sobre Edgar Allan Poe, a
Exposição Universal de 1855, os caricaturistas franceses e estrangeiros, ambos
de 1857, o Salão de 1859, a arte filosófica publicada em 1869, as experiências
com drogas e suas reflexões em textos, o Richard Wagner e Tannhäuser em Paris
de 1861, os escritores sobre Delacroix de 1863 e as conclusões esparsas na obra
“Meu coração posto a nu”, de 1862-1864, onde afirma “Eu encontrei a definição
do Belo, – de meu Belo. É qualquer coisa de ardente e de triste, qualquer coisa
de um pouco vago, deixando margem à conjetura. Eu vou, se me permitirem,
aplicar minhas idéias a um objeto sensível, ao objeto, por exemplo, o mais
interessante na sociedade: um rosto de mulher”.
(cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras
estéticas. Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.).
[2] Na sociedade contemporânea, lixão
além de se tornar morada de muitos, se tornou também o local de onde esses
muitos passaram a retirar seus alimentos, quer aproveitando o resto de comida
proveniente das fartas mesas dos capitalistas, aos quais o progresso beneficiou
diretamente, quer extraindo elementos para serem vendidos a preço de miséria, o
que também não resolveu a situação, pelo contrário, de algum modo contribui
para uma linearidade no terrível estado de miséria. Portanto, o progresso e a
técnica, prerrogativas exclusivas da modernidade, trouxeram para a sociedade os
dois gumes da espada. Simultaneamente trouxeram a felicidade (de uns poucos) e
a infelicidade (de muitos); a fortuna e a maldição; a vida e morte.
[3] Como exemplo pode ser citada a Rua
Grande de São Luis – Ma, a Rua 25 de Março, no centro de São Paulo e a Rua XV
de novembro no centro de Curitiba.
[4] Cf. KOTHE, Flávio (Org.). Walter Benjamin: Sociologia. Ed. 2. São
Paulo: Ática, 1991. P. 38.
[6]
Cf. Id. Ibidem. P. 39.
[7] Cf. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2005000100003&script=sci_arttext
Acesso em: 18-06-2010
[8] O
dandismo baudelaireano está não apenas na raiz de toda a fundamentação estética
do que produziu o autor, mas até mesmo na origem e na justificação de sua
conduta humana e social. Recorra-se ao próprio poeta para que se entenda melhor
essa instigante e paradoxal postura diante da vida e da arte. O que seria
exatamente esse dândi e qual sua função mais significativa? Para Baudelaire, a
natureza estaria corrompida pela própria natureza [...]. Essa visão de natureza
desde sempre e necessariamente corrupta faz-se ainda mais nítida numa passagem do ‘Éloge du maquillage’, em L’ art
romantique, na qual Baudelaire sustenta que “la nature n’ ensegner rien, ou
presque rien, C’est elle contraint l’homme à dormir, à boire, à manger, et à se
garantir, tant bien que mal, contre lês hostilités de l’atmosphère. C’est elle
aussi qui pousse l’ homme à tuer son semblable, à Le manger, à Le sequestrer, à
Le torture.” [...] o dandismo baudelaireano nada mais é que uma
manifestação do espírito, um processo da vida interior cujas raízes e
implicações são bem mais fundas do que se possa imaginar. [...] O artifício do
dandismo corrigiria assim a imperfeição natural, e esse é o desiderato único de
toda a civilização. (Cf. BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Ed. 4. trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985. P. 55-56.).
[9]
Cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci
Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993. P.239.
[10] Cf. BAUDELAIRE, Charles. Obras estéticas. Trad. Edilson Darci
Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993. P. 240.
[11] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[12] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[13] Cf. Id. Ibidem, P. 241.
[14]
Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad.
Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água
Editores, 1992. (P. 92).
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