Este trabalho foi apresentado em forma de mesa
redonda na ocasião do XII Encontro Humanístico da Universidade Federal do
Maranhão, em Dezembro de 2012.
Resumo
Pretendo nesta reflexão abordar a
problemática referente ao enfraquecimento das tradições culturais – que aqui
irei traduzir por crise da memória – a partir daquilo que a história veio a
registrar sob o signo de revolução industrial. Para tanto, partirei do
principio de que com o desenvolvimento e aperfeiçoamento da indústria
desencadeou-se no campo um processo de devir
que teve como consequência inevitável o deslocamento populacional em massa
das populações dos campos para as cidades (o que deu origem à chamada sociedade
de massa). Assim pretendo mostrar como, em consequência desse processo, se
estruturou o embrião de um estado de
coisa que levou a uma crise da cultura dada a relativização e, sobretudo, a
dissolução dos valores culturais construídos historicamente e que representavam
para os povos das tradições os pressupostos fundamentais de sua existência. No
decorrer da pesquisa vou levantar a hipótese de que na modernidade a memória
atravessa uma crise que é fruto de um processo de luta entre o novo, que tenta se impor, e o velho, que tenta resistir. Ao final vou propor – como resultado da
pesquisa – que esse enfraquecimento da memória é nada mais nada menos que uma
resultante direta do desdobramento de um processo de vida tecida no contexto de
uma época científico-tecnológica onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”.
Estrutura
da pesquisa
Em se tratando da estrutura,
esta pesquisa se constituirá de três partes: na primeira discorrerei brevemente
sobre a revolução industrial do século XVIII; na segunda, mostro como o
desenvolvimento e o aperfeiçoamento da industrial altera o modo vida e o
trabalho tradicional e como, em consequência disso, se instala uma crise na
cultura e; por fim, no terceiro momento, mostrarei como essa crise da cultura
se converte em uma crise da memória num cenário onde tudo se dilui.
1 A
REVOLUÇÃO INDUSTRIAL DO SÉCULO XVIII
Ora, seria ingenuidade
pretender negar que o progresso e o aperfeiçoamento técnico não contribuíram
para a construção de cidades que se tornaram encantadoras e atrativas, em
virtude de sua exuberante beleza, tal como, por exemplo, Paris conforme a ela
se refere Charles Baudelaire. Por outro lado, também seria ingênuo não
reconhecer as contribuições que a mesma técnica e progresso deram para o
assolapamento da miséria humana. Para entendermos isso, precisamos reportar-nos
previamente ao século XVIII a fim de compreender aquele que foi, talvez, o seu
principal acontecimento, leia-se: a revolução industrial.
Aqui peço desculpas ao
publico por uma citação demasiado longa que farei do livro O que é sociologia, de Carlos Benedito Martins. Pois, em razão da
modernidade que nos obriga a agir às pressas – e dado que me pareceu oportuno –
não vi e, portanto, não encontrei outra maneira mais simples, sucinta e clara
de apresentar aqui o conceito de revolução industrial a não ser recorrendo à
autoridade deste autor.
Fruto desse século, ou
ainda, das mudanças que vinham ocorrendo desde a decadência da idade media,
A
revolução industrial significou algo mais do que a introdução da maquina a
vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos dos métodos produtivos. Ela representou
o triunfo da indústria capitalista capitaneada pelo empresário que foi pouco a
pouco concentrando as maquinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle,
convertendo grandes massas humanas em simples trabalhadores despossuídos. Cada
avanço com relação à consolidação da sociedade capitalista representava a
desintegração, o assolapamento de costumes e instituições até então existentes
e a introdução de novas formas de organizar a vida social. A utilização da maquina na produção alem de
destruir o artesão independente que possuía um pequeno pedaço de terra,
submeteu-o também à novas formas de conduta e de relações de trabalho
completamente diferente das vividas por ele anteriormente. Num período de 80 anos, ou seja, entre 1780 e 1860,a Inglaterra havia
mudado de forma marcante sua fisionomia. Pais com pequenas cidades, com uma
população rural dispersa passou a comportar enormes cidades. A formação de
uma sociedade que se industrializava e urbanizava em ritmo crescente implicava
a reordenação da sociedade rural e, sobretudo, o desmantelamento da família
patriarcal. A transformação da atividade artesanal em manufatureira e em
atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração do campo para a cidade,
assim como engajou mulheres e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos
doze horas sem férias e feriado, ganhando um salário de subsistência. Em alguns setores da industria inglesa, mas
da metade dos trabalhadores era constituída por mulheres e crianças, que
ganhavam salários inferiores aos dos homens.
A
desaparição dos pequenos proprietários rurais, dos artesãos independentes, a
imposição de prolongadas horas de trabalho etc, tiveram um efeito traumático
sobre milhões de seres humanos ao modificar radicalmente suas formas de vida.
Essas transformações faziam-se mais visíveis nas cidades industriais. Estas
cidades passavam por um vertiginoso crescimento demográfico, sem possuir, no
entanto, uma estrutura de moradias, de serviços sanitários, de saúde capaz de
acolher a população que se deslocava do campo.
COSEQUANCIAS:
aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, da
criminalidade, da violência, de surtos de epidemia e de cólera que dizimaram
parte da população europeia. (O que é
sociologia)
2 CRISE DA CULTURA
Esse processo
destruidor/construtor provocou mudanças estruturais tanto nas cidades quanto no
campo. As mudanças ocorridas no campo foram determinantes para a crise da
cultura, que aqui identifico por crise da memória. Antes cumpre precisar que a
crise da cultura é a crise dos valores na medida em que a cultura pode ser
entendida (e tal é meu porto seguro) como um processo de criação de valores a
partir da criação de costumes que surge das mais diversificadas praxes humanas,
dentro daquilo que Habermas chamara de “mundo da vida”. Como diria Habermas, “os
valores culturais transcendem o desenrolar factual das ações”. “Para Habermas, o mundo da vida é um saber
de fundo transmitido culturalmente”.
Não quero, por que não me
interessa aqui, precisar categoricamente a gênese da crise da cultura, mas
considerando a conjuntura histórica parcial dos acontecimentos que antecederam
e pós-cederam à revolução industrial não exito em sustentar que o embrião da
crise da cultura se inicial com o processo de deslocamento populacional maciço
do homem para a cidade. Com o deslocamento do homem do campo para a cidade, o
processo de manutenção dos costumes e cultivação dos valores fica comprometido.
Isso porque esse processo também operou um corte, ou uma alteração, na dinâmica
de tralho do camponês. Para entendermos isso, consideremos o que diz Berman nas
linhas abaixo conforme se lê: “a
modernidade implicou a emergência de um mercado mundial que à medida que se
expandiu absorveu todos os mercados locais e regionais; camponeses e artesão
independentes não podem competir com a produção em massa capitalista e são
forçados a abandonar suas terras e a fechar seus estabelecimentos”. Assim, diz
ele: “um vasto numero de migrantes pobres são despejados nas cidades, que
crescem como um passe de mágica”.
Do ponto de vista da
constituição do mundo moderno, se o que caracteriza o progresso e os
acontecimentos da modernidade, onde tudo o que é feito, é feito para ser
deixado de lado e esquecido no momento seguinte em razão de novos feitos que
vão sendo realizados, um problema vem alume: como narrar na modernidade e para
quem narrar nessa sociedade onde a transformação rápida das coisas é a sua
característica primordial e a memória já não comporta tanta importância
considerando que o seu papel fundamental é o de gravar, ou registrar, os
acontecimentos culturais de uma geração de uma dada época histórica para – num
momento posterior – serem transmitidas às outras gerações que naturalmente vão
aparecendo?
Partindo do principio de que
a narrativa pressupõe uma forma de ligação com a memória, de modo que só se
pode narrar àquilo que previamente fora armazenado na mesma, logo, deve se
considerar a relevância que essa (memória) possui para o narrador. Ela é como
que o depósito das coisas vividas e que agora passam a ser guardadas quando já
não mais é possível viver na prática, mas somente através da imaginação por
meio de um retorno que se dá pela arte de contar. Em outros termos, pode-se
dizer que a memória é como que a caixa preta do sujeito, ou de uma determinada
cultura, onde são arquivados as experiências e acontecimentos em geral.
Benjamin: “a experiência que passa de pessoa para
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” .
É por meio deste processo de transmissão que se dá a continuidade de idéias,
costumes, gestos, atos etc.
2.1.
A degradação da memória
Marcada pela inconstância e
pela interrupção constante dos acontecimentos, pode-se dizer que na modernidade
reina um princípio de incerteza de tal modo que já não se pode prever nem mesmo
o que está para acontecer. Nesse sentido, Singer enfatiza que “a modernidade implicou um mundo fenomenal –
especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado
e desorientador do que as fazes anteriores da cultura humana”.
O sujeito moderno, portanto, é aquele vive de lembranças em razão da
descontinuidade – característica principal da modernidade – que obstaculiza a
arte de memorizar. Com toda essa estrutura complexa da modernidade, o homem
moderno não poderia ser outro senão o homem do alerta, orientado pelo alarme, o
homem mecânico. Como diz Berman: “há medida que se expande, o publico moderno
se multiplica em uma multidão de fragmentos”. Mesmo sendo a lembrança aquela
coisa pela qual a modernidade vai se interessar, mesmo assim, é a narrativa
que, em meio a tanta pressão, ainda desfruta do privilégio de conter, ou
conduzir em seu núcleo a moral da história.
A relação entre a memória é
a lembrança, evidentemente é uma relação horizontal de pertença, no sentido de
que uma se apresenta como fundamento para a outra. Se por um lado a lembrança é
aquilo que faz com que a memória não seja esquecida e se mantenha, portanto, ao
longo das gerações, por outro, a memória é ela mesma a possibilidade e o fundamento
dessas próprias lembranças. Entretanto, não se pode optar por privilegiar
somente as lembranças como se as gerações do presente fossem as ultimas a
existir. Assumindo ou não, essas gerações darão origem a outras. O problema que
decorre disso consiste em saber como se comportarão essas futuras gerações uma
vez que na memória dos seus indivíduos um vazio profundo e constante far-se-á
presente. Aqui, poder-se-ia supor, essas gerações como uma espécie de gerações
superficiais na medida em que não comportam uma raiz, um fundo cultural. E é
superficial porque não há uma base solida sob a qual possa se firmar. Na
modernidade, como diz Berman, “as coisa se desintegram, o centro nada retém”.
Assim, “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Desta feita, problematiza Berman:
“se tudo o que é solido desmancha no ar como é possível passar os valores às
outras gerações?”. Assim, “ser moderno é viver uma vida de paradoxo e
contradição”. Como diz Berman, “ao mesmo tempo em que humanidade domina a
natureza, o homem parece escravizar-se a outros homens, e até a luz da ciência
se mostra incapaz de brilhar a não ser no escuro pano de fundo da ignorância”.
“Os homens estão todos
juntos num processo diluidor que desmancha no ar tudo que sólido”.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN,
Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e
Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto.
Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992.
_________.
Obras escolhidas II. Ed. 5. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
BAUDELAIRE,
Charles. Obras estéticas. Trad.
Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura
da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo:
Companhia das letras, 1982.
KOTHE,
Flávio (Org.). Walter Benjamin:
Sociologia. Ed. 2. São Paulo: Ática, 1991.
SINGER,
Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY,
Leo, SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O
cinema e invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo:
Cosac Naif, 2004.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed. Trad. Sergio Paulo
Rounnet. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 198.
De acordo com Gagnebin (refletindo sobre a
narrativa em Benjamin), O artesanato permite,
devido ao seu ritmo lento e orgânico, em oposição à rapidez do processo de
trabalho industrial, e devido ao seu caráter totalizante, em oposição ao
caráter fragmentário do trabalho, por exemplo, uma sedimentação progressiva das
diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho se
inscreve num tempo mais global, tempo aonde ainda se tinha, justamente, tempo
para contar.
SINGER, Ben. Modernidade,
hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo,
SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e
invenção da vida moderna. 2. Ed. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac
Naif, 2004. p. 96.