No contexto da modernidade são notáveis as
transformações ocorridas na sociedade em razão da aceleração gradual do
progresso que emerge como subproduto da revolução no conhecimento científico
que possibilitou o desenvolvimento da técnica. Progresso e técnica são duas
ideias que mantém entre si uma intima ligação. Pode-se dizer, a título de
argumento central, que ambas constituem, como tais, os dois braços fortes da era
moderna.
Ora, seria ingênuo pretender negar as contribuições
do aperfeiçoamento técnico para o processo de modernização e progresso das
cidades, que se tornaram atrativas no início da modernidade. Por outro lado,
também seria ingênuo (e até mesmo uma espécie de cegueira do conhecimento) se
recusar a reconhecer as consequências negativas advindas da mesma técnica e
progresso, e que afetaram, especificamente, as camadas mais frágeis da
sociedade, sobretudo, em termos econômicos. A técnica, que está na base da
ideia de progresso, favoreceu o surgimento e o desenvolvimento da indústria e
das fábricas. Consequentemente se desenvolveu a ideia de capitalismo moderno,
onde a busca de lucro a todo custo pareceu ter sido a sua característica
primeira. O homem (que no início da Era Moderna ocupou o lugar que era ocupado
pela ideia de Deus, com a passagem das ideias de teocentrismo para o
antropocentrismo) agora parece ficar novamente em segundo plano. A pretensão
moderna de construção de um homem racional, autônomo e livre deu marcas de que
falhou. De livre, em seu contexto de vida tradicional, o homem passa a ser
escravizado nas fábricas. A esse propósito, Martins (1994, p. 11) faz os
seguintes esclarecimentos:
A
formação de uma sociedade que se industrializava e urbanizava em ritmo
crescente implicava a reordenação da sociedade rural e, sobretudo, o
desmantelamento da família patriarcal. A transformação da atividade artesanal
em manufatureira e em atividade fabril desencadeou uma maciça emigração do
campo para a cidade, assim como engajou mulheres e crianças em jornadas de
trabalho de pelo menos doze horas sem férias e feriado, ganhando um salário de
subsistência.
Ou seja, a
sociedade se modernizava na mesma proporção em que a exploração degradava o ser
humano. Desumanização, progresso e desintegração são ideias que se desenvolvem
paralelamente no contexto da modernidade, sobretudo, a partir da Revolução
Industrial sobre a qual, Martins (1994, p. 10-11) tece os seguintes argumentos:
A
revolução industrial significou algo mais do que a introdução da maquina a
vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos métodos produtivos. Ela representou
o triunfo da indústria capitalista capitaneada pelo empresário que foi pouco a
pouco concentrando as máquinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle,
convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores despossuídos. Cada
avanço com relação à consolidação da sociedade capitalista representava a
desintegração, o assolapamento de costumes e instituições até então existentes
e a introdução de novas formas de organizar a vida social.
Para um entendimento crítico do que foi esse
acontecimento, bem como da própria ideia de progresso, remetemos, aqui, o
leitor à leitura da IX tese sobre filosofia da história de Benjamin, como já
exposta acima, com o objetivo de comparar a ideia de progresso apresentada
enquanto tempestade com os próprios acontecimentos reais, tais como referidos
por Martins (1994). Prostituição, alcoolismo, violência e criminalidade,
degradação humana e miséria podem ser elencados aqui como sendo algumas
consequências desse processo de desestabilização social do início da
modernidade. Todavia, ainda cabe a
pergunta: O que teria acontecido com o projeto moderno de construção de um
homem livre e autônomo? Onde a razão moderna teria falhado? Estas são, sem
dúvida, questões de fundo sobre as quais o leitor é convidado a refletir.
Diante desses acontecimentos que marcaram, por
assim dizer, a modernidade em sua fase inicial, é que se destaca o pensamento
crítico de Baudelaire (escritor francês que viveu entre 1821 e 1867)
relativamente à ideia de modernidade. Essa crítica vai se expressar, sobretudo,
por meio de suas formulações poéticas que, à sua vez, serão marcadas pelo
sentimento de tristeza, de melancolia. Nesse sentido, Benjamin refere que “o
engenho de Baudelaire, nutrindo-se de melancolia, é alegórico. Pela primeira
vez, com Baudelaire, Paris se torna objeto da poesia lírica”. (KOTHER [Org.],
1991, p. 38). É oportuno argumentar que ao trazer a poesia lírica para o seu
contexto (já que ela não é uma invenção nova, uma vez que estava presente entre
os gregos antigo), Baudelaire muda-lhe os temas, os quais passam a estar intimamente
relacionados com os acontecimentos e fatos da vida moderna em sua origem. Desse
modo, a poesia baudelaireana vai expressar, de forma profunda, o pensamento e
as concepções relativas ao olhar do poeta sobre a cidade que se moderniza
gradativamente e em ritmo acelerado. Quanto a isso, Benjamin refere:
Essa
poesia não é nenhuma arte nacional e familiar; pelo contrário, o olhar
alegórico a perpassar a cidade é o olhar de estranhamento. É o olhar do flâneur, cuja forma de vida envolve com
um halo reconciliador a desconsolada forma de vida vindoura do homem da cidade.
(KOTHER [Org.], 1991, p. 39).
Ao contrário da massa, que vê acidade com olhar de
admiração, o poeta possui posicionamento e ponto de vista diferentes. Ele
observa a cidade com um olhar não só de estranhamento, mas também de
desconfiança. Essa percepção é expressa de forma alegórica por meio de
personagens que Baudelaire cria para externar sua crítica, como, por exemplo, o
flâneur e o dândi.
Para fins pontuais, o flâneur pode ser entendido como uma tendência através da qual a
arte se volta para o mercado, transformando, assim, em mercadoria a obra da
criação artística, a obra de arte. “Com o flâneur,
a intelectualidade parte para o mercado”. (KOTHER [Org.], 1991, p. 39). Posto
esse argumento, pode-se inferir dele que o caráter diluído da modernidade atinge
também, os intelectuais, num choque inevitável. Nesse sentido, Benjamin (apud
OLIVEIRA, 2005, p. 42) argumenta que “Baudelaire sabia como se situava, em
verdade, o literato: como flâneur ele
se dirige à feira; pensa que é para olhar, mas, na verdade, já é para procurar
um comprador”. Interessante é perceber aqui o comportamento e a mobilidade do flâneur. Como o mercado é movimento, o flâneur é aquele que vai transitar por
todos os lugares, e nesse sentido, pode ser considerado um homem das multidões
que observa os movimentos, sobretudo, os do mercado, junto com ele se
movimentando. Nas palavras de Benjamin, é também um andarilho que tem a rua
como sua morada: “a rua se torna moradia para o flâneur, que está tão em casa entre as fachadas das casas quanto o
burguês entre as suas quatro paredes”. (KOTHER [Org.], 1991, p. 66-67). Essa é
uma realidade que marca a vida de muitos homens nos tempos da modernidade.
Outra personagem poética criada por Baudelaire para
expressar suas ideias de modernidade e homem moderno é o dândi, cujas características ele apresenta nas linhas abaixo
conforme se lê:
O
homem rico, ociosos, e que, mesmo eterno entediado, não tem outra ocupação
senão a de correr atrás da felicidade; o homem educado no luxo e acostumado
desde a sua juventude à observância dos outros homens, aquele, enfim, que não
tem outra profissão senão a da elegância sempre gozará em todos os tempos de
uma fisionomia distinta, inteiramente à parte. (BAUDELAIRE, 1993, p. 239)
Ao contrário do flâneur,
que se integra à multidão, o dândi apresenta
uma postura bem diferente. Como um ser sempre notável por sua refinada educação
e elegância, ele é ao mesmo tempo um ser misterioso. Trata-se de uma personagem
que representa os indivíduos criados no luxo. A respeito de sua notoriedade,
Baudelaire (1993, p. 240) argumenta:
O
dândi não visa o amor como objetivo
especial. [...] O dândi não aspira ao
dinheiro como a uma coisa essencial; ele deixa essa grosseira paixão para os
mortais vulgares. O dandismo não é sequer, como muitas pessoas de pouca
reflexão parecem acreditar, um gosto imoderado pelo vestir bem e pela elegância
material. Essas coisas são para o perfeito dândi
apenas um símbolo da superioridade aristocrática de seu espírito. [...]. Mas um
dândi nunca pode ser um homem vulgar.
Pode-se argumentar, a título de hipótese, que o dândi é a figura do nobre que não se
deixa exaltar pelo aspecto da beleza constituída a partir de elementos
externos, como, por exemplo, a roupa, que pode favorecer a construção de uma
boa aparência a partir do vestir-se bem.
Desse modo, sendo rico, o dândi não se preocupa com o “andar bem
arrumado”, entretanto, também não é vulgar. Segundo Baudelaire (1993, p. 241),
“o dandismo surge principalmente nas épocas transitória em que a Democracia
ainda não era todo-poderosa, em que a Aristocracia só em parte é indolente e
aviltada”. Ou seja, ele aparece num contexto de transição em que lutas são
travadas mediante processos de resistências. A esse propósito, Baudelaire (1993,
p. 241) esclarece:
O
dandismo é o ultimo brilho de heroísmo nas decadências. E o tipo do dândi encontrado pelos viajantes da
América do Norte não desmente de nenhuma maneira essa ideia: pois, nada impede
de supor que as tribos que chamamos de selvagens
sejam restos de grandes civilizações desaparecidas. O dandismo é um pôr-do-sol.
Como o astro que desce, ele é esplêndido, sem calor e cheio de melancolia.
Como exemplo do que chama de resto de grades civilizações, Baudelaire referencia os pigmeus,
povos primitivos, originários do Zaire, na África, e que resistiram ao ingresso
no mundo moderno, não acontecendo o mesmo com outros povos primitivos a exemplo
dos esquimós, originários da região do Ártico Canadense, que, tradicionalmente
eram conhecidos como caçadores. Se estabelecêssemos aqui uma analogia entre
esses dois povos primitivos e as duas personagens poéticas criadas por
Baudelaire para retratar a modernidade, atrelaríamos, por um lado, os esquimós
à imagem do flâneur, e, por outro, os
pigmeus à figura do dândi. Exatamente
pelo fato de resistir é que os dândis,
como conclui Baudelaire (1993, p. 241), “são cada vez mais raros entre
nós”. É oportuno argumentar ainda que no
sentido de resistência que aqui está sendo tratada é que Baudelaire fala da imagem
do herói. Em A Paris do segundo império
em Baudelaire, Benjamin (1992, p. 92) refere que “Baudelaire moldou a sua imagem de artista segundo a imagem do herói”,
o qual pode ser entendido aqui como aquele que luta contra certas concepções
vigentes de sua época. Foi isso que fez de Baudelaire – mais que um poeta – um
herói, e daí a grandeza e fidelidade de seu engenho poético aos fatos e acontecimentos
próprios de sua época.