Este trecho faz parte do livro Pensar a
república, organizado por Newton Bignotto (UFMG, 2000).
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Estamos
acostumados a utilizar república e democracia como termos quase que
intercambiáveis. Os dois nomes parecem expressar o arremate a que chegou o
Ocidente moderno, em termos de organização política desejável. Evidentemente,
sabemos que há repúblicas que não são democráticas – mas para elas não vale o
nome de república! – e democracias que são monarquias constitucionais (mas,
diremos, são até mais republicanas que as repúblicas). Assim, a oposição que
pode haver entre os dois regimes se desfaz em nosso tempo, porque
implicitamente supomos que se distingam as verdadeiras e as falsas
repúblicas, as democracias genuínas e as de fancaria. Aqui, no entanto, vamos
revalidar a oposição, não porém para dela fazer um absoluto, e sim para
mostrar que pode ser heurística, que pode contribuir para pensar, e quem sabe
melhorar, a política.
De
modo geral, na tradição que se inicia na Grécia, a democracia passa por ser o
regime dos polloi, dos muitos. Essa multidão de pobres se mobiliza,
sobretudo, pelo desejo de ter, e o grande risco do regime em que ela
prevalece é que oprima, com seu peso, os mais ricos. A tirania, por isso
mesmo, não está limitada ao caso em que um domina, ou em que uma minoria toma
para si o governo, mas pode caber em todas as eventualidades nas quais se
deixa o plano do direito e da lei para se entrar no da ganância. Há uma
tirania da massa que é tão detestável quanto a do indivíduo ou a do grupo. O
governo tirânico de um só, a oligarquia e o que chamaríamos hoje de
deformação da democracia (mas a que Aristóteles dá exatamente o nome de
"democracia", para espanto do leitor atual e dificuldade de seus
tradutores) têm em comum o primado do desejo ganancioso sobre o respeito à
lei. E é esse espectro que ronda a democracia, sendo por isso que ela
suscita, em toda uma vertente do pensamento grego, fortes reticências. Pouco
educada – afirma-se – a massa dos polloi pode facilmente
entusiasmar-se pela expropriação dos ricos, e pensar que a política não é
senão o modo de confiscar o excedente que esses possuem. Vê-se que por aí
segue parte essencial da política de esquerda, na medida mesma em que esta é
caracterizada por conferir à discussão política uma conexão social, e que não
pode pensar a questão política como referindo-se apenas aos poderes de
Estado, mas sim considerando os poderes como gerados a partir da sociedade.
Contudo, o que argumentarei é que essa política de esquerda se equivoca, e
que ao deixar de lado a tópica republicana – até porque essa última
geralmente é vista como conservadora – perde de vista a questão do poder, e
se limita a um distributivismo que em derradeira análise não vai muito
adiante do velho populismo latino-americano.
Antes
de prosseguir, é preciso discutir melhor o desejo. Esse termo, em
especial no que se refere à democracia, se reveste de sensível vagueza. Tal
caráter vago, porém, não é fortuito, mas resultado necessário das questões
que ora expomos. Antes de mais nada, o desejo é afirmado na terceira, e
pejorativa, pessoa1: quem
diz a democracia como regime do desejo, ou os polloi/pobres como
essencialmente desejantes, são os meios conservadores ou dos aristoi,
esses melhores ou ricos que os antagonizam. Nesse sentido, o desejo é, em
primeiro lugar, ganância, em segundo, desejo de bens, em terceiro, a
epítome do que é irracional, em quarto, a raiz ou o limite da indecência.
Quanto mais se deseja, menos razão se tem. Desejam-se bens, e por isso
quer-se roubá-los: não há diferença significativa, aos olhos de um certo
conservadorismo, entre o desejo de furtar e o de expropriar, entre o crime
comum e o projeto político socialista. Contudo, se formos atentos, notaremos
que o primeiro ponto que apontei não implica necessariamente os seguintes. O
desejo de bens não precisa ser voraz nem indecente: pode ser, simplesmente, o
modo de adquirir a base material para a própria existência digna.
Mais
que isso, com nossa análise propomos duas coisas. Primeira, que desde os
antigos um caráter social tenha estado presente na caracterização da
democracia. É corrente ouvir-se que a democracia foi uma questão puramente
formal, jurídica, constitucional, burguesa, dizem alguns, e que seria preciso
acrescentar a essa insuficiente ossatura a carne do social, isto é, dos
conflitos de classes, das relações econômicas etc. É verdade que,
historicamente, assim se deram as coisas na modernidade, com uma democracia
"formal" nos séculos XVIII e XIX, à qual um caráter social se
juntou, a preço de muitas lutas, ao longo sobretudo do século XX. Mas, se já
os gregos viam na democracia o despontar das lutas sociais, a novidade deixa
de ser o momento, no século XX, em que ela passa de regime apenas político
para adquirir uma dimensão social: o que é novo, o que precisa ser explicado,
é por que a modernidade construiu a democracia representativa como um regime
do qual, ao menos de início, se excluía o forte conteúdo social que os gregos
nele depunham. Não quero dizer, com isso, que as reivindicações sociais
efetuem uma reelenização da democracia, nem que correspondam melhor a uma
imaginária essência do que seria esse regime político. O que cabe, porém, é
matizar muitíssimo a idéia de um sentido inicialmente político e só depois
social do regime democrático. Mais que isso, tem cabimento sugerir que a
democracia, regime dos polloi, congregue a um tempo a temática do
poder e a das relações sociais. Separar os dois temas foi um complexo – e
difícil – construto moderno.
Nossa
primeira observação é, pois, que o social não é um acréscimo recente a uma
temática originalmente apenas jurídica ou política em sentido estrito: ao
contrário, o que precisa ser explicado é como, no início da modernidade, ao
se revisitar a democracia antiga, a fim de torná-la representativa e de
agregar-lhe os direitos humanos, cinde-se de suas implicações sociais uma
forma política, que passa a operar independentemente daquelas. Esse recorte,
longe de ser originário, é ele mesmo problemático.
Segunda
proposição que adiantamos: que não há como separar as temáticas das lutas
sociais e do desejo. Ou melhor, que a separação entre as duas também é uma
façanha, se assim podemos chamá-la, moderna. Usualmente as lutas sociais
remetem à esfera dos interesses, mas apenas porque são entendidas segundo uma
sua vigorosa racionalização. Com efeito, desde os primórdios da modernidade o
tema antigo das virtudes cede lugar ao dos interesses. Esses remetem a alguns
traços básicos. Destaca-se uma economicização das relações humanas:
interesses apontam, em última análise, para uma leitura econômica de nossas
vidas. Mesmo o que é qualitativo, como a vida ou a vida boa, tende a ser
quantificado, em termos de meios e fins, em termos de investimentos e
resultados. E essa dominação do futuro mediante o presente é construída
racionalmente: isto é, uma análise precisa de vantagens e prejuízos, de
riscos e resultados, estrutura o tempo. Economia e razão servem para o
capital construir o seu mundo. O avanço das lutas sociais não destoará desse
padrão. Quando os operários se organizam como classe a fim de lutar por seu
quinhão, ou mesmo com o fito de extinguir a dominação burguesa, a
palavra-chave é interesse, e esse é medido pelos padrões da economia e da
razão. Aí temos, aliás, o eixo – e a limitação – do marxismo.
Sem
dúvida há nisso muito a levar em conta. A política moderna destitui as
virtudes de praticamente qualquer eficácia. Sem a base nos interesses, é
difícil uma política funcionar hoje. Daí que vá de fracasso em fracasso aquele
que tenta, em nossos dias, fazer política apenas por ideais, princípios ou
valores; daí que a ética a que Weber viria dar o nome de da convicção seja,
desde Maquiavel, desqualificada em termos de sua viabilidade política.
Contudo,
o que precisamos enfatizar é aquilo que virtudes, na Antiguidade, e
interesses, nos tempos modernos, reprimem. Porque virtude e interesse
têm o condão de moralizar a política, a virtude direta e obviamente, o
interesse indireta e de maneira menos evidente. Não apaguemos a diferença
entre interesses e virtudes. O interesse rompe decisivamente com a virtude,
porque esta passa pela recusa de si, pela abnegação, enquanto ele é o sinal
mais claro da afirmação pelo menos de um certo si, o si econômico medido
racionalmente. Mas, feita esta ressalva, virtude e interesse têm ambos por
função reprimir algo que passa por horrível, o desejo.
Porque
voltemos aos perigos da democracia, isto é, ao risco, antevisto pelos
conservadores gregos, de que a massa dos polloi decida expropriar os
poucos ricos e instituir sobre eles uma tirania. Ora, tal perigo é denunciado
também em tempos modernos: no século XIX, negar o sufrágio universal é o
recurso das direitas, receosas de que o populacho votante resolva confiscar
as propriedades dos abonados. A multidão gananciosa, entre os gregos, é tida
por viciosa – daí que seja preciso ativar as virtudes contra ela. Já a turba
ensandecida, entre os modernos, não percebe o que é melhor para si próprio, a
médio ou longo prazo: por isso precisa ser tutelada pelos interesses. O
desejo é visto como concupiscência ou mesmo como loucura. Implica uma
escravidão às próprias paixões. O homem que apenas deseja, sem o controle da
razão, necessita ser protegido, tutelado. Há, é claro, diferenças entre os
distúrbios antigos e modernos causados pelo desejo. Mas nos dois casos a
ênfase está posta na expropriação dos bens dos ricos. O desejo é
essencialmente de bens; não se distingue a reivindicação da massa e o furto
ou roubo pelo criminoso; a massa que clama por igualdade no acesso à
propriedade não é diferente do assaltante: pode até ser pior, constituir-se
em quadrilha. Partido de esquerda, sindicato e quadrilha aparecem como
próximos, ainda hoje, aos olhos de muitos conservadores: basta ver como o
movimento dos sem terra é apresentado pelos fazendeiros mais conservadores.
O
que até aqui procurei enfatizar, neste segundo tópico (o do caráter desejante
das lutas sociais), foi que não dá para reduzi-las ao enfoque racional e
econômico dos interesses. Sem dúvida, a mensuração e a racionalização que
esses últimos permitem efetuar são preciosas. Graças a elas é que podemos
negociar e, assim, instituir uma dimensão temporal na realização do que é
desejado. O desejo negocia pouco; a virtude despreza a negociação; é do cerne
do interesse negociar. Daí que não fique mal uma passagem do desejo ao
interesse, e que essa articulação seja até mais feliz, pelo menos
potencialmente, do que a oposição – mais radical, inegociável – entre desejo
e virtude. Mas o sério risco na perspectiva dominante, que dá primazia ao
interesse, reside em simplesmente esquecer o desejo como base, motor,
ou como queiram chamá-lo, de todo um processo social de descontentamento e de
busca de novos contentamentos.
Passemos
à república.
***
A
temática republicana se diferencia, no cerne de sua definição, da
democrática. Se há um tema que aparece constantemente quer nos pensadores
republicanos de Roma, quer na obra de Montesquieu quando reestuda aquele
Estado, é o da renúncia às vantagens privadas em favor do bem comum e da
coisa pública – renúncia esta a que Montesquieu dá o nome de vertu, e
que me parece adequado traduzir por abnegação. Trata-se, para o autor
do Espírito das leis, de uma qualidade anti-natural – dado que nossa
natureza nos faria seguir as inclinações de nosso desejo para ter e ter mais
–, construída por intensa educação.
Assim,
para resumirmos, poderíamos dizer que enquanto a democracia tem no seu
cerne o anseio da massa por ter mais, o seu desejo de igualar-se aos que
possuem mais bens do que ela, e portanto é um regime do desejo, a república
tem no seu âmago uma disposição ao sacrifício, proclamando a
supremacia do bem comum sobre qualquer desejo particular. Evidentemente, é
possível criticar a república dizendo-se que o suposto bem comum é, na verdade,
um bem de classe, e que os sacrifícios que se fazem em nome da Pátria são
desigualmente repartidos e, sobretudo, jamais põem em xeque a dominação de um
pequeno grupo sobre a maioria. Mas o que eu gostaria de enfatizar na temática
republicana é a idéia de dever que nela está saliente.
Porque
talvez a grande dificuldade do pensamento democrático tenha estado, por muito
tempo, em articular a sua temática do desejo – no caso, o desejo das massas
por ter mais – com a necessidade de que elas não se limitem a tomar os bens,
de que se sentem privadas e, com isso, injustiçadas, mas também se proponham
a conquistar o poder. A disputa pelos bens se salda por um fracasso quando
não se desdobra – e se fundamenta – na luta pelo poder. Isso vemos claramente
na epopéia dos irmãos Gracos, que se batem, na Roma republicana e socialmente
desigual, por uma reforma agrária, porém terminam, um e depois o outro,
assassinados e derrotados pela classe senatorial a que pertenciam e que os
viu como traidores.
A questão
é um pouco complicada, porque na verdade é no desejo que, seja na Europa do
século XIX, seja hoje no mundo todo, surge a essência da luta social. Não
reclamam, as massas, porque se vejam privadas de participação no Parlamento,
no Executivo ou no Judiciário: o que as mobiliza é a privação do que é
essencial para a vida ou em nossos dias, como já argumentei em outro lugar,
cada vez mais a falta que lhes faz um supérfluo que se tornou essencial.
Desse, o melhor significante é o tênis de qualidade, cujo roubo funciona, nas
grandes metrópoles do mundo pobre, como o preciso sinal de como a política se
joga no dia-a-dia do desejo2. A
inveja do tênis, assim, é talvez o motor das lutas sociais nas periferias,
mais do que nunca foi a propalada inveja do pênis em sua versão freudiana e
anti-feminista... Mas, se é no desejo que eclode o caráter social da luta
política, ele é insuficiente para dar-lhe vazão e solução. E isso porque a
luta pelo excedente, pelo que constitui a desigualdade, só na aparência é um
combate pelo que sobra, pelo resto, pelo excesso: ela é na verdade a batalha
pelo centro, pelo mando, pelo poder.
Vejamos
que o problema é duplo. A ficarmos no plano do desejo, o risco é enorme de
que não saibamos encaminhar a sua possível, ainda que sempre incompleta,
realização. Mas, a nos apressarmos em resolvê-lo, perdemos por completo a
noção do que está em jogo. É o que acontece quando, rápido demais, se procura
traduzir o descontentamento popular em termos de suas possíveis soluções: por
exemplo, como dizia acima, aumentar sua participação no legislativo, no
executivo, melhorar o judiciário, a polícia. O desejo tem seu tempo, sua
demora; paradoxalmente, ele surge apressado, urgente, porém toda tentativa
veloz de traduzi-lo em outra linguagem se salda por fracasso. Ou o saciamos,
e aí a velocidade tem sentido, ou ele amadurece e se modifica, e aí há que
respeitar um tempo, uma dilação. Como, nas linhas que se seguem, vou discutir
seu encaminhamento, sua canalização, é preciso começar ressalvando que toda
essa hidráulica das soluções dará errado se não houver espaço para os
desvios, os equívocos, as demoras – as enchentes, as vazantes. E por isso
antes de mais nada convém lembrar Maquiavel, em sua passagem sobre os homens
que, sabendo das cheias que lhes vão destruir as cidades e os campos,
precavidos constroem represas, pontes, barragens. Essa sabedoria que gera o
saber moderno, essa moral da previdência que está na base da razão como planejamento,
é certamente útil – mas não deve, tratando-se de desejo, ser superestimada.
Adianto-me um pouco, dizendo que a democracia é popular, está do lado da
sociedade, dos que podem obedecer a maior parte do tempo, podem desobedecer
menos vezes – mas desejam o tempo todo; e que a república está do lado do
poder, das instituições, expressando a lógica de quem manda. Ficar na sede
(com e aberto) do poder significa perder de vista a sêde (com e
fechado) de algo que não é poder, que é apenas equacionado por esse, e sempre
mal equacionado. O desejo é esse inominado.
Mas
indaguemos como se viabiliza, se consolida, se realiza a democracia. Desde
que se coloca o tema do poder, surge a seguinte questão. Pensando-se o poder,
não há problemas, ou eles são poucos, se e somente se quem
manda é diferente de quem obedece. Nesse caso, as regras que valem para todos
não valem para aquele que governa. E isso é tão verdade que, mesmo em regimes
democráticos, uma exceção se estabelece em favor do chefe de Estado3, ou
mais amplamente em proveito dos parlamentares, imunes a procedimentos que
valem para os demais – o que é um resíduo significativo da antiga idéia de majestade,
que se adensava no rei. Desde, porém, que haja identificação entre quem
manda e quem obedece, o poder suscita uma série de problemas.
O
único regime no qual, em tese pelo menos, há plena identificação entre quem
manda e quem obedece é o da soberania popular, ou seja, a democracia. Assim,
os problemas de funcionamento político a que aludimos são especialmente
fortes nesse regime. Enquanto os outros regimes foram perdendo sua
legitimidade ao longo do século XX e é possível que continuem a perdê-la nos
tempos próximos, a democracia foi-se tornando, em especial desde a II Guerra
Mundial, o único modo de governo a ser, hoje, considerado legítimo. No
entanto, esse estoque de respeito que ela merece contrasta com um déficit de
eficácia no plano do funcionamento. Em outras palavras, a democracia
sobressai-se na legitimidade, e falha no funcionamento. Possivelmente um dos
eixos de seu difícil funcionamento, na prática, resida precisamente na
facilidade maior de se agir quando se separa quase que no bisturi quem
legisla, executa ou julga, e quem obedece. Temos aí um recorte testado em
milhares de anos, uma tecnologia do mando e da submissão mais do que
desenvolvida – e contra isso, apenas uma legitimidade ainda jovem, que não
teve tempo, em duzentos anos desde que despontou em dois países, os Estados
Unidos e a França de suas revoluções, para capilarizar suas práticas, suas
emoções, numa escala comparável aos autoritarismos de eficácia bastante
comprovada. Em suma, a experiência política de milênios aponta para o
desligamento do mando e da obediência, ou seja, como bem o percebeu Hobbes,
entre lei e direito, ou ainda, como diríamos no contexto da presente
discussão, entre a ordem do poder e a do desejo.
É
a esses problemas – que nascem da própria definição da democracia – que a
república fornece pelo menos um esboço de resposta. Dizendo de outro modo, a
república é uma construção romana que visa exatamente a responder à pergunta
sobre as dificuldades que há quando os mesmos que mandam devem obedecer.
Notamos que é essa a problemática do direito/dever constitutivo da
democracia, isto é, do fato de que nesse regime, mais que em qualquer outro,
não tem cabimento opor radicalmente direito e dever, como quer com tanta
veemência Hobbes, no cap. XIV do Leviatã. Se na democracia só
pensarmos em satisfação dos desejos, ou mesmo em atendimento aos direitos
humanos, esqueceremos o cerne constitutivo dela, que é o poder do povo, ou
seja, o fato de que há democracia, essencialmente, não porque se sacie a fome
ou se respeitem os direitos, mas porque o povo detém o poder. Não é que fome
ou violência sejam problemas menores, mas é que em princípio podem ser
superados em registros políticos não democráticos, por exemplo, no caso de um
despotismo esclarecido, de um Estado de Direito aristocrático, ou ainda de um
governo populista e autoritário – ao passo que só há democracia quando ocorre
uma responsabilização básica do povo por suas decisões.
Ora,
toda a questão republicana está, justamente, no auto-governo, na autonomia,
na responsabilidade ampliada daquele que ao mesmo tempo decreta a lei e deve
obedecer a ela. Entende-se, portanto, que Hobbes, ao cindir jus e lex,
direito e obrigação, na mencionada passagem do Leviatã, tenha colocado
enormes dificuldades para um pensamento e uma prática republicanos. Toda a
construção de seu Estado tende à monarquia – embora ele considere legítimos
os regimes em que vários ou todos mandam, ou sejam, a aristocracia e a
própria democracia –, precisamente porque nele o essencial é o claro recorte
entre quem manda e quem obedece. Na sua doutrina, é verdade que quem obedece constitui
aquele que manda como seu representante, e portanto obedece por assim dizer a
si mesmo, mas a mecânica cotidiana do sistema nega ininterruptamente essa
semi-identificação entre o governante e os súditos, porque – sendo a lei
simples expressão da vontade injustificada do soberano – ele não pode estar
sujeito a ela. (É, pois, significativo que Hobbes admita a democracia, porém
nem mencione a república. O regime popular é mais aceitável em sua teoria do
que aquele no qual quem manda precisa, sempre, conter-se. E isso porque seu
poder, sendo soberano, libera a hybris do governante, aquilo mesmo
contra que a república é instituída).
Esse
esquema separando o mando e a obediência é compreensível e está muito mais
ancorado em nossos costumes do que pensaríamos à primeira vista, já que nossa
prática da política destoa em larga medida de nossa consciência – ou teoria –
da mesma. Pensamos que todos estão sujeitos à lei, mas praticamos melhor a
cisão entre lei e direito, entre quem governa e quem obedece, sobretudo nos
países em que a democracia é frágil ou por se consolidar. Ora, o que aqui
desejo assinalar é que pode haver um encontro entre as temáticas republicana
e democrática. Melhor até, é preciso haver esse encontro, se queremos
que a democracia se realize. Uma democracia sem república não é kratos,
é simples populismo distributivista, como tanto vimos nas décadas em que,
primeiro na Europa e depois na América Latina, as massas acederam à
visibilidade do espaço social, manifestando-se inicialmente pelo seu desejo.
Na prática, é o despotismo de um príncipe demótico. Daí que a reivindicação
social seja, a um só tempo, o que permite sair da democracia restrita a uma
elite para uma democracia de massas, e aquilo que tende a reinstituir, no seu
centro, um poder de príncipe ou tirano, uma heteronomia das multidões4.
A
democracia, para existir, necessita da república. Isso, que parece óbvio, não
o é. Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para se satisfazer
o desejo de ter, é preciso tomar o poder – e isso implica refrear o desejo de
mandar (e com ele o de ter), compreender que, quando todos mandam, todos
igualmente obedecem, e por conseguinte devem saber cumprir a lei que emana de
sua própria vontade. Para dizê-lo numa só palavra, o problema da democracia,
quando ela se efetiva – e ela só se pode efetivar sendo republicana –, é que,
ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo que clama por realizar-se, ela
também só pode conservar-se e expandir-se contendo e educando os desejos. Eis
a contradição terrível da democracia, que até hoje a limitou
extraordinariamente e fez até, lá onde ela melhor se constituiu, que não
fosse muito além da esfera política. A dificuldade de uma democratização dos
afetos e da socialização, ou seja, da vida afetiva e das relações de
trabalho, está exatamente nessa exigência da autonomia, que nem sempre é
entendida como essencial, porque se deseja da democracia a distribuição dos
bens, e não a gestão do poder.
Mas,
se a questão de traduzir tudo isso na prática é dificílima, a saída teórica
me parece, pelo menos, colocada. Há que entender toda a problemática da
autonomia, ou seja, da autogestão dos poderes e de si que é característica da
democracia, a partir de uma extensão dos valores republicanos. É o que Roma
propôs, porém conservando um recorte essencial entre a minoria de patrícios
que ao mesmo tempo mandava e obedecia, e a maioria desprovida de direitos
políticos. A solução republicana vigia para os membros do Senado, mas somente
era possível na medida em que persistia a velha divisão. Na verdade, era
exatamente porque aos senadores ainda se facultava mandar irrestritamente
sobre aqueles que deviam obedecer ilimitadamente, que eles podiam, no seio de
seu corpo, praticar a difícil moralidade republicana, de obedecer à lei que
eles mesmos promulgavam.
***
Tentemos
encaminhar alguma conclusão. Talvez haja dois pontos a esclarecer, ainda. O
primeiro é que o desejo é dito sobretudo dos que não têm, e a abnegação dos
que têm5. A
república é a virtude dos proprietários, ou dos patrícios: é uma excelência,
uma alta qualidade moral, uma dignidade, em suma, uma aretê, que bem diz de
sua natureza aristocrática. Não por acaso, a república modelar, aquela que
para todos os tempos ocupa o papel paradigmático que no caso da democracia é
exercido por Atenas, é Roma: e lá o regime republicano nasceu do triunfo da
aristocracia sobre a monarquia, e viveu – e morreu – da resistência dessa
classe contra o povo. Assim, podemos dizer que o desejo, que aparece como uma
pulsão aquisitiva, se explica sobretudo a partir dos que não possuem nada, ou
somente pouco. Mas se esgota o desejo no anseio por adquirir coisas, bens?
Certamente que não. Através da matéria e da mercadoria se mira outra coisa –
o reconhecimento como ser humano, ou até algo menos nomeável, cuja densidade
apenas podemos imaginar. Mais interessante do que reduzir a complexidade do
desejo ao anseio pela igualdade reconhecida (outro modo de domesticar nossas
pulsões em algo racional), pode ser preservar seu caráter questionador, numa
palavra, sua dimensão de aventura. De todo modo, desejantes são os que
não têm, moderados os que têm. Ao insistir no caráter desejante da
democracia, estou negando todo propósito de racionalizá-la às pressas. Ao
apontar a virtude da república como regime da auto-contenção, estou afirmando
a necessidade de que os desejos, para realizarem uma democracia ampliada,
aprendam a educar-se segundo hábitos que são inicialmente aristocráticos.
Mas,
nesta encruzilhada de duas tradições a nós simpáticas, república e
democracia, pode ser que a república já tenha mais ou menos constituída a sua
tecnologia, o seu modus faciendi; o que devemos é desenvolver a
democracia6. Desse
regime ainda sabemos pouco. Insisti em que ele precisa da república – se não,
fracassa. Mas a república deve ser o meio para ele expandir suas
possibilidades, reformando não apenas o Estado, porém as relações sociais e
mesmo micro-sociais. A novidade estará do lado da democracia – que tem,
claro, de ser republicana.
NOTAS
1 Sugeri que
a terceira pessoa do discurso não é apenas aquela de quem se fala, é aquela
de quem se fala mal, em Ao leitor sem medo, cap. 7, p. 223 da 1a
edição (São Paulo, Brasiliense, 1984) e p. 221 da 2a edição (Belo
Horizonte, Editora UFMG, 1999). Isso a pretexto da passagem em Do
cidadão (cap. I, parágrafo 2, p. 30 da edição brasileira – São Paulo,
Martins Fontes, 1992) em que Hobbes fala das pessoas que relutam em
sair de uma sala, onde conversam, receando tornar-se alvo da maledicência
alheia tão logo se afastem! Pode-se argumentar que à segunda pessoa eu
tributo o respeito de aceitá-la ou instituí-la como interlocutor, enquanto a
terceira é não só ausente, mas ausentada do discurso.
2
Referindo-se à discussão deste texto, na reunião de novembro de 1999 do grupo
de estudos sobre a república, e em especial ao argumento suscitado por um
debatedor de que o roubo de tênis visaria a vendê-los e assim obter dinheiro
para comer ou drogar-se, recebi a seguinte correspondência de Luis Felipe da
Gama Pinto: "Há 5 anos estou envolvido com uma ONG (Santa Fé) que lida
com meninos e meninas tirados de uma situação de rua, e não é preciso muita
experiência com eles para avaliar a incrível importância simbólica do tal
tênis, a força que tem como objeto de desejo. Ao contrário do que se possa
pensar, os tênis até justificam o sacrifício quanto à comida; ostentá-los
nos pés é fim mais capaz de seduzir muitas vezes do que a comida. O
grosso do dinheiro é mais comum que se ganhe no tráfico ou com outros roubos.
Os tênis importa tê-los nos pés." (e-mail de 10 de fevereiro de 2000).
3 Basta citar
o art. 86, parágrafo 4, da Constituição do Brasil, de 1988, que proíbe
processos contra o presidente, durante o seu mandato, por crimes comuns não
relacionados ao exercício de seu cargo, embora os autorize uma vez deixado o
poder; ou a recente pendência judicial, nos Estados Unidos, em que o
presidente Clinton pretendia interromper o andamento de um processo movido
contra ele pedindo indenização por suposto crime contra a honra de uma
pessoa.
4 O príncipe
ou tirano pode ser um ditador, mas também um líder carismático ou,
simplesmente porém com tanta eficácia, um pregador religioso ou um
apresentador de televisão ou rádio. O essencial do que afirmo é a reposição,
no centro do que deveria ser uma democracia ampliada porque levasse em conta
o desejo, de um poder anti-democrático.
5 Esta frase
é de José Murilo de Carvalho, no debate; as ilações são de minha
responsabilidade.
6 Questão
levantada por Maria Alice Rezende de Carvalho.
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