Discorrer sobre uma coisa sem deturpar a
originalidade de seu caráter, isto é, dos seus traços peculiares, significa
antes de tudo, reconhecer essa mesma coisa como portadora de certa autonomia
que se tece, ou se constrói a partir de sua própria identidade. Se a identidade
de uma coisa, portanto, constitui o seu distintivo ontológico, ou seja, aquilo
que faz com que a sua razão de ser seja diferente das demais coisas que já são,
logo, conhecer uma coisa em sua integridade significa justamente mergulhar
naquilo que de mais profundo ela tem afim de que se descubra, a partir daí, os
pilares da sua própria existência.
Cenário da diversidade, a modernidade é – diga-se
de passagem – esse ser de existência complexa que se constituiu como novo a
partir da destruição do velho. Nesse contexto, o termo “velho” faz referência à
Idade Média em sua totalidade, onde, basicamente, vivia-se sob a forma da
“unicidade” [1],
no campo da criação artística, por exemplo.
Caracterizada pela pluralidade – em contraste com a
“singularidade” medieval – a era moderna é aquela que vai superar, do ponto de
vista da técnica, do progresso e do mercado, todos os ideais da tradição que –
no plano místico-religioso – não possuíam nenhuma relevância mercadológica,
como por exemplo, os objetos da criação artística. Desse modo, não tendo o seu
valor determinado pela moeda, e sim pela capacidade de estabelecer certa
ligação entre o humano e o divino, a obra de arte, nesse contexto, sob a tutela
da tradição eclesiástica, estava para a libertação, assim como o renascimento
estava para a emancipação do artista. Portanto, não sendo objeto de cobiça do
mercado, tal como veio a ser no período moderno, a obra de arte encontrou, no
período medieval, o lócus sublime[2] e excelente à conservação
da sua pureza. Como elemento mediador entre o temporal e o atemporal, o visível
e o invisível, o terrestre e o celeste, isto é, entre o concreto e o abstrato,
a criação artística era entendida como algo sagrado, tal como ainda hoje se
observa veementemente em praticamente todas as igrejas cristãs e demais templos
religiosos presentes em todos os lugares. Voltada para o âmbito religioso, a
obra de arte no medieval mantinha, portanto, uma relação, por excelência,
inextrincável com as praticas ritualísticas. Sob a égide da tradição, a obra de
arte tinha como recinto principal, os mosteiros, locais de profundo silêncio,
contemplação e recolhimento onde, também era praticado o culto religioso. Nessa
perspectiva, Benjamin[3] refere que
O culto foi a
expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional.
Como sabemos, as obras de artes mais antigas surgiram ao serviço de um ritual,
primeiro mágico e depois religioso [...] em outras palavras: o valor singular
da obra de arte “autêntica” tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu seu
valor de uso original e primeiro.[4]
Inicialmente, era, portanto, na pratica do rito que
repousava e se expressava todo o sentido e valor da obra de arte. A ausência de
interesse econômico na relação que se estabelecia entre essa e o homem revelava
justamente a grandeza da criação artística dotada de pureza, unicidade,
originalidade e profundidade.
Conecta á lógica da natureza, onde tudo muda, tudo
progride, tudo se transforma, a Idade Média, em sua reta final, foi aos poucos
se contraindo em si mesma, devido à evolução dos acontecimentos, de tal modo
que – dada a fragilidade de suas bases, bem como sua não correspondência às
exigências intelectuais e imaginativas do homem – tornou-se necessário a
instituição de um novo modelo de sociedade, na qual o homem pudesse gozar de
mais liberdade a autonomia. Surge, então, a era moderna, que teve como ponto de
partida o Renascimento.
Ponto de transição entre o período medieval e o
moderno, o Renascimento – que procurou restaurar na sociedade pós-medieval os
ideais da cultura grega – teve como pretensão primeira a construção de um homem
autônomo e independente a partir da elevação da razão em detrimento da fé
cristã. Entretanto, ele (Renascimento) que
Inspirou-se no
humanismo, movimento de intelectuais que defendiam o estudo da cultura
Greco-romana e o retorno a seus ideais de exaltação do homem e de seus
atributos como: a razão e a liberdade [...] não significou, porém um abandono
completo das questões cristãs medievais, o que se torna claro se observamos o
fundo religioso que persiste nas obras intelectuais e artísticas desse período[5].
Ora, embora não tenha suprimido todos os resquícios
ou traços medievais que continuaram depois do corte na história que pôs fim à
Idade Média, o Renascimento deu um salto relevante nessa direção, construindo,
portanto, as bases daquilo que, de fato, veio a ser a modernidade.
Na modernidade, porém, as transformações que iam
simultaneamente ocorrendo, fizeram com que desaparecessem algumas
características da obra de arte, como, por exemplo, a sua pureza[6] e a sua aura, então
conservadas na era medieval. Nesse contexto (moderno), ao contrário do
anterior, ela vai se tornar objeto de comércio, de compra e venda, ou mesmo de
troca. Ou seja, na modernidade, o valor de uso da obra de arte passa a ser
ditado pela moeda e não mais pelo culto dos mosteiros, ao qual ela estava
restrita anteriormente. Aqui já se tinha, portanto, a ruptura total da obra de
arte com a instituição religiosa. O ponto de partida dessa ruptura se deu
justamente a partir da sua abertura para a reprodução, o que em Walter
Benjamin, por exemplo, está dado na expressão “reprodutibilidade técnica da
obra de arte”. Benjamim refere que
A
reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na
história do mundo, da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte
reproduzida torna-se cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta
na reprodutibilidade[7]
Como fator da reprodutibilidade, a obra de arte
passou, então, a ficar mais tempo exposta, aos olhares, admirações e
encantamentos do público. Nessa perspectiva, percebe-se, portanto, que a arte
vai estar voltada para o mercado, para o consumo, o que, de algum modo, já
caracteriza a sua ligação com as massas.
Outro ponto relevante que pode ser assinalado para
fins de uma compreensão mais aprofunda, é quando no pensamento de Benjamin
lê-se:
Mesmo na
reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – sua
existência única no lugar em que se encontra. [...]. O aqui e agora do original
constitui o conceito da sua autenticidade. [...]. Mas enquanto o autêntico
mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução manual que, regra
geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à
reprodução técnica. [8]
De que a reprodutibilidade tenha ocasionado a
emancipação da arte das amarras da tradição, disso ninguém pode duvidar.
Entretanto, é valido ressaltar que, não obstante, ela (a reprodução) ainda não
constitui uma base segura capaz de cristalizar o caráter autêntico da obra de arte.
Pelo contrário, dada a reprodução, tem-se, consequentemente, uma perda
considerável da autenticidade ou originalidade da própria obra de arte, isto
porque, diante desse fenômeno (reprodutibilidade) perde-se consideravelmente a
capacidade de se dizer o que é original e o que não é. Nesse contexto, Benjamin
diz que “o que murcha na era da
reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura” [9]. A aura da obra de arte,
cumpre ressaltar, corresponde exatamente à sua originalidade que na sociedade
de massa se dilui em vista da reprodução, que se dá em escala bastante elevada.
Segundo Benjamin
No início do
século XX, a reprodução técnica tinha atingindo um nível tal que começara a
tornar objeto seu, não só a totalidade da obra de arte proveniente de épocas anteriores,
e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a
conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos. [10]
Percebe-se, portanto, como, de forma veloz, a
reprodutibilidade se disseminou na sociedade de massa de modo a abrir caminhos
e conquistar espaço. Ora, a percepção que se tem disso é a de que a
reprodutibilidade parece ter passado por um processo de aperfeiçoamento do
qual, pode-se pensar, resultou a rapidez da reprodução. Portanto, é importante
salientar que essa conquista da sociedade de massa, talvez, jamais teria sido
alcançada se o conhecimento não tivesse evoluído e o homem não tivesse mudado
de mentalidade. O conhecimento, portanto, assume um papel relevante no processo
de transformação de uma sociedade, um povo ou uma época. Tudo isso – atrelado
ao mercado, onde a busca do lucro é a regra geral e a competitividade aparece
como força motriz que gera novas produções – contribuiu consideravelmente para
os avanços e conquistas, passíveis de percepção no contexto da
reprodutibilidade técnica da obra de arte.
Na sociedade de massa, onde a cultura passa a ser
produzida com exclusividade em função de seu valor de troca, a
reprodutibilidade técnica passa a ter uma relevância capital no que diz
respeito à busca de riquezas.
Outro aspecto que aqui não pode ser esquecido, é
que na modernidade e suas massas, a obra de arte também se torna um meio
através do qual muitos artistas buscaram sobreviver. Foi nesse contexto que a
idéia de obra de arte passou a ser uma controvérsia nesse tipo de sociedade
(massa). Nessa sociedade, a beleza da obra de arte já não podia mais ser
contemplada e nem sentida. É como se ela (a obra de arte) tivesse perdido a sua
capacidade de atingir a sensibilidade do sujeito. É como se esse não
reconhecesse mais a grandeza daquela. Na modernidade houve, portanto, uma
inversão na finalidade da obra de arte, se comparada com o período medieval. Se
nessa, ela visava levar o sujeito ao encontro do divino, nesta, ela pretendia
levá-lo ao mercado. A razão disso decorre do fato de que na sociedade de massa,
ela foi feita para atingir exclusivamente o mercado e beneficiar o capitalismo.
Para isso, muitos meios de reprodução foram idealizados e, de fato, praticados,
como por exemplo, a fotografia[11]. Nesse sentido Benjamin
refere que “o primeiro meio de reprodução
verdadeiramente revolucionário foi a fotografia” [12]. Com base nele
(Benjamin), poder-se-ia ainda dizer que as primeiras fotografias,
provavelmente, foram de rostos humanos, o que, supostamente, deixava as pessoas
fascinadas por verem à sua frente sua própria face, o que – para a época –
certamente deve ter sido uma coisa de arrastar multidão. No texto intitulado “Pequena história da fotografia”, ele
escreve que “o rosto humano era envolvido
por um silencio em que repousava o olhar” [13]. Quanto fascínio, arrepio
e emoção não devem ter sentido aquele povo! O aperfeiçoamento da fotografia
inaugura, portanto, na reprodutibilidade e na própria sociedade de massa, uma
espécie de cultura voltada para o consumo das imagens. Nessa perspectiva, a
fotografia enquanto fator de reprodução, também contribui em demasia para a
perda da aura da obra de arte na medida em que não possibilita determinar a sua
autenticidade. Alem da fotografia, outros meios de reprodução também foram
idealizados na modernidade, como por exemplo, o cinema e o teatro, dentre
outros, que aqui não serão analisados minuciosamente.
Diante do exposto, pode-se definir a modernidade
como sendo um local de diversidade para onde as massas convergem; é o grande
“mosteiro” que, ao invés de conduzir o indivíduo para dentro de si, conduz o
para dentro do mercado, onde ele se dilui e desaparece, porque é engolido,
sobretudo, pelo sistema capitalista; é um grande palco de evento, onde o ator
oficial passa a ser a reprodutibilidade técnica da obra de arte, e a platéia, a
própria massa, que se deixa fascinar, emocionar e seduzir pelo fenômeno da
reprodução.
Essas são, portanto, características, ou traços
distintivos de uma sociedade, ou uma cultura em constante transformação. No
âmbito da práxis política, a arte vai ser – na modernidade, ou na própria
sociedade de massa – um auxílio fundamental para os grupos dominantes,
sobretudo, no que diz respeito à manutenção desses grupos para a sua
continuidade no poder.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O óbvio e o
obtuso: ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 1990.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte,
Técnica, Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e
Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992.
_________. Obras escolhidas II.
Ed. 5. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do
Mal. Ed. 4. trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
_________. Obras estéticas.
Trad. Edilson Darci Heldt. Petrópolis: Vozes, 1993.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da
Filosofia: História e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2006.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2005000100003&script=sci_arttext
Acesso em: 18-06-2010
KOTHE, Flávio (Org.). Walter
Benjamin: Sociologia. Ed. 2. São Paulo: Ática, 1991.
NOTAS
[1]
Esse termo designa a finalidade exclusiva da obra de arte no contexto
medieval, que era de caráter unicamente ritualístico.
[2] Essa
expressão está sendo tomada, aqui, no sentido kantiano para designar aquela
coisa que é absolutamente grande. E essa coisa grande, neste contexto, faz
referência à Idade Média em sua totalidade, que constitui então o locus, ou seja, o lugar propício à
conservação da obra de arte, enquanto livre da cobiça do capitalismo.
[3] Walter
Benjamin nasceu a 15 de Julho de 1892, em Berlin. Estudou filosofia em
freiburgi-im-Breisgau. Em 1919, morando em Berna (Suíça), escreveu sua tese de
doutorado O conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Pensador na
concretização de uma carreira universitária, Benjamin iniciou em 1923 sua tese
de livre- docência sobre A Origem do Drama Barroco Alemão. Renunciou à carreira
acadêmica devido ao fracasso de sua tese, passando o resto da vida no exílio,
sem dinheiro, trabalhando como crítico e jornalista.
Com a ascensão do nazismo na Alemanha, refugiou-se
na Dinamarca, onde escreveu a Obra de Arte na época de sua reprodutibilidade
técnica. Em 1940, escreveu em Paris as Teses Sobre o Conceito da História.
Quando as tropas alemãs entram na cidade, Benjamin foge, mas quando descobre
que é impossível atravessar a fronteira franco-espanhola, suicida-se a 27 de setembro
em Port Bou, na Catalunha.
Benjamin
foi um dos interlocutores de Adorno, G. Scholen e Brecht, que, alem de seus
amigos, eram críticos de seus trabalhos. (Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Ed. 5. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho; José Carlos Martins Barbosa. São Paulo:
Brasiliense, 1995. P. 279).
[4] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad.
Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água
Editores, 1992. P. 82.
[5] Cf.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos da
Filosofia: História e grandes temas. São Paulo: Saraiva, 2006. P. 127
[6] A pureza
da obra de arte na Idade Média dizia respeito ao fato de que lá a relação dela
com homem não tinha nenhuma mediação de interesse financeiro.
[7] Cf.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica,
Linguagem e Política. Trad. Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel
Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 1992. P. 83.
[8] Cf. Id.
Ibidem, P. 77-78
[9] Cf. Id.
Ibidem, P. 79.
[10] Id. Ibidem, P. 76-77.
[11] Qual
o conteúdo da mensagem fotográfica? O que transmite a fotografia? Por
definição, a própria cena, o literalmente real. Do objeto á sua imagem há, na
verdade, uma redução: de proporção, de perspectiva e de cor. No entanto essa
redução não é, em momento algum, uma transformação (no sentido matemático do
termo) para passar do real à sua fotografia, não é absolutamente necessário
dividir em unidade e transformar essa unidade em signos substancialmente
diferentes do objeto [...] entre esse objeto e sua imagem não é absolutamente necessário
interpor um relais, isto é, um código; é bem verdade que a imagem não é o real,
mas é, pelo menos, o seu analogon perfeito, e é precisamente esta perfeição
analógica que, para o senso comum, define a fotografia. [...]. A fotografia
considerando-se com um análogo mecânico do real, traz uma mensagem primeira
que, de certo modo, preenche plenamente uma substância e não deixa lugar ao
desenvolvimento de uma mensagem segunda. Em suma, de todas as estruturas de
informação, a fotografia seria a única a ser exclusivamente constituída por uma
mensagem “denotada” que esgotaria totalmente seu ser [...]. (Cf.
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso:
ensaios críticos III. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1990.
P. 12, 13, 14).
[12] Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Trad.
Maria Luz Moita; Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D’ Água
Editores, 1992. P. 83.
[13] Id.
Ibidem. P. 120.